Modelo alemão foi citado como exemplo bem-sucedido de "universidade para poucos" pelo ministro Milton Ribeiro. Educação profissional é apoiada pelas empresas, mas separação precoce de crianças é alvo de críticas.
Aos 10 anos de idade, as crianças alemãs são separadas em três tipos de
escola, de acordo com suas habilidades acadêmicas. As que foram para as escolas
menos exigentes serão preparadas para seguir na educação profissional, central
para o sucesso de empresas de engenharia e serviços. Já as que estão nas
escolas de alto nível poderão tentar uma vaga na universidade.
Em linhas gerais, é assim que funciona o sistema de ensino da Alemanha.
Como resultado, o país tem, proporcionalmente, menos jovens adultos com diploma
universitário e mais com formação profissional do que na média dos países da
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Entre as pessoas de 25 a 34 anos, 33% fizeram ensino superior na Alemanha,
enquanto a média da OCDE é de 45%. Na mesma faixa etária, 46% na Alemanha
concluíram o ensino profissional, enquanto na OCDE são 24%.
Por esse motivo, o sistema alemão é mencionado com frequência em debates
sobre como lidar com as diferentes habilidades de crianças e jovens e na
discussão sobre investir em educação profissional ou em universidades.
Foi o que fez o ministro brasileiro da Educação, Milton Ribeiro, neste mês
de agosto. No dia 9, questionado sobre os institutos federais de ensino
técnico, afirmou que eles seriam "a grande vedete no futuro", sugeriu
que haveria um excesso de pessoas com diploma universitário no Brasil e citou a
Alemanha como exemplo.
"Tem muito engenheiro e advogado dirigindo Uber, porque não consegue
a colocação devida. Mas, se ele fosse um técnico de informática, estaria
empregado, porque há uma demanda muito grande", afirmou. "O futuro é
institutos federais. Como é na Alemanha hoje, na Alemanha são poucos os que
fazem universidade. Universidade, na verdade, deveria ser para poucos."
No dia 21, ele voltou ao tema. "Que adianta você ter um diploma na
parede. (...). Termina o curso, mas fica endividado e não consegue pagar porque
não tem emprego. (...) O Brasil precisa de mão de obra técnica,
profissional", afirmou durante evento em Nova Odessa (SP).
Ao mencionar a Alemanha como exemplo, Ribeiro disse que a universidade
deve ser "para poucos". Só que o Brasil teria que aumentar em 57% a
fatia dos seus jovens com ensino superior para chegar ao patamar do país
europeu. No Brasil, 21% das pessoas de 25 a 34 anos têm diploma universitário.
Há também críticas na Alemanha à divisão precoce das crianças, uma escolha
que, na maioria dos casos, molda o seu futuro professional, reforça
desigualdades e dificulta a mobilidade social, segundo pesquisas.
Três tipos de escola
Cada um dos 16 estados alemães pode regulamentar a educação em seu
território, mas o sistema básico separa as crianças em três tipos de escolas:
Hauptschule, para as de menor desempenho acadêmico, Realschule, para as de
desempenho médio, e Gymnasium, para as mais preparadas. O método de ensino e o
tipo de conteúdo varia de acordo com o nível da escola.
Em geral, essa separação é feita ao final da quarta série, quando as
crianças têm cerca de 10 anos. A maioria dos jovens que fazem Hauptschule ou
Realschule se formam com cerca de 15 anos e seguem para a educação
profissional. Os que fazem Gymnasium terminam o curso com cerca de 18 anos e
fazem o exame alemão para entrar numa universidade, o Abitur.
Nos últimos anos, alguns estados vêm reformando seus sistemas e
flexibilizando as regras. Em alguns deles, a separação é feita dois anos mais
tarde, ao final da sexta série, e há escolas mistas, que reúnem Hauptschule e
Realschule, ou escolas nas quais estudantes dos três níveis dividem o mesmo
espaço, mas usam salas diferentes.
