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O índio visto no
singular, de forma homogênea e como um enfeite da floresta é o ator
representado na comemoração do Dia do Índio, em 19 de abril. A conclusão é da
representante da Equipe Local da