quinta-feira, 19 de agosto de 2021

'Doria não vai mais poder dizer que está seguindo a ciência', diz médico dispensado do Centro de Contingência


A dissolução do Centro de Contingência, grupo de 21 cientistas e médicos que auxiliava nas decisões de combate à Covid no governo de São Paulo, abre espaço para um novo comitê, de apenas sete remanescentes da formação original, com maior adesão às medidas de flexibilização da quarentena. Essa é a visão de membros que foram dispensados nos últimos dias, uma decisão confirmada na segunda-feira à noite pelo Palácio dos Bandeirantes.

 

Um deles é o infectologista Marcos Boulos, superintendente da Sucen (Superintendência de Controle de Epidemias). Para ele, que também é professor da Faculdade de Medicina da USP, a pressão de setores do comércio prevaleceu sobre a assessoria técnica da gestão estadual para lidar com a pandemia.

Ele compara a extinção do Comitê à postura pública do governador João Doria (PSDB). O tucano vem se dedicando, em seus discursos e coletivas de imprensa, a se contrapor ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a quem chama de “negacionista da ciência”.

— Doria não vai mais poder dizer que está seguindo a ciência. Vai continuar criticando o Bolsonaro, mas eles estão muito próximos — diz Boulos.

O médico afirma que o Centro de Contingência esperava "há algum tempo" que Doria pudesse dissolver o grupo, já que as decisões do governo de São Paulo, segundo ele, têm sido tomadas à revelia das orientações dos especialistas. Boulos afirma que a flexibilização iniciada nesta terça-feira, na qual caíram todas as restrições de ocupação e horários de funcionamento do comércio, além da possível retomada de público em estádios de futebol em novembro, por exemplo, não passaram pelo Centro de Contingência.

— Nós vínhamos sendo pouco ouvidos. Com frequência, nossas sugestões não eram aceitas. Estavam flexibilizando mais do que a gente gostaria — declara ele, que é pai de Guilherme Boulos, político que já foi candidato do PSOL à Presidência da República e à Prefeitura de São Paulo.

Assim como parte dos colegas do antigo comitê, Boulos considera estar cedo para a flexibilização implementada pelo governo paulista, já que a circulação da variante Delta, mais transmissível, tem acelerado no estado.

O clima de discordância culminou em uma fala mais forte do governador na última semana, conta outro membro que deixou o grupo. Ele disse à reportagem, reservadamente, que Doria afirmou ao comitê que eles haviam chegado "a um ponto de inflexão" e que era preciso "um maior alinhamento com as demandas e necessidades do governo". O ex-integrante critica a postura. "Isso é uma afronta, porque as necessidades são da população, não do governo".

Apesar da dispensa anunciada na sexta-feira aos membros, havia ficado pendente uma última reunião do Centro de Contingência na manhã desta terça-feira, período em que tradicionalmente debatiam o cenário da epidemia e as ações recomendáveis. O encontro, apesar de não ter sido oficialmente cancelado, acabou não acontecendo por falta de adesão. O grupo recebeu convite, no entanto, para uma cerimônia de agradecimento que deve ocorrer na semana que vem no Palácio dos Bandeirantes, para encerrar o ciclo com os antigos integrantes.

Futuro

A cepa identificada inicialmente na Índia e hoje espalhada por todos os continentes, causando picos de casos mesmo em locais com vacinação avançada, será o maior desafio do novo grupo instituído pela gestão Doria para auxiliar nas decisões de combate ao coronavírus. A turma, cujos nomes foram escolhidos nos últimos dias pelo governo, é integrada por sete membros da formação original do Centro de Contingência: João Gabbardo, Paulo Menezes, David Uip, José Medina, Geraldo Reple Sobrinho, Carlos Carvalho e Luiz Carlos Pereira Júnior.

O modo de trabalho do comitê na nova fase, no entanto, ainda não está definido. Um dos especialistas que se manteve no grupo reduzido contou ao GLOBO que os detalhes estão em acerto. Questionado sobre as acusações de que permaneceram no Centro de Contingência os "mais alinhados" ao governo Doria, ele afirmou que ficaram os que "têm maior compreensão das necessidades e pressões do governo".

Entre ex-integrantes, a leitura é de que a academia não está mais representada na nova turma. Em maioria, os remanescentes são profissionais de saúde com um histórico de gestão pública. Na nova formação, os infectologistas somam somente dois (Uip e Pereira Júnior).

O governo de São Paulo refuta as críticas de mudança de perfil do grupo e afirma que elas desconsideram a qualificação dos membros do Comitê Científico. Em nota enviada ao GLOBO, a Secretaria de Estado da Saúde afirma que "cada membro do grupo tem excelência reconhecida nacional e internacionalmente, tanto no exercício da medicina quanto nos estudos na área". E diz que "não se pode esperar que um grupo tão grande continue atuando pro bono por mais tempo", depois de um ano e meio de funcionamento.

"O Centro sempre teve caráter colegiado e eventuais opiniões isoladas dos que o compunham não refletem seu propósito e conceito, nem a contribuição para que o Governo de SP atuasse com plena responsabilidade no combate e controle da COVID-19, com base na Saúde e na Ciência", diz o texto da nota.

A pasta afirma que a reformulação do grupo ocorre em meio a um novo contexto epidemiológico, de queda de casos, internações e mortes por Covid, e considerando ainda "as necessidades destes especialistas, que atuam em hospitais e na Academia têm diante de si outras demandas também fundamentais para assistir a população e contribuir com a medicina brasileira e internacional".

Ainda de acordo com a pasta, os ex-integrantes do grupo permanecem em contato com o governo "e agradeceram ao governador e aos membros do colegiado, reconhecendo a importância do trabalho conjunto nesta missão coletiva".

Guilherme Caetano, Elisa Martins e Giuliana de Toledo, O Globo


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