O processo de decisão sobre quem irá para qual escola também varia. Na
maioria dos estados, os professores fazem uma recomendação aos pais, baseada em
notas e na sua avaliação pessoal sobre qual nível seria mais adequado à
criança. A recomendação costuma ser considerada seriamente pelos pais, que no
entanto têm a palavra final. Em dois estados, a decisão ainda é inteiramente do
professor: Baviera e Baden-Württemberg, no sul do país.
Há mecanismos para que os alunos da Hauptschule ou Realschule possam
tentar progredir para o Gymnasium. Ao final do curso, eles podem estudar por
mais três anos e, aos 21 anos, também prestar o Abitur. Mas os casos de pessoas
que fizeram Hauptschule e depois migram para o nível universitário são raros.
Entre os que fizeram Realschule, cerca de 30% seguem estudando para fazer o
Gymnasium.
A educação profissional costuma ser oferecida em conjunto com uma empresa,
com o tempo do aluno dividido entre a companhia, onde aprende o ofício com os
funcionários, e uma escola onde aprende os fundamentos teóricos. Nesse período,
o estudante já pode ganhar um salário e, ao final do curso, de em média três
anos, tem boas chances de ser contratado.
Mas nem todos que fazem Hauptschule e Realschule conseguem garantir uma
vaga na educação profissional, dependendo das notas, da região onde mora, do
setor em que pretende atuar e até de seu histórico familiar. Eles acabam
entrando em um sistema do estado que tentará encontrar colocação profissional e
treinamento para esses jovens.
Os que fizeram o Gymnasium e passaram no Abitur podem tentar uma vaga em
um dos mais de 400 institutos de ensino superior na Alemanha, de acordo com a
sua nota. Ao contrário do Brasil, onde o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
é feito de forma centralizada, na Alemanha cada estado elabora o seu exame, o
que provoca um certo desnivelamento. Alguns são conhecidos por aplicarem um
Abitur mais rigoroso, enquanto em outros o exame é mais fácil.
Críticas à divisão precoce das crianças
A separação aos 10 ou 12 anos de idade em diferentes escolas é alvo de
debate no país e entre pesquisadores da educação. Seus defensores afirmam que,
na maioria das nações, as crianças já são separadas de acordo com suas
habilidades, de maneira formal ou informal, e que o sistema permitiria que as
aulas sejam melhor adaptadas à capacidade de cada um: os de menor desempenho
não ficariam para trás, e os de melhor desempenho seguiriam sendo desafiados.
Mas também há muitas críticas. A socióloga Corinna Kleinert, vice-diretora
do Instituto Leibniz de Trajetórias Educacionais (LIfBi, na siga em alemão),
que realiza pesquisas periódicas para um relatório bianual financiado pelo
governo sobre a educação na Alemanha, afirma à DW Brasil que diversos estudos
empíricos já comprovaram algumas desvantagens desse sistema.
A primeira é o momento da segregação, que ocorre muito mais cedo na
Alemanha do que em outros países, diz Kleinert. Segundo ela, quanto mais
precoce a divisão, maior a chance de que a criança seja alocada em um nível que
não corresponde ao seu, pois aos 10 ou 12 anos ainda há muita incerteza sobre
suas habilidades. "Se a separação ocorre mais tarde, há mais elementos
sobre as habilidades reais", afirma.
Também está comprovado que a escolha não depende somente das habilidades
de cada criança, mas é influenciada pelo nível educacional e econômico de seus
pais. "Pais de alto status tendem a escolher e incentivar seus filhos a
seguirem o nível acadêmico [Gymansium], pois querem manter seu status social,
enquanto para pais com menor status isso não é tão importante", diz
Kleinert.
Pesquisas mostraram que as recomendações dos professores também são
tendenciosas, e que eles são propensos a recomendar o Gymnasium para crianças
de famílias com alto nível social e econômico, "pois confiam mais em seus
pais e no seu ambiente para apoiar essas crianças a se integrarem" nessas
escolas.
Há outros achados que revelam injustiças do sistema, diz Kleinert. Um
deles é que as crianças designadas para as escolas de nível mais alto tendem a
aprender mais do que crianças com habilidades similares que foram para os dois
níveis inferiores. "Elas são mais desafiadas, têm colegas com mais
habilidades e ambientes de aprendizagem mais vantajosos", diz.
