terça-feira, 30 de agosto de 2016

Tesouro ameaçado


Um dos mais importantes sítios arqueológicos do país, o Parque Nacional Serra da Capivara está em risco. Por falta de recursos, a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), até então responsável pela manutenção das vias de acesso e conservação das centenas de painéis com pinturas rupestres, anunciou o fim das atividades. De forma emergencial, a equipe de seguranças contratada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) teve o esquema de plantão alterado para manutenção de quatro dos 28 portões de acesso abertos aos visitantes. Mas os tesouros arqueológicos, que estão entre os mais antigos registros de ocupação humana das Américas, estão com sua existência ameaçada. A importância histórica e cultural do parque será ressaltada na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos Rio 2016, no próximo domingo.

— Estamos completamente sem recursos desde o mês de maio. Não dá mais — lamenta a fundadora e presidente da Fumdham, Niède Guidon, de 83 anos, informando que os últimos 30 funcionários, de um total de 270 que a fundação já teve, estão de aviso prévio e serão demitidos no fim do mês. — As pesquisas continuam, os laboratórios e o museu estão abertos, mas retiramos os funcionários das guaritas e da conservação das estradas e dos sítios arqueológicos no parque.

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Criado em 1979, o Parque Nacional Serra da Capivara abrange uma área de 129.140 hectares, no sertão do Piauí. Em 1991, a reserva foi listada como Patrimônio Mundial pela Unesco. Já foram descobertos quase mil sítios arqueológicos, sendo que 172 deles estão preparados para a recepção de visitantes. Apesar de controversos, estudos com datação por radiocarbono apontam indícios da presença humana no continente, como instrumentos de pedra lascada, há 60 mil anos, o que coloca em xeque a teoria de povoamento das Américas pelo Estreito de Bering.

Além de artefatos humanos, como pinturas, ferramentas e restos mortais, a região é rica em vestígios arqueológicos de fauna e flora. No passado, o parque abrigava densa vegetação como a atual Mata Atlântica. Escavações já descobriram fósseis de preguiças gigantes, mastodontes e tigres-dentes-de-sabre, entre outras espécies já extintas. Hoje, a vegetação de caatinga predomina, e os visitantes podem se deslumbrar com o avistamento de tatus, tamanduás, veados e mocós, além de centenas de outras espécies animais.

INSTALAÇÕES DE NÍVEL INTERNACIONAL

 A infraestrutura do parque impressiona. Ainda na década de 1970, a arqueóloga francobrasileira Niède Guidon conheceu a região e foi uma das pioneiras no estudo das pinturas rupestres. A pesquisadora fazia viagens de campo regulares com seus alunos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, até ser designada pelo governo francês para a implantação do parque, em 1992.

— Eu achava que não podíamos deixar a Serra da Capivara ser destruída. Para isso, tive que lutar muito, por isso fiquei aqui — conta Niède. — Estou absolutamente desiludida com o Brasil. Tenho a sensação que trabalhei os últimos 25 anos inutilmente.

Com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento e dos governos da França e da Itália, Niède se embrenhou no sertão piauiense e construiu instalações de nível internacional. Dos 172 sítios abertos à visitação, muitos são adaptados para pessoas com deficiência, e todos podem ser acessados por uma rede interna de 450 quilômetros de estradas. Ao redor do parque foram construídas 28 guaritas para o controle do acesso, instaladas a cada dez quilômetros. Durante os dez primeiros anos, a fundação manteve cinco escolas de tempo integral, com aulas de inglês e francês, para a formação de profissionais para o turismo, mas a iniciativa não foi continuada pelo governo brasileiro. O projeto inicial do Parque Nacional Serra da Capivara previa fluxo anual de cinco milhões de turistas, mas a falta de contrapartidas do governo, como a demora de 12 anos na construção do aeroporto mais próximo, sabotaram as projeções. 

Hoje, o parque atrai apenas 35 mil visitantes anuais.

Para manutenção de todas as guaritas abertas e conservação dos sítios arqueológicos e da rede de estradas, Niède estima que seriam necessários R$ 450 mil por mês, mas desde 2014 o ingresso de recursos rareou. De acordo com a arqueóloga, a maior parte das receitas vinha de patrocínio da Petrobras, mas as verbas foram cortadas por causa da crise. Um novo contrato com a estatal foi assinado no mês passado, mas o dinheiro ainda não foi liberado.

Para tentar conter a crise, o Ministério do Meio Ambiente anunciou anteontem a liberação de R$ 969 mil, oriundos do fundo de compensação ambiental, no intuito de renovar a parceria com a Fumdham, mas a verba está bloqueada na Caixa Econômica Federal, por decisão do Tribunal de Contas da União. Apesar de a fundação atuar na conservação e manutenção do parque há décadas, não existe um contrato para a liberação de recursos.

Em comunicado, o ICMBio informa que os recursos serão liberados assim que a pendência for resolvida. O órgão reconhece a “importância estratégica da parceria e tem total interesse na manutenção da cooperação histórica”. O Ministério do Meio Ambiente afirma que a “decisão política do ministro de fortalecer cada vez mais a parceria com a Fumdham na administração do parque já foi tomada”.

— A questão mais preocupante é com a conservação das pinturas — diz Melina Andrade, analista ambiental do ICMBio lotada no parque. — Temos 35 vigilantes que estão garantindo a entrada e saída dos visitantes. Eles faziam a vigilância no parque, mas tivemos que alterar a escala. Por isso, as rondas ficaram enfraquecidas — revela.

Segundo Melina, o ICMBio continuará cumprindo sua função de proteção ambiental e gerenciamento do parque, mas a conservação do patrimônio histórico e arqueológico caberia ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em comunicado, o Iphan informa que mantém um escritório técnico no município de São Raimundo Nonato e “faz ações permanentes de preservação, conservação, diagnósticos e proteção do local”. Para compensar a redução da equipe de vigilância, Melina planeja o pedido de uma operação de fiscalização com analistas externos. — Para a manutenção das estradas, só com concurso público ou contrato — afirmou Melissa. — Sobre a conservação, estou elaborando uma nota técnica sobre a deterioração das pinturas por causa dos mocós. Espero que consigamos encontrar uma solução para esse problema.

Por Sérgio Matsuura, em O Globo



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