sexta-feira, 11 de março de 2016

"Nossa Senhora e seu dia de cão", o conto dramático


Quando o pastor, novo administrador do Serviço Municipal de Saúde, adentrou o hospital público mantido pela prefeitura e se deparou com a enorme imagem de Nossa Senhora Aparecida, exposta num pedestal de mármore branco, não conseguiu conter a ira e avançou violentamente sobre a santa numa fúria demente, aplicando saraivada de murros, tapas e cotoveladas, fazendo-a minúscula, como que encolhida, sequiosa por algum tipo de trincheira ou proteção. Ao tempo em que espancava, o gestor protestante gritava aleives, palavras impronunciáveis, hediondas heresias e a Senhora Mãe de Deus restava prostrada no chão, feita em diminutos fragmentos.

   O gestor estrilava obrigando o sangue rajar convulsivamente, ameaçando romper as paredes da jugular. Bramia sobre o ato pecaminoso de cultuar imagens, vociferando os ensinamentos bíblicos que proíbem tais disparates. Atordoava os ouvidos denunciando a frontal desobediência às leis de Deus, tão pormenorizadamente expressas no livro dos livros, no compêndio divino. Apontava o fogo do inferno como destino dos infiéis apreciadores de imagens, enquanto pulverizava o ar com os minúsculos pedaços a que reduziu a santa, como que certificando que o contencioso não passava de barro amassado e cozido a fogo brando, preenchido por vento ordinário e cediço.

   A cada rompante destilava ira e ódio. E asseverava a inconstitucionalidade dado que, sendo o estado brasileiro laico, a promiscuidade verificada entre religião e coisa pública estava categoricamente vedada.

   Todavia, se à oportunidade, providencialmente, propagava o caráter secular do estado nacional, convenientemente permitiu-se esquecer que, na semana anterior, orientou a bancada de vereadores evangélica a aprovar projeto de lei obrigando fosse a bíblia disposta sobre todas as mesas das repartições públicas e, ainda, sobre todas as carteiras escolares das unidades educacionais mantidas pela municipalidade.

   
Tanta bulha fez o administrador evangélico que médicos, enfermeiros e pacientes, pasmos com a sandice em curso, correram com o que restou da imaculada santa.


   O Pastor Nazareno Gustavo inspirava medo. No ano anterior, após ter doutrinado os servidores lotados na Delegacia de Polícia e na Guarda Municipal, organizou sua milícia particular. Mantinha sob férreo comando um disciplinado e bem treinado efetivo de dois mil e quinhentos homens, mobilizados para o combate militar.

   Não se sabe as razões, mas fixou na mente a ressurreição das Cruzadas, guerra em que se digladiaram cristãos e muçulmanos e que se estendeu de 1.095 a 1.270. Traçou então a meta obstinada e extemporânea: reiniciada a guerra, iria à desforra invertendo o resultando da contenda, conduzindo finalmente os cristãos à vitória peremptória.

   Durante boa parte da vida estudou as expedições armadas medievais.

   Decorou o discurso do Papa Urbano II, quando no Conselho de Clermont pregou a necessidade de libertar a Terra Santa dos turcos seljúcidas.

   Como quisesse tornar o passado presente, reproduziu a vestimenta dos guerreiros cristãos medievais, distribuindo aos seus cruzados uma indumentária que ostentava no peito enorme cruz, além de armadura completa, espada, lança, escudo, bandeiras e estandartes, complementados por uma parafernália de adereços que ornamentavam os cavalos.

   A primeira ação guerreira que encetou foi a invasão do terreiro de umbanda Pai Salomão. Planejou-a em minúcias para que nada escapasse ao controle. Uma guerra contra os negros seria bom teste para verificar o nível de treinamento das colunas uma vez que a guerra verdadeira para a qual se preparava seria contra os muçulmanos, que julgava mais perigosos em função do fundamentalismo e da ilimitada devoção a Maomé.

   O terreiro de umbanda Pai Salomão era um patrimônio cultural da humanidade. Reconhecido pela ONU numa solenidade em que estiveram presentes autoridades de todas as paragens, a comunidade abrigava um sítio histórico e um centro espírita que remontava ao período da escravidão. Originou-se de um antigo quilombo implacavelmente perseguido pelos capitães de mato, mas que heroicamente resistiu graças aos zumbidos que a capoeira de Angola emprestava ao mover das pernas negras, longas e rijas dos kalungas.

   Aplicar uma humilhante derrota àqueles remanescentes de escravos seria um ato de repercussão mundial: daria publicidade à causa de arregimentar cristãos para, numa cruzada revitalizada, aplicar solução final ao problema dos negros, mulheres, homossexuais, minorias, imigrantes, defensores da ética na política e, sobretudo, fundamentalistas islâmicos.

   Insistia com seu rebanho sobre a necessidade da nova ofensiva ser blindada, de sorte a impedir imprevistos. Relembrou o retumbante fiasco da última incursão cruzada, quando investiram sobre o Parque Vaca Brava de Goiânia tentando impedir a exposição Orixás da Bahia, mostra de belíssimas esculturas do artista Tatti Moreno.

   Escolheu então o dia 15 de julho para invadir o terreiro. Propositalmente o mesmo dia e mês que, em 1.099, a cruzada comandada por Godofredo de Bouillon, após sitiar Jerusalém, adentrou a cidade portal de todos os credos. Passou a prestar uma obsequiosa veneração a Bouillon após ler nos documentos históricos sua recusa em ser coroado rei de Jerusalém para “não por à cabeça uma coroa de ouro no mesmo lugar em que Jesus Cristo, Rei dos Reis, fora coroado de espinhos”.

   Convenientemente o pastor esquecera de parte significativa da história medieval: apesar do desenvolvimento verificado nas áreas comercial, cultural e militar, as cruzadas foram um fracasso, pois não alcançaram o objetivo principal, libertar Jerusalém.

   O zagal e seu exército de milicianos aguardaram com impaciência a chegada do dia escolhido para perpetrar o mal.

   O terreiro estava repleto de pessoas quando se viu devassado por uma força de encapuzados trajando armaduras metálicas, montando ostensivos manga larga marchadores, portando nas mãos espadas, lanças, estandartes e tochas incandescentes. (Para ler o conto completo, clique aqui).


Para saber mais, clique na figura

Dramaturgo, o autor transferiu para seus contos literários toda a criatividade, intensidade e dramaticidade intrínsecas à arte teatral. 

São vinte contos retratando temáticas históricas e contemporâneas que, permeando nosso imaginário e dia a dia, impactam a alma humana em sua inesgotável aspiração por guarida, conforto e respostas. 

Os contos: 
1. Tiradentes, o mazombo 
2. Nossa Senhora e seu dia de cão 
3. Sobre o olhar angelical – o dia em que Fidel fuzilou Guevara 
4. O lugar de coração partido 
5. O santo sudário 
6. Quando o homem engole a lua 
7. Anos de intensa dor e martírio 
8. Toshiko Shinai, a bela samurai nos quilombos do cerrado brasileiro 
9. O desterro, a conquista 
10. Como se repudia o asco 
11. O ladrão de sonhos alheios 
12. A máquina de moer carne 
13. O santuário dos skinheads 
14. A sorte lançada 
15. O mensageiro do diabo 
16. Michelle ou a Bomba F 
17. A dor que nem os espíritos suportam 
18. O estupro 
19. A hora 
20. As camas de cimento nu 

OUTRAS OBRAS DO AUTOR QUE O LEITOR ENCONTRA NAS LIVRARIAS amazon.com.br: 

A – LIVROS INFANTO-JUVENIS: 
Livro 1. As 100 mais belas fábulas da humanidade 

I – Coleção Educação, Teatro & Folclore (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. O coronel e o juízo final 
Livro 2. A noite do terror 
Livro 3. Lobisomem – O homem-lobo roqueiro  
Livro 4. Cobra Honorato 
Livro 5. A Mula sem cabeça 
Livro 6. Iara, a mãe d’água 
Livro 7. Caipora 
Livro 8. O Negrinho Pastoreiro 
Livro 9. Romãozinho, o fogo fátuo 
Livro 10. Saci Pererê 

II – Coleção Infantil (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. Não é melhor saber dividir 
Livro 2. Eu compro, tu compras, ele compra 
Livro 3. A cigarra e as formiguinhas 
Livro 4. A lebre e a tartaruga 
Livro 5. O galo e a raposa 
Livro 6. Todas as cores são legais 
Livro 7. Verde que te quero verde 
Livro 8. Como é bom ser diferente 
Livro 9. O bruxo Esculfield do castelo de Chamberleim 
Livro 10. Quem vai querer a nova escola 

III – Coleção Educação, Teatro & Democracia (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. A bruxa chegou... pequem a bruxa 
Livro 2. Carrossel azul 
Livro 3. Quem tenta agradar todo mundo não agrada ninguém 
Livro 4. O dia em que o mundo apagou 

IV – Coleção Educação, Teatro & História (peças teatrais juvenis): 
Livro 1. Todo dia é dia de independência 
Livro 2. Todo dia é dia de consciência negra 
Livro 3. Todo dia é dia de meio ambiente 
Livro 4. Todo dia é dia de índio 

V – Coleção Teatro Greco-romano (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. O mito de Sísifo 
Livro 2. O mito de Midas 
Livro 3. A Caixa de Pandora 
Livro 4. O mito de Édipo. 

B - TEORIA TEATRAL, DRAMATURGIA E OUTROS
VI – ThM-Theater Movement: 
Livro 1. O teatro popular de bonecos Mané Beiçudo: 1.385 exercícios e laboratórios de teatro 
Livro 2. 555 exercícios, jogos e laboratórios para aprimorar a redação da peça teatral: a arte da dramaturgia 
Livro 3. Amor de elefante 
Livro 4. Gravata vermelha 
Livro 5. Santa Dica de Goiás 
Livro 6. Quando o homem engole a lua