Hitler entre Winifred e Wieland Wagner, na abertura do Festival de Bayreuth, em 24 de julho de 1938 |
Ditador nazista era fã ardoroso da música do compositor e presença
constante no Festival de Bayreuth, que inicia série de simpósios destinados à
análise crítica da obra de Wagner.
Na tela, um convidado simpático, gentil e elegante, trajando
smoking e gravata borboleta, conversa de forma descontraída com a diretora do
festival e com os netos de Wagner. De repente, um alerta interrompe a exibição:
"Parem o filme! Desligue o celular! Gravações são estritamente
proibidas!" Pouco depois, a exibição é retomada.
As gravações são proibidas durante a exibição dessa película
histórica no Museu Richard Wagner, na Casa Wahnfried, em Bayreuth, porque uma
possível difusão pela internet significaria uma infração aos direitos de imagem
de uma das pessoas que aparecem nela: Verena Wagner, a última neta viva de
Richard Wagner. O filme pertence ao espólio de um outro neto, Wolfgang Wagner,
que o gravou quando tinha apenas 16 anos. A gravação foi exibida durante o
simpósio Wagner no
Nacional-Socialismo – sobre a questão do pecado original na arte.
O que se vê na tela são imagens do Festival de Bayreuth de 1936:
a subida até o Teatro do Festival, no alto da colina; o diretor Heinz Tietjen;
o ministro da Propaganda, Josef Goebbels; o dirigente Wilhelm Furtwängler; uma
sorridente Winifred Wagner, a diretora do festival e mãe de Wolfgang. E, depois
da apresentação, o Führer no palco, ao lado do coral e dos solistas, recebendo
os aplausos da plateia. A saudação nazista é feita várias vezes. Quem
assiste às imagens não consegue evitar o desconforto de ver Hitler ser
apresentado como uma pessoa agradável e simpática.
Wagner
no palco como antissemita
Já quem esperava que o simpósio sobre Wagner e o nazismo
trouxesse revelações sensacionais saiu dele decepcionado. O tema também não é
nenhuma novidade em Bayreuth, como lembra o diretor do festival, Sven
Friedrich. Ao longo dos próximos anos, a temática deverá ser aprofundada,
em seus vários aspectos, na série de simpósios
"Discurso Bayreuth", que integra a programação paralela do
festival.
Já nos anos 1980 e 1990 houve uma exposição e um simpósio com o
nome Hitler e os
judeus. Nas proximidades do busto de Richard Wagner, na Colina
Verde, ainda pode ser vista a exposição Vozes
caladas, de 2012, sobre os colaboradores judeus do Festival de
Bayreuth e o que aconteceu com eles. E, desde a abertura do Museu Richard
Wagner, em 2015, o local tematiza também a evolução das convicções ideológicas
do compositor.
Mas o assunto está longe de ter se esgotado. Declarações
como "mas Wagner não tem culpa disso" ou "vamos ignorar toda
essa imundice que foi associada a Wagner" podem ser ouvidas ainda hoje.
Friedrich lembrou a "dimensão metapolítica da obra de Wagner, que a tornou
assimilável pelos nazistas".
O simpósio começou com um debate intenso sobre a atual encenação de Os mestres cantores de Nurembergue, sob responsabilidade do dirigente
australiano Barrie Kosky, que tem raízes judaicas. Ele apresentou Wagner no
palco, pela primeira vez, como um antissemita e, com os seus cenários – por
exemplo o salão dos Julgamentos de Nurembergue –, incluiu o
histórico de encenações da obra na sua interpretação.
Para a autora alemã Irmela von der Lühe, a encenação de Kosky é
a concretização de uma exigência que o escritor Thomas Mann fizera já em 1947.
Ao palestrar sobre as relações entre Mann e Bayreuth, Von der Lühe lembrou que
o Prêmio Nobel de Literatura de 1929, que então vivia no exílio californiano,
rejeitou o convite para ser presidente de honra de uma planejada fundação para
a reabilitação do desacreditado Festival de Bayreuth, ao menos "enquanto
não estiver às claras tudo o que houver sobre o pecado original de
Bayreuth".
E em 2017 já está tudo às claras? O espólio de Wolfgang Wagner
foi entregue ao arquivo histórico da Baviera em 2013 e levará anos para ser
estudado. Outras fontes devem estar faltando, o que não se sabe exatamente. Mas
uma encenação como esta de Kosky teria sido possível em 1951, na reabertura do
Festival de Bayreuth? Em vez de uma enfrentamento crítico com o histórico
da obra, o que se viu então foi uma encenação descompromissada e focada no
aspecto mítico, a cargo de Wieland Wagner.
Trata-se de repressão do passado? Uma coisa é certa: havia
muitos convidados do exterior na reinauguração, sobretudo da França, e entre
eles muitos judeus que sobreviveram ao Holocausto e eram admiradores fervorosos
de Wagner. O reinício do Festival de Bayreuth foi acompanhado com interesse em
todo o mundo.
Uma
questão de música ou ideias?
Em 1949, Thomas Mann escreveu, numa carta: "Está lá
– na fanfarrice, no eterno ficar dando discurso, na necessidade de falar
mais alto que os outros, de querer dar palpite em tudo – uma inominada
imodéstia que serviu de modelo a Hitler – com certeza, há muito 'Hitler' em
Wagner." Ainda assim, Mann via Wagner mais como um cosmopolita europeu do
que como um proto-nazista. E muito antes da catástrofe da Segunda Guerra Mundial
e do Holocausto, esse crítico de primeira hora de Hitler escreveu: "A
ideia de que esse velhaco idiota por lá desfrute de um romantismo
heroico-açucarado é repulsiva para além de todas as medidas."
Com frequência se constata que o espírito no qual Wagner
escreveu suas obras é, desde o início, racial e antissemita. Esse aspecto foi
abordado na palestra Hitler
e sua Bayreuth à parte: Richard Wagner como analista do século 20,
da escritora suíça Micha Brumlik. Segundo ela, no artista há
"processos pré-conscientes e inconscientes que se incorporam em seu
trabalho, e o que se manifesta é mais do que o autor pretendia."
O uso que os nazistas fizeram de Wagner e a bajulação do
Festival de Bayreuth em torno de Hitler costumam ser apresentados como
mal-entendidos ou relativizados com o argumento do distanciamento histórico,
afinal Wagner morreu em 1883.
Em 1923, porém, o genro de Wagner, Houston Stewart Chamberlain,
e a nora do compositor, Winifred Wagner, saudaram Hitler como o novo Parsifal e
o novo messias da Alemanha. Já em 1925, o Festival de Bayreuth foi politizado
com a presença de Hitler. O historiador e nacionalista Chamberlain era
considerado um "precursor de Hitler" e justificava suas teses
racistas com a superioridade da música alemã. Nesse sentido, ele argumentava
que, como os alemães eram gigantes na música, também deveriam ser gigantes na
política.
Foi o discurso inflamado de Wagner ou a sua aversão a judeus que
inspiraram Hitler? O simpósio tocou apenas de leve nessa questão central.
Sabe-se que Wagner tornou o antissemitismo socialmente palatável nos círculos
burgueses com seu panfleto O
judaísmo e a música. Mas ele também elogiou os judeus, chamando-os
de "os mais nobres entre nós". O que Cosima Wagner, que sobreviveu ao
marido em quase meio século e que agrupava nacionalistas germanófilos em torno
de si, assimilou diretamente de Richard Wagner? O quanto ela selecionou entre
as inúmeras declarações contraditórias do compositor? Esse seria um tema para
um próximo simpósio.
Por Rick Fulker, na Deutsche Welle
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