O sinal divino ecoa no sertão
Por Rodoux Faugh
Um
brado, um sinal divino ecoa no sertão
Uma
luz, uma chama intensa ilumina a escuridão
Há que defrontar,
fustigar, destruir as trevas
Há que
colocar fim ao desairoso negrume do miserê e da ignorância
Mas
arre! Arre! Deus do céu! Pandemônio, tumulto, efervescência, tragédia
Eis uma
terra indiferente à ética, à justiça e à moral
Eis um
torrão voraz por desigualdades, ilicitudes, falta de oportunidades
Eis o
lugar onde habita e se diverte belzebu
Eis o
espaço onde a tendenciosidade, o desrespeito e a arbitrariedade são lugares
comuns, onde a exceção – quando é pernóstica – se faz regra inquebrantável
E no
antro profundo, imundo, o roubo e a rapina passam por virtudes
O saque
e a pilhagem são tidos como valores nobres, expressão de honestidade e candura
A
extorsão tomada como um atributo dos honrados
E o
crime brutal e a barbárie como revelação de alta solidariedade, de grandeza,
harmonia e retidão
É o
mundo onde os princípios e os valores foram tomados pelo avesso, pelo reverso,
pelo contrário malfeito
É o
tempo em que o lúgubre e o soturno aplacaram a claridade
São os
idos do “valha-me Deus!”, do desalento, da frustração
É a
quadra do “Deus, minhas forças se exauriram, suplico, socorra-me!”
E eis
que no mundo inclemente e no tempo impiedoso e intolerante
Emerge
Lampião, o rei do cangaço
E eis
que num mundo autoritário e num tempo desumano e implacável
Rompe
Virgulino Ferreira da Silva, o senhor do sertão
História,
causos e estórias que não escaparão jamais da memória e do imaginário popular
Desventuras,
desgraceira, infortúnios, tragédias
Pequenas
frações, minúsculos fragmentos de favores, gratidão, clemência, perdão, estima
e apreço
Porque
à vida, ao bem mais precioso da humanidade, à presença e ao movimento, Lampião
também antepõe preço
Eis que
a simples existência continua engalfinhada no ciclo insano da precificação
Basta
ter calibre, ostentar poderio, firmar o coronel político a solicitação
Ou um
qualquer desembolsar os contos, o dinheiro, o vil metal
E lá
esta Lampião, o justiceiro, vendendo vingança, ajustando as contas, pactuando
orquestrações
Mercador
de almas, contratador de juras, pagador de promessas alheias
Lá vem
a tropa, lá vem o bando, a nuvem de bandoleiros numa cortina cerrada de poeira,
o cangaceiro tem pressa
Porque
o achaque, a extorsão, a vingança urgem
O
sertão tem dono?, tem sim senhor
O
sertão tem senhorio e possessor?, não há quem ignore, não há, não senhor
É o graúdo
poderoso, o coronel prepotente, o latifundiário aristocrata e opressor, o cão
tinhoso do maldito
Por uma
fresta efêmera um raio de sol cintila
No
império do agreste, na caatinga bravia e inculta
Um valente
famoso quer se fazer imperador
Os
adversários, os inimigos, os macacos da volante o temem e tremem, tiritam,
lançam-se ao chão de joelhos pois atinam, chegou o vingador
“Num
sei pruquê eu nunca vi home corado na minha frente”, ameaça o capitão Virgulino
em Queimadas, na Bahia, enquanto sangra sete soldados da polícia do estado
Não,
não, o bando dos cangaceiros desconhece clemência, piedade, indulgência ou
misericórdia
Porque
com o rei dos cangaceiros não cabe brandura ou comiseração
A
peixeira desliza suave escorreita na carne quente enaltecendo a morte
E a
bala fumegante adentra expedita o peito inerme prenuncio do estiolar, do
perecer, do desencarnar
A lei
do cangaço não tem dois pesos, a lei da insídia não tem duas medidas
Ou a
peixeira afiada fura e sangra ou a bala agulhada cavouca e verte a seiva da
vida
Tiro,
estampido, espouco, disparo, explosão: range e estala os portões do inferno
Ponta e
pontaria é o que não escasseia nos cangaceiros de Lampião
E tanta
dor, agonia e aflição
Tanta
tortura, desgraça e judiação pode avocar arrependimento?
Qual?
“Quando
cubro um macaco na mira do meu rifle, ele morre porque Deus quer; se Ele não
quisesse, eu errava o alvo.” – é o que apregoa solene o matador
Esperto,
vigilante, diligente ensina “Cidade com mais de uma torre não é para mim”.
Porque
sabe que lá do alto pode se acantoar o franco atirador
E nas
batalhas, é quando um só homem vale muito mais que mil
Pobreza,
necessidade, miserê? Isso é para o sertanejo, a gente simples, o povo humilde e
explorado do sertão, não para Lampião que extorque, rouba, saqueia para poder
encantar
“Dinheiro
eu tenho que só bosta de cabra em chiqueiro velho.” Foi o que disse o senhor do
sertão para um morador de uma pequena cidade de Sergipe. O pobre estranhou a
quantidade de dinheiro que Lampião carregava.
Ironia,
provocação. O cangaceiro é senhor do combate, é o soberano do confronto
“Lá vêm
os macaquinhos. Vamos pegar para criar que eles são bonitinho”, referia-se aos
policiais da força pública que os cangaceiros chamavam de macacos.
Um
bandido vingador baluarte da justiça? Não? Sim? Talvez? Um e outro? Nem um e
nem outro?
“Premero
de tudo, querendo Deus, Justiça! Juiz e delegado que não fizer justiça só tem
um jeito: passar ele na espingarda!”
Discriminação
e preconceito, hostilidade e intolerância, capitão Severino desdenha São
Benedido
Duvidou
que um juiz de direito do interior da Bahia fosse mesmo uma autoridade do
judiciário. E enquanto examinava as suas mãos sentenciou sarcástico:
“Que
negro bom para uma enxada.”
E
quando recebeu recado do tenente João Bezerra, o homem que lhe extirparia a
cabeça em Angico, não se fez de rogado: “Diga a ele que eu não tenho medo de
boi velhaco, quanto mais de bezerra.”
Pois é
esse homem vezes temido, vezes respeitado
Vezes
amado, vezes odiado
Vezes
bandido, vezes herói
Matando
gente boa, mas também gente ruim
Emprestando
suas balas aos poderosos, mas também aos de tino simples, aos de tino humilde
Que cavalgando
pelo sertão
Foi
tecendo dores, foi fazendo justiça com as calejadas mãos
Vou
dizer ao sertão, vou dizer ao Brasil, vou dizer ao mundo
Lampião
vive
Lampião
vive
Lampião
vive
Pois que permanecem
inalteráveis a desídia, a infâmia, a corrupção, o clientelismo e a brutal
ignorância Para saber mais, clique na figura |