No geral, ela afirma que há muita dependência da trajetória nesse sistema,
e o destino profissional de cada um acaba sendo em grande parte influenciado pelo
tipo de escola que cursou.
"Divisão reduz autoconfiança"
A alemã Jasmin Friese, de 31 anos, é um dos poucos exemplos de pessoas que
foram enviadas à escola de nível mais baixo, a Hauptschule, e mais tarde
fizeram universidade.
Ela nasceu em uma família de baixo status econômico e social em uma
pequena cidade do estado de Schleswig-Holstein. Aos 10 anos, seus professores
recomendaram que ela fosse para a Hauptschule, e seus pais concordaram. Aos 16
anos, porém, incentivada por um irmão mais velho, ela migrou para a Realschule,
e depois seguiu os estudos para entrar em uma universidade.
No ensino superior, ela estudou ciências da educação e história da arte, e
hoje mora em Leipzig e trabalha na ArbeiterKind, uma organização que apoia
adolescentes que estão para trás no nível de aprendizagem mas gostariam de
entrar em uma universidade. Friese é crítica da separação precoce e afirma que
o sistema reduz a autoconfiança e afeta a percepção que as crianças têm de si
mesmas.
Ela lembra que, aos 10 anos, nas conversas com seus colegas de sala,
muitos diziam que não queriam ir para a Hauptschule, pois ali estariam apenas
os piores. "Mas, naquele momento, eu sabia que iria para lá, pois minhas
notas eram medianas e eu não tinha coragem de falar nas aulas, o que devia
fazer meus professores acharem que eu não era inteligente. Mas eu era muito
tímida", diz. "Naquele momento, eu sabia que nunca poderia conquistar
tanto como os outros."
Friese afirma que essa divisão faz muitas crianças passaram por um
processo de desvalorização que afeta a percepção que têm si próprias e a sua
autoconfiança, e atinge com mais intensidade aquelas que vêm de famílias mais
pobres, como ela.
Vantagens para as empresas
O sistema de separação escolar está muito conectado ao ensino técnico, e
não só na Alemanha. Na comparação internacional, países que têm uma educação
profissional forte e desenvolvida tendem a também ter uma separação dos jovens
mais cedo, segundo Kleinert.
E esse modelo é apreciado pelas empresas, pois os diferentes certificados
que os jovens conquistam dão clareza na hora de selecionar os funcionários para
diferentes funções. "Isso reduz a incerteza dos empregadores sobre a
produtividade dos candidatos", afirma.
Ela diz não haver uma justificativa boa o suficiente para a divisão das
crianças ocorrer tão cedo na Alemanha, mas afirma que a educação profissional,
em si, é muito positiva para o país e oferece vantagens para os jovens que
seguem esse caminho.
"O [nosso] sistema econômico depende muito de trabalhadores com
habilidades específicas, pois tem um forte setor produtivo, de empresas
automotivas e de engenharia, com muitas companhias pequenas e médias que
necessitam de funcionários qualificados", diz.
Ela ressalta que a educação profissional alemã oferece um "nível muito
alto" de formação, o que torna difícil compará-la com a média da OCDE, e
permite que seja adaptada conforme a economia evolui, alterando os tipos de
cursos oferecidos. Além disso, o modelo é atrativo para os adolescentes, pois
oferece segurança no emprego e bons salários. "Mas não pode ser replicado
facilmente em outros países, pois está ligado a raízes históricas da
Alemanha", diz.
"É bom para aprender uma profissão"
Lukas Weber, de 29 anos, cresceu no estado de Rheinland-Palatinato, fez
educação profissional e diz estar satisfeito com a sua formação. Hoje morador
de Colônia, ele trabalha para uma empresa alemã que produz máquinas de secagem
por congelamento. Sua função envolve viajar pela Alemanha e outros países para
fazer manutenção e atualização desses equipamentos, que são utilizados
inclusive no processo de fabricação de vacinas contra a covid-19.
Aos 10 anos de idade, Weber afirma que cogitava ir para o Gymnasium e
fazer universidade, mas seus professores recomendaram que ele fosse para a
Realschule, e seus pais concordaram com os professores. Na escola, ele acabou
desistindo do plano da universidade.
Ao terminar o ensino, com 16 anos, ele iniciou a formação técnica em
mecânica industrial, conjugada com um estágio profissional. Por três anos, ele
ia para a empresa três dias por semana, e nos outros dois para uma escola. Aos
17 anos, já ganhava um salário de 750 euros (R$ 4,6 mil), e aos 20 anos se
formou e foi contratado. Mais tarde, ele fez uma formação técnica complementar
em engenharia mecânica.
"É uma boa combinação para aprender uma profissão. Você aprende na
própria empresa, com pessoas que fazem aquele trabalho, e quando se forma está
preparado para desempenhá-lo", afirma. "Muitas pessoas que estão
estudando [na universidade], quando vão para a empresa, acabam aprendendo como
fazer o trabalho lá."
Educação profissional no Brasil
No Brasil, a educação profissional, também chamada de ensino técnico,
atrai cada vez mais jovens. Em 2020, havia 1,9 milhão deles matriculados em um
curso do tipo, alta de 4,1% em relação a 2016. Já no ensino médio, eram 7,5
milhões de matriculados, queda de 7,2% no mesmo período.
Os brasileiros têm acesso a três tipos de educação profissional: integrada
ao ensino médio; concomitante, na qual os alunos fazem o curso técnico
paralelamente à escola; e subsequente, quando o aprendizado é feito depois. Há
o sistema público, como o oferecido pelos institutos federais e pelo Centro
Paula Sousa, em São Paulo, e o privado, oferecido por entidades do Sistema S,
como o Senai.
Remi Castioni, professor da Faculdade de Educação da Universidade de
Brasília e especialista em educação profissional, afirma que a declaração do
ministro Milton Ribeiro de que o Brasil precisa de mais ensino desse tipo
"tem fundamento", mas isso não deveria ser feito diminuindo a
importância do ensino superior.
Mais relevante do que reduzir o acesso à universidade, afirma, seria o
país enfrentar diversos desequilíbrios que enfraquecem a educação profissional,
que segundo ele é fundamental para que o Brasil acelere seu desenvolvimento.
Um desses desequilíbrios está nos próprios institutos federais, que
segundo Ribeiro seriam a "vedete no futuro". Castioni afirma que,
apesar de ser a modalidade com o maior custo por aluno na educação
profissional, esses institutos têm um perfil muito acadêmico e pouco conectado
às empresas. Além disso, atraem muitos estudantes que não pretendem seguir
carreira técnica, mas apenas aproveitar o alto nível do ensino oferecido ali
para conseguir uma boa nota no Enem e nos vestibulares e conseguir vaga em uma
universidade. Segundo Castioni, a educação profissional no Brasil que mais se
aproxima do modelo alemão é a oferecido pelo Sistema S, bastante conectada com
as empresas.
Outro aspecto estrutural que desincentiva o ensino técnico no país é a
alta diferença de renda entre as pessoas que têm diploma de ensino superior dos
que não têm. Um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) em 2018 mostrou que, no Brasil, essa diferença salarial é de
2,5 vezes, enquanto na média de 36 países da OCDE é de 1,6 vezes.
"Essa alta diferença salarial gera um grande mercado para o ensino
superior, e força as pessoas a buscarem isso, na perspectiva de quem tem
diploma ganha mais. Mas muitos cursos são de péssima qualidade", afirma.
Castioni também identifica um componente cultural na desvalorização do
ensino técnico. "O Brasil vendeu a ideia de que, para se dar bem na vida,
precisa ter ensino superior, e há uma certa depreciação do trabalho
manual", afirma, remetendo às características da colonização brasileira e
ao prestígio atribuído aos bacharéis.
Ele diz que a reforma do ensino médio, sancionada em 2017, aponta na
direção certa ao aumentar o número de disciplinas optativas e colocar a
formação profissional como uma das opções que podem ser seguidas pelos alunos.
Deutsche Welle
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