Antonin Artaud e Bertolt Brecht passaram suas existências num período extremamente profícuo para a história do teatro contemporâneo. Representam uma geração de encenadores preocupados em dar novos formatos e conteúdos ao teatro, em revolucionar a linguagem dramática, por isto – apesar de terem desenvolvido diferentes escolas – apresentam pontos onde é possível encontrar convergências.
Para muitos, desejar encontrar convergências em escolas teatrais tidas como antagônicas chega a parecer heresia. Mas o que é o teatro senão a mais intensa e voluptuosa expressão do antagonismo?
Sim, é verdade. Artaud se envereda por um teatro dotado de intensa participação, frenesi e irrealismo, uma arte baseada na metafísica e na magia, ao passo que Bert Brecht preferiu beber na fonte do ‘distanciamento’, do didatismo e da inserção histórica.
Como também é verdade que, na caminhada para conceberem suas diretrizes, encontraram-se em diversos momentos e oportunidades.
Artaud e os encenadores dialéticos encontraram-se sobretudo no combate à ditadura do teatro literário e psicológico, nos momentos em que experimentavam a instituição de um novo espaço cênico. Ambas as escolas rejeitam o teatro como um fugaz divertimento, refugam a representação baseada no ‘mimetismo’ e na psicologia e desdenham a encenação de cunho tradicionalista.
Em uma de suas cartas (a Daumal) Artaud hipoteca elogios aos movimentos que buscavam a renovação do teatro, particularmente os originários de fora de seu país, a França. Reconhece os avanços obtidos nas experiências de Erwin Piscator, de Meyerhold e de todo o teatro da Rússia pós-revolucionária: “os alemães e os russos souberam substituir o teatro psicológico pelo teatro de ação e de massas”.
O encenador francês tinha conhecimento das experiências que fervilhavam na Alemanha e na União Soviética. Em 1930 a cidade das luzes recebeu Meyerhold e sua companhia teatral; e em 1932 o próprio Artaud estava em Berlim assistindo aos espetáculos de Reinhardt, Piscator e Meyerhold.
Mas o namoro durou pouco. À medida que as duas escolas foram se consolidando, as diferenças passaram a emergir de forma claramente visível. E a distância entre ambos foi se dilatando e expandindo. A partir de determinado ponto, os caminhos tornaram-se diametralmente opostos: enquanto Brecht e Meyerhold fazem a escolha pelo teatro político, Artaud prefere o teatro metafísico e mágico. E a pá de cal selando a separação é lançada pelo encenador francês no ano de 1932:
“Considero vãs todas as tentativas feitas na Rússia para fazer o teatro servir a objetivos sociais e revolucionários imediatos, por mais inovadores que sejam os processos de encenação empregados. Tais condutas, na medida em que se submetem aos dados mais estritos do materialismo dialético, viram as costas à metafísica, que eles desprezam, e permanecem apenas uma encenação, na acepção mais grosseira do termo”.
Em que pese a certa virulência da manifestação, a separação - agora oficial - não rompeu todos os pontos de contato entre o teatro de ambos. Fosse assim, como seria possível a Artaud escrever “A conquista do México”? Não é esta obra um libelo libertário sobre a grave questão da colonização? E não é este assunto, em sua essência, uma temática política, bem ao gosto dos encenadores que se guiavam pelo materialismo dialético?
Também o Living Theater de Julian Beck e Judith Malina perceberam no ‘antagonismo’ entre as duas correntes diversos vasos comunicantes, o que levou o grupo – reconhecidamente discípulo de Antonin Artaud – a montar Antígone, uma obra tomada de Sófocles e adaptada por Bertolt Brecht.
Se é do conflito que o teatro se nutre, se as manifestações antagônicas o conformam e o estruturam, então navegar entre os universos de Artaud e Brecht pode ser bastante produtivo, malgrado o olhar enviesado de alguns puristas.
No Teatro Mane Beiçudo Artaud e Brecht se divertem, curtindo altos papos. Conversam relegando o rigor que muitos enxergam em seus ensinamentos. No Mane Beiçudo a participação intensiva é buscada sem que se percam as vantagens propiciadas pelo efeito do distanciamento; a formalidade didática convive lado a lado com o jogo mágico e lúdico; e a incursão pelo interior, a busca do supra-sensível e da espiritualidade não compromete a compreensão histórica dos processos de transformação social e sua incontinente perseguição.
Naturalmente são encontros sem guarida na doutrina dogmática dos teóricos acadêmicos, obliterados por uma visão autoritária do conhecimento; mas plenamente presentes no universo do Teatro de Bonecos Mané Beiçudo, que exercita um teatro renovador, crítico, socialmente transformador, mas umbilicalmente vinculado ao lúdico, ao onírico, ao transcendente. Ou no dizer de Mané Beiçudo, em suas pelejas contra o carcará sanguinolento:
“Tudo bem minha fulô, mas também nem tanto, nem tanto o sinhozinho lá de cima, nem tanto o tinhosão lá de baixo. É que ... meu coraçãozinho ... céu pelo céu e inferno pelo inferno é como leite ou docim de jirimum esturricado, tem gosto bão não. Escuta: é no meio que se apura o gosto, que se encontra a liga, que se depura a sustança ... é quando se mistura tudo, visse meu bem? Aprenda, aprenda minha vidinha: partir ou começar é mais um estado de espírito, entende? Mais uma manifestação de vontade. A vida real, a vida verdadeira tá colocada é no caminho, na toada, nas andanças que agente faz, quando Deus e o diabo, o sol e a lua, o doce e o amargo se manifestam como verso e reverso da mesma moeda”.
Antônio Carlos dos Santos, criador da metodologia de produção do teatro popular de bonecos Mané Beiçudo.
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