A odisseia
de Josenaldo Silva e um grupo de amigos por galerias fluviais para encontrar
Alexandre da Silva, que sumiu há um mês
“Fiquei sabendo quando estava me preparando para dormir. Era meia-noite e meia quando o pessoal chegou gritando. Achei que fosse alguma algazarra dos amigos de meu filho. A princípio, não imaginei que fosse algo sério. Quando abri a janela, disseram: ‘Aconteceu um acidente lá na (Avenida) Jambeiro e seu filho caiu dentro do valão’. Aquele valão é perigoso demais. Conversei com alguns moradores e eles disseram que todo verão cai gente lá e não tem proteção. Um rapaz da prefeitura disse que o motivo disso é por não ser uma área de pedestres, mas meu filho Alexandre caiu de carro. Qual a justificativa?”
Antes de terminar a fala que questionava a falta de proteção ou de um guarda-corpo no Rio Valqueire, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, Josenaldo Silva interrompeu a entrevista por pouco mais de um minuto para conversar com uma conhecida de sua igreja. Rapidamente, concluiu o diálogo dizendo: “Está tudo bem encaminhado, daqui a pouco vamos ter uma surpresa, é só ter fé”. Há mais de um mês, Silva percorre regiões pouco exploradas do Rio em busca de respostas para o paradeiro do filho, que desapareceu na noite chuvosa de 2 de fevereiro. Segundo ele, a romaria inclui locais onde o Estado não ousa entrar.
Moradores da Zona Norte fluminense, Silva e sua família passaram por momentos dramáticos quando Alexandre Paulo da Silva, motorista de aplicativo, de 29 anos, desapareceu depois que seu veículo caiu numa enorme vala aberta para a passagem do rio, em Vila Valqueire, durante a tempestade. Apesar da tragédia, quando se refere ao filho, o tempo verbal que ele utiliza é sempre o presente; quando recorre ao pretérito, Silva se corrige. No carro, estavam também a esposa de Alexandre, Isabely Silva, e o bebê do casal, Isaque, de 10 meses. O motorista conseguiu salvar a mulher e o filho antes de ser tragado pelo rio.
Em sua busca, Silva soube de muitos corpos encontrados que não haviam sido reconhecidos. Mas nada de Alexandre. Esteve em áreas comandadas por facções, procurou em morros e recorreu até mesmo a mergulho. Toda essa operação de resgate foi comandada quase totalmente por amigos de Alexandre que se mobilizaram diante de seu desaparecimento. Poucas horas depois do acidente, criaram um grupo chamado “Tudo pelo Xandi”, que começou com cinco pessoas e chegou a 200. “Com o passar dos dias, fiquei preocupado, porque os garotos começaram a ficar doentes, febris, com diarreia”, relembrou Silva, referindo-se aos amigos do filho. Por causa das más condições das buscas, eles voltavam fragilizados. Graças à ajuda de terceiros, conseguiram doações de água, álcool e energético. “Nos dois primeiros dias, eles foram com uma garrafinha de água quente, com a cara e a coragem”, lembrou Silva.
O resultado, contudo, não foi o esperado. E por “esperado” entende-se até mesmo a possibilidade de encontrar apenas o corpo de Alexandre. “Não ter um corpo é pior que ter”, disse o pai. “Agora, tivemos de encerrar as buscas, pois não temos mais onde procurar. Vamos ter de aguardar em Deus, que é a solução. A única coisa que temos agora é a fé de que ele vai voltar andando, porque eu tenho quase certeza que, se ele estivesse morto, a gente achava o corpo. E onde está esse corpo? Batemos em todas as galerias. Se estivesse em algum mato, um urubu daria sinal. Eles encontraram corpos, alguns sem cabeça, outros em decomposição, algumas ossadas. Encontraram pessoas escondidas embaixo daquelas pontes”, contou. Mas nada de Alexandre.
