"Chega de Saudade", um dos discos mais importantes de João Gilberto --e de toda a música brasileira-- entrou recentemente no catálogo do Spotify. O álbum, como se sabe há anos, é um dos que estão no meio de uma disputa judicial envolvendo os herdeiros do pai da bossa nova e a Universal, gravadora que comprou os selos que lançaram o músico baiano no século passado.
Outros dois álbuns também estão no centro da briga na Justiça. São eles
"O Amor, o Sorriso e a Flor" e "João Gilberto", o de 1961,
que também entraram no Spotify. O último deles, que leva o nome do músico,
apareceu no streaming apenas como parte de uma coletânea chamada genericamente
de "Chega de Saudade - O Amor, o Sorriso, e a Flor - João Gilberto".
Além dos três primeiros discos, os que motivam o processo na Justiça,
outra obra que leva seu nome --o álbum branco de 1973-- e o "Live in
Tokyo", este lançado em 2004, também foram incorporados ao catálogo da
plataforma. Todos eles foram publicados na página oficial do artista no
Spotify.
Após a publicação de uma reportagem da Folha, que expôs o caso, todos
esses discos foram excluídos do serviço. Ninguém assumiu que está por trás
desses lançamentos, mas sabe-se que as distribuidoras que fizeram o meio de
campo das publicações foram responsáveis pela retirada dos álbuns do streaming.
Uma delas, a Believe, é uma distribuidora francesa, com escritório no
Brasil, que trabalhou nos três discos "proibidos" --os que estão no
centro da disputa judicial. A empresa não revela com quem negociou para
distribuir os álbuns, mas após contato da reportagem, retirou preventivamente
as faixas do Spotify.
A Tratore confirma que pediu a retirada do álbum branco e do "Live in
Tokyo" das plataformas, mas tampouco revela com quem fez as tratativas.
"Não vamos comentar sobre a identidade desta cadeia de fornecimento nem
vamos dar detalhes sobre os acordos, mas é importante dizer que se a Tratore
está com algum material em distribuição é porque ela acredita que ele é
legítimo, autorizado e que os envolvidos estão agindo de boa-fé. Retiramos o
material do ar exatamente para nos assegurarmos novamente de que é o
caso", diz o diretor da empresa, Mauricio Bussab.
Em contato com o repórter, o espólio de João, a gravadora Universal e o
banco Opportunity --que fez um contrato de risco, adiantando R$ 10 milhões a
João em troca de uma porcentagem da indenização e dos royalties dos discos--
negaram que estejam por trás da publicação dos álbuns no streaming. Por se
tratar de um caso delicado, o Spotify ainda não tem uma posição sobre os
lançamentos.
Os três primeiros discos de João Gilberto têm o material que saiu
remasterizado e remixado, sem autorização do autor, na coletânea "O
Mito", de 1988, e motivou a abertura do processo contra a gravadora --na
época, a EMI--, que se arrasta desde 1997. João, que morreu em 2019, já ganhou
o processo, mas devido a um desacordo para determinar quantos discos o artista
vendeu, a Justiça ainda não determinou qual o valor em dinheiro que a vitória
renderia.
Os álbuns foram atribuídos no streaming a selos como Enfim Odeon, Ipanema
Odeon, JG Discos ou a alguma mistura desses nomes. Odeon era o nome da
gravadora que lançou João, que foi extinta após ser comprada pela EMI e, mais
recentemente, pela Universal.
A gravadora informa que não tem conhecimento da publicação recente desses
álbuns nas plataformas digitais.
"Não há lançamento recente do artista feito via Universal Music
Brasil", disse a assessoria da empresa. O selo também informa que tem em
catálogo apenas três discos do cantor --"Voz e Violão", de 1999,
"João", de 1991, e "Brasil - João Gilberto, Caetano Veloso,
Gilberto Gil", de 1981.
Já o espólio do cantor diz que não tem conhecimento dos fatos e que também
não autorizou a publicação dos álbuns. A intenção da família é disponibilizar a
obra de João, mas só após a devida negociação com todas as partes.
O banco Opportunity também nega que tenha qualquer envolvimento na
disponibilização desses discos no streaming. "O Opportunity não tem
conhecimento e não autorizou qualquer lançamento da obra de João Gilberto da
fase Odeon e EMI. Em se tratando de tais fonogramas, tanto a Universal Music
(sucessora da EMI) como seus cessionários estão proibidos de os explorar
comercialmente. Caso verifique violações a direitos, o Opportunity tomará as
medidas cabíveis para proteger a obra de João Gilberto", disseram representantes
da empresa.
No centro da disputa judicial estão alguns dos discos mais importantes da
música brasileira. Não é verdade que seja impossível ouvir a obra de João, mas
ela está pulverizada e em qualidade duvidosa espalhada pela internet.
Além das coletâneas e discos eventuais distribuídos por grandes selos,
como Warner e Sony, há no streaming canções e álbuns de João publicados por
selos de outros países, que observam leis diferentes --como as de domínio
público, por exemplo. No caso do YouTube, como é uma plataforma alimentada
pelos próprios usuários, há muito conteúdo pirata, inclusive diversas músicas
de João. É comum, contudo, que as gravadoras detectem --por meio de robôs-- e
exijam a retirada do material a que têm direito.
Nas plataformas de streaming de música, como o Spotify, as publicações são
feitas por selos ou distribuidoras, que representam essas gravadoras. Neste
caso, há a necessidade de comprovação dos direitos das músicas a partir de
regras das plataformas--o que torna improvável que se trate de pirataria as
publicações recentes dos discos de João.
O processo hoje esbarra na dificuldade de determinar quantos álbuns João
vendeu. Os cálculos da Universal, baseados em notas fiscais apresentadas à
perícia, concluem um total de 443 mil discos vendidos de 1964 até hoje. Para os
representantes do cantor, o número passa de 5 milhões. Por isso, no último mês
de junho, a Justiça pediu uma nova perícia para determinar quantos discos o
cantor vendeu.
Além das versões originais das canções, há material inédito de João
Gilberto parado, pela impossibilidade de ser lançado. Há alguns anos, o banco
Opportunity contratou Andre? Dias, renomado engenheiro de som, para
remasterizar as fitas másters --as matrizes, com as gravações originais sem
nenhum tipo de edição-- dos três primeiros álbuns de João, em processo
acompanhado inclusive por representantes da Justiça.
Dias afirma que os discos recém-publicados no streaming não têm essas
novas versões feitas por ele. O próprio João Gilberto, antes de morrer, teria
aprovado o trabalho feito por Dias, que está pronto --e parado-- desde 2014.
Mesmo sem os álbuns clássicos disponíveis no catálogo, João Gilberto
atualmente tem cerca de 2,5 milhões de ouvintes mensais apenas no Spotify. Para
comparação, Marília Mendonça tem cerca de 7 milhões, enquanto Gusttavo Lima
conta com 9 milhões.
Lucas Brêda, no Yahoo notícias
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