A idade média caracterizava-se pela reverência ao divino, ao sobrenatural, pelo absoluto domínio da Igreja e da nobreza.
Um conjunto de fatores eclodindo aqui e acolá, foi – paulatinamente - gerando um movimento intenso, vigoroso, originando o que se denominaria renascimento. A difusão dos novos valores contou com a providencial alavanca da modernização da imprensa. Até então, as grandes obras eram manuseadas pelos monges copistas - nas abadias e mosteiros - restritas à pouquíssimos privilegiados. Com o aperfeiçoamento da imprensa, as grandes obras da literatura universal, sobretudo os clássicos greco-romanos, passaram a ser disponibilizados para um número maior de pessoas. Mas também as novas invenções, as grandes descobertas e os novos paradigmas passaram a correr o mundo com maior celeridade.
Com a derrocada final de Constantinopla, no ano de 1453, vários artistas e intelectuais, fugindo do antigo Império Bizantino, migram para a Europa Ocidental, auxiliando na criação de um caldo cultural propício às novas correntes de pensamento.
Mas o novo domínio muçulmano impedia que os comerciantes cristãos acessassem a Índia e a China. Surge a imperiosa necessidade de estabelecer novas rotas comerciais, passagens alternativas que acabaram levando às grandes navegações e ao novo mundo colonial.
É neste contexto – de ebulição política e acúmulo e concentração de riquezas - que príncipes, papas e a nova categoria dos ricos burgueses assumem os papéis de mecenas, estimulando através de apoio e financiamento a renascença, o movimento humanista que impactou as artes, a filosofia, a política e as ciências.
A nova escola européia tem seus marcos estabelecidos pela racionalidade, pelo rigor científico e pelos ideais humanistas; retirando Deus do centro das referências para substituí-lo pelo ser humano.
Em Hamlet, Shakespeare dá mostras do antropocentrismo, em contraposição ao teocentrismo:
“Que obra de arte é o homem: tão nobre no raciocínio; tão vário na capacidade; em forma e movimento, tão preciso e admirável, na ação é como um anjo; no entendimento é como um Deus; a beleza do mundo, o exemplo dos animais.”
A Itália foi o berço do renascimento, mas o movimento logo ganhou os demais países europeus como a Inglaterra, Espanha, Portugal, França e Países Baixos.
Dentre inúmeros outros ícones do renascimento destacam-se Dante Alighieri, Nicolau Maquiavel, Giovanni Boccacio, Miguel de Cervantes, Luís de Camões, William Shakespeare, Thomas Morus, Michelangelo, Leonardo da Vinci, Nicolau Copérnico e Galileu Galilei.
Anteriormente, no feudalismo, o homem se via na impossibilidade de acumular riqueza e fortuna, aspecto que a nova ordem passa a estimular.
Na ciência, contrapondo-se ao princípio aristotélico medieval da autoridade - o magister dixit - surge a experimentação empírica, o espírito crítico, a comprovação dos fatos e descobertas em laboratório: doravante, a verdade deveria ser comprovada, na prática. É o que determina os conflitos com a Igreja e sua Santa Inquisição.
A burguesia ascendente vai buscar em Martinho Lutero e João Calvino as referências para uma nova ordem religiosa, consentânea com o novo stabilisment, a reforma protestante.
É neste contexto, de plena efervescência política e econômica que se origina, também na Itália, a Commedia dell’Arte, uma das mais revolucionárias escolas teatrais.
A corte italiana priorizava os investimentos financeiros na criação de um novo modelo de teatro, adotando um formato e um arranjo cenográfico que culminaria no fortalecimento da ópera e do balé.
Desprovidos deste suporte e dos recursos financeiros, os artistas da Commedia dell'Arte se viram na contingência de investir no que se apresentava ao alcance das mãos: a performance do ator.
Deste novo ator é exigido habilidades especiais ou um exaustivo treinamento que o qualifique para o canto, a dança, a representação, a execução de malabarismos e contorcionismos de modo a aprisionar de maneira definitiva a atenção do público presente aos espetáculos.
Este ator deve ter pleno domínio do corpo e da mente. Deve deter as técnicas de expressão corporal e vocal, ao mesmo tempo em que deve se especializar nas técnicas da improvisação. Aqui a pantomina, a mímica e a linguagem gestual assumem importâncias estruturais: as nacionalidades estavam em formação no velho continente, de modo que a unidade lingüística ainda se encontrava em construção. Daí a prevalência da expressão corporal sobre o texto, fato que obrigou o ator a buscar a excelência na manifestação e expressão gestual.
Geralmente o ator representava os mesmos papéis por toda a vida. Eram papéis caricatos, alguns ainda hoje presentes no imaginário popular, como Arlequim, o servo atrapalhado e Brighella, o servo astuto e bom de briga.
A improvisação é outra característica latente na Commedia dell’Arte, um mandamento levado ao extremo. Por isto o texto apenas sinalizava um caminho; se prestava mais como um simples enredo a guiar os passos dos atores, sobretudo nas marcações como as que sinalizam as entradas e saídas.
Quanto à temática, caracterizava-se pela abordagem simplista e pelo viés popular, explorando o humor das cenas de traição explícita, dos episódios burlescos, dos desencontros amorosos, das paixões impossíveis ou mal resolvidas, da avareza e da exploração das diferenças, das anormalidades físicas, ...
Sobre as críticas políticas é curioso constatar que sempre as fizeram, obtendo certa liberdade e condescendência das elites religiosas e da nobreza. Desde que a crítica se apresentasse acobertada pelo humor, a prática era tolerada. As elites imaginavam que o humor retirava da crítica a reflexão, reduzindo-a à efemeridade, sem força, por conseqüência, para comprometer as estruturas vigentes.
Munidos deste “passaporte”, os artistas da Commedia dell’Arte não se faziam de rogados. Dentre piruetas, saltos mortais e contorcionismos, os atores improvisavam explorando a música e a dança, fazendo pilhéria das fragilidades humanas, provocando de maneira ferina e mordaz a platéia, questionando os costumes, obtendo como resposta da assistência não a agressão, mas a plena satisfação, o riso fácil, o encantamento, a diversão.
Cada grupo constituía-se de cerca de dez atores, que percorriam povoados e cidades, levando seus espetáculos magistrais continente adentro. É neste instante que ocorre a profissionalização do ator.
A alegria sem limites, os trajes carnavalescos, o centro do processo na plástica corporal e na improvisação dos atores, o compromisso com o imaginário popular encantaram todos os encenadores modernos, de Artaud a Meyerhold. E, nos dias que correm, ancoram as bases do teatro popular de bonecos como o Mamulengo, o Casimiro Coco e o Mané Beiçudo. Portanto, ao se divertir com uma apresentação do teatro popular de bonecos aprenda a observar nas traquinagens e peripécias de Mané Beiçudo, a pujança que apagou as fogueiras do Santo Ofício e fez eclodir o vigor cultural do renascimento, a efervescência do movimento que rompeu a noite de mil anos.
Artigo de Antônio Carlos dos Santos publicado no Jornal Opção/Goiânia