A busca começou no ponto do desaparecimento, em Vila Valqueire, onde o grupo desceu nas galerias pluviais do rio — com 5,6 quilômetros de extensão. Foram 150 metros de cada vez, devido ao tamanho da corda. A estrutura amadora foi se profissionalizando. Ao saber do ocorrido, pessoas que nem sequer conheciam Alexandre ajudaram financeiramente os amigos. Conforme ficava mais numeroso, o grupo passou a se dividir. Enquanto cerca de 50 pessoas partiam para as buscas, outro grupo ficava responsável pelos alimentos e um terceiro pela arrecadação, pelas compras e pelas demais demandas. “Passamos por todas as galerias do rio, que atravessa diversas comunidades. Palmeirinha, Honório Gurgel, Acari. E entramos em uma por uma, cada uma dominada por uma facção diferente, para a qual tínhamos de pedir permissão para entrar”, relembrou Wesley Araújo, um dos amigos de Alexandre e dono da casa que se transformou no quartel-general do grupo.
As dezenas de horas de buscas com barco pelos rios levaram a turma a diversos canais que desembocam na Baía de Guanabara. “Rodamos por perto do Aeroporto do Galeão, perto da base da Aeronáutica e do canal por onde o rio desaguava”, explicou Araújo, que dedicou um mês às buscas, enquanto o Corpo de Bombeiros investiu pouco mais de dez dias. “O que eles fizeram, colocando a vida em risco ao entrar em lugares onde nem o governo entra... O Corpo de Bombeiros tem burocracia, não é? De passar de um quartel para o outro, mudar de comandante, falar que está morto. Eles já nos colocam em desânimo, ao achar que é uma batalha perdida”, contou Silva. Em nota, o Corpo de Bombeiros disse ter feito todo o possível e que “todas as possibilidades foram esgotadas”.
A demora para receber notícias sobre o paradeiro de Alexandre reacendeu no pai e na esposa, Isabely, a esperança de que ele esteja vivo. “Agora, nossas buscas têm sido pelos hospitais e pelas ruas. Há um tempo, eu até estava cogitando (a possibilidade de morte), mas, agora, não. Já passou por minha cabeça que podia, sim, acontecer o pior, mas sou uma pessoa de muita fé e minha fé diz que ele vai voltar com vida”, contou Isabely. Já Silva insiste no tempo presente. “Às vezes, colocamos um filho no mundo e acontece de não sair muito bem. Mas ele não. Meu filho era meu amigo. Ele é meu amigo.”
“Fiquei sabendo quando estava me preparando para dormir. Era meia-noite e meia quando o pessoal chegou gritando. Achei que fosse alguma algazarra dos amigos de meu filho. A princípio, não imaginei que fosse algo sério. Quando abri a janela, disseram: ‘Aconteceu um acidente lá na (Avenida) Jambeiro e seu filho caiu dentro do valão’. Aquele valão é perigoso demais. Conversei com alguns moradores e eles disseram que todo verão cai gente lá e não tem proteção. Um rapaz da prefeitura disse que o motivo disso é por não ser uma área de pedestres, mas meu filho Alexandre caiu de carro. Qual a justificativa?”
Antes de terminar a fala que questionava a falta de proteção ou de um guarda-corpo no Rio Valqueire, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, Josenaldo Silva interrompeu a entrevista por pouco mais de um minuto para conversar com uma conhecida de sua igreja. Rapidamente, concluiu o diálogo dizendo: “Está tudo bem encaminhado, daqui a pouco vamos ter uma surpresa, é só ter fé”. Há mais de um mês, Silva percorre regiões pouco exploradas do Rio em busca de respostas para o paradeiro do filho, que desapareceu na noite chuvosa de 2 de fevereiro. Segundo ele, a romaria inclui locais onde o Estado não ousa entrar.
Moradores da Zona Norte fluminense, Silva e sua família passaram por momentos dramáticos quando Alexandre Paulo da Silva, motorista de aplicativo, de 29 anos, desapareceu depois que seu veículo caiu numa enorme vala aberta para a passagem do rio, em Vila Valqueire, durante a tempestade. Apesar da tragédia, quando se refere ao filho, o tempo verbal que ele utiliza é sempre o presente; quando recorre ao pretérito, Silva se corrige. No carro, estavam também a esposa de Alexandre, Isabely Silva, e o bebê do casal, Isaque, de 10 meses. O motorista conseguiu salvar a mulher e o filho antes de ser tragado pelo rio.
Em sua busca, Silva soube de muitos corpos encontrados que não haviam sido reconhecidos. Mas nada de Alexandre. Esteve em áreas comandadas por facções, procurou em morros e recorreu até mesmo a mergulho. Toda essa operação de resgate foi comandada quase totalmente por amigos de Alexandre que se mobilizaram diante de seu desaparecimento. Poucas horas depois do acidente, criaram um grupo chamado “Tudo pelo Xandi”, que começou com cinco pessoas e chegou a 200. “Com o passar dos dias, fiquei preocupado, porque os garotos começaram a ficar doentes, febris, com diarreia”, relembrou Silva, referindo-se aos amigos do filho. Por causa das más condições das buscas, eles voltavam fragilizados. Graças à ajuda de terceiros, conseguiram doações de água, álcool e energético. “Nos dois primeiros dias, eles foram com uma garrafinha de água quente, com a cara e a coragem”, lembrou Silva.
O resultado, contudo, não foi o esperado. E por “esperado” entende-se até mesmo a possibilidade de encontrar apenas o corpo de Alexandre. “Não ter um corpo é pior que ter”, disse o pai. “Agora, tivemos de encerrar as buscas, pois não temos mais onde procurar. Vamos ter de aguardar em Deus, que é a solução. A única coisa que temos agora é a fé de que ele vai voltar andando, porque eu tenho quase certeza que, se ele estivesse morto, a gente achava o corpo. E onde está esse corpo? Batemos em todas as galerias. Se estivesse em algum mato, um urubu daria sinal. Eles encontraram corpos, alguns sem cabeça, outros em decomposição, algumas ossadas. Encontraram pessoas escondidas embaixo daquelas pontes”, contou. Mas nada de Alexandre.
A busca começou no ponto do desaparecimento, em Vila Valqueire, onde o grupo desceu nas galerias pluviais do rio — com 5,6 quilômetros de extensão. Foram 150 metros de cada vez, devido ao tamanho da corda. A estrutura amadora foi se profissionalizando. Ao saber do ocorrido, pessoas que nem sequer conheciam Alexandre ajudaram financeiramente os amigos. Conforme ficava mais numeroso, o grupo passou a se dividir. Enquanto cerca de 50 pessoas partiam para as buscas, outro grupo ficava responsável pelos alimentos e um terceiro pela arrecadação, pelas compras e pelas demais demandas. “Passamos por todas as galerias do rio, que atravessa diversas comunidades. Palmeirinha, Honório Gurgel, Acari. E entramos em uma por uma, cada uma dominada por uma facção diferente, para a qual tínhamos de pedir permissão para entrar”, relembrou Wesley Araújo, um dos amigos de Alexandre e dono da casa que se transformou no quartel-general do grupo.
As dezenas de horas de buscas com barco pelos rios levaram a turma a diversos canais que desembocam na Baía de Guanabara. “Rodamos por perto do Aeroporto do Galeão, perto da base da Aeronáutica e do canal por onde o rio desaguava”, explicou Araújo, que dedicou um mês às buscas, enquanto o Corpo de Bombeiros investiu pouco mais de dez dias. “O que eles fizeram, colocando a vida em risco ao entrar em lugares onde nem o governo entra... O Corpo de Bombeiros tem burocracia, não é? De passar de um quartel para o outro, mudar de comandante, falar que está morto. Eles já nos colocam em desânimo, ao achar que é uma batalha perdida”, contou Silva. Em nota, o Corpo de Bombeiros disse ter feito todo o possível e que “todas as possibilidades foram esgotadas”.
A demora para receber notícias sobre o paradeiro de Alexandre reacendeu no pai e na esposa, Isabely, a esperança de que ele esteja vivo. “Agora, nossas buscas têm sido pelos hospitais e pelas ruas. Há um tempo, eu até estava cogitando (a possibilidade de morte), mas, agora, não. Já passou por minha cabeça que podia, sim, acontecer o pior, mas sou uma pessoa de muita fé e minha fé diz que ele vai voltar com vida”, contou Isabely. Já Silva insiste no tempo presente. “Às vezes, colocamos um filho no mundo e acontece de não sair muito bem. Mas ele não. Meu filho era meu amigo. Ele é meu amigo.”
Por Marcelo Antonio Ferreira, na
Revista Época
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