segunda-feira, 14 de março de 2016

Mené Beiçudo - um teatro para todos


É difícil precisar quando se originou o teatro, seja na modalidade convencional, seja na modalidade de bonecos.

Na antiguidade, quando os homens pré-históricos reuniam-se ao redor da fogueira para narrar a aventura e vicissitudes das caçadas, com as crianças participando, imitando as presas, utilizando pedaços de pau e pedras, rústicos artefatos para representar animais, ambientes selvagens e caçadores, aí já se escutava o rugido embrionário deste fenômeno social que denominamos teatro.

Todavia, a forma como o conhecemos hoje só foi se definir muito tempo depois, na antiguidade grega. Primeiramente se dobrando às homenagens ritualiticas ao deus Dionísio, e posteriormente incorporado ao patrimônio público, sendo estimulado, organizado e custeado pelo Estado – como os desfiles cívico-militares contemporâneos – o teatro foi se conformando às necessidades dos povos, e muito de sua longevidade e vigor histórico deve-se à esta orgânica flexibilidade.

Quando adentramos a idade média, o teatro retoma suas vinculações religiosas, apenas modificando o credo espiritual a quem prestar submissa reverência. A bíblia passa a se constituir na grande e inesgotável fonte de inspiração, a única oficialmente permitida, onde os dramaturgos saciavam a sede e carregavam a pena. As festas do ano litúrgico eram os espaços onde e quando as apresentações teatrais ocorriam.

O teatro moderno deve muito aos italianos do século XVI. Quando promove a ruptura com o modelo imposto pelas tradições medievais, o movimento italiano mergulha nos modelos antigos, resgatando o universo expresso nas comédias de Plauto e Terêncio.

Apesar de inspiradas no teatro grego, a comédia romana antiga, dos idos de antes de Cristo, é dotada de criativa originalidade.

Na dramaturgia de Plauto e Terêncio, encontramos a farsa, onde a comédia e o lirismo explodem em densa expressividade.

Foram estes dois teatristas que criaram as personagens que, mais tarde, já na idade média, a commedia dell’arte se apropriaria: o fanfarrão, o sovina e o avarento, o criado astuto e ardiloso, ...

Plauto teria nascido em 254a.C., vindo a falecer em 184 a.C. Apenas 21 das 130 peças que escreveu chegaram aos dias atuais. Influenciou Moliére, que escreveu O Avarento inspirado em Aululária. Também exerceu influência sobre Shakespeare que escreveu sua A Comédia dos erros inspirado em Os Menecmos.

Já Terêncio (185a.C. – 159a.C.) nos legou seis grandes comédias, uma delas Os Irmãos, levou Moliére a escrever A Escola dos maridos.

Este teatro - inspirado na comédia romana de antes de Cristo - com a adoção de tipos regionais de forte apego popular, estruturado a partir da improvisação do texto e do contexto, consolida-se na Itália e invade todo o continente europeu. Na seqüência, estende seus tentáculos pelo mundo, inspirando os teatros nacionais dos países de todos os continentes.
É neste ambiente, de profundas transformações sócio-culturais, que se originou o teatro popular de bonecos.

No mundo, esta estrutura cênica assume diversas denominações e formatos, se adaptando às especificidades das culturas locais. O mesmo se sucede no Brasil.

Esta mesma matriz conceitual-filosófica é que atua como base de sustentação do teatro popular de bonecos Mane Beiçudo.

A partir deste desenho estrutural, que remonta a Plauto e Terêncio, o Mane Beiçudo incorporou outras características e princípios, como seu arranjo produtivo exclusivo que radicaliza, ao limite, no ponto de distensão

· a interação entre atores e espectadores, estimulando a platéia a intervir – de forma criativa e planejada – no universo cênico, como estratégia para qualificar seus processos de intervenção na realidade concreta. Desta forma os conteúdos são direcionados a promover uma participação-cidadã, destacando valores e princípios como a radicalização da democracia, a justiça econômica e social e a capacidade de promover intervenções individuais e coletivas na realidade local;

· a estética, direcionada à tradução das expressões culturais oriundas do imaginário popular, das tradições e dos valores locais;

· a instituição dos momentos de produção Ex-Ante, Ex-Cursus e Ex-Post - no que se denomina Fábrica Mane Beiçudo - estabelecendo uma ação continuada numa concepção do Espetáculo Permanente, sempre aberto, suscetível e ávido por inovações;

· a tecnologia de produção de bonecos, direcionada a valorizar a matéria prima disponível e abundante no local;

· a tecnologia de produção da dramaturgia, disponível para que a comunidade exercite a criação e a produção coletiva. Originando-se de uma questão problematizada, de uma situação-problema que impacta negativamente a comunidade, o texto dramático é estruturado.

É esta exclusiva concepção artístico-teatral que se encontra disposta neste livro, em seus princípios, valores e termos de referência.

Como dispõe a própria proposta metodológica, o Mane Beiçudo é um teatro aberto, sempre por construir, em permanente processo de re-elaboração. Por conseqüência, não poderia este livro assumir um horizonte pretensioso de disponibilizar toda uma escola de teatro num formato pronto e acabado, com os conteúdos esgotados e seus limites exauridos, conformados de maneira definitiva e peremptória.

Definitivamente não é este o cenário perseguido.

Tanto o livro como a tecnologia Mane Beiçudo apontam tão somente para um caminho, uma direção, uma singela sinalização quanto ao sentido que deve tomar nossa jornada criativa.

Ao conjunto de estudiosos, pesquisadores, dramaturgos, teatristas, artistas e comunidade em geral é que cabe definir sobre o que e como fazer quanto à ferramenta aqui disponibilizada.

Como criador da metodologia, apenas esquadrinhei o primeiro passo de uma caminhada longa, que muitas vezes se mostrará árdua, mas que, sem dúvidas, nos conduzirá a um
universo onde latejam criatividade, as transformações, e a produtividade mais inebriante.

É para esta jornada que convido todos os que almejam uma arte instigante, provocante, inquieta, que mantenha distância de tudo o que seja efêmero, medíocre, superficial.

É um grande e nobre desafio. Enseja o bom combate, a boa luta, a boa arte.
As cartas estão postas. É a sua vez de jogar, estimado leitor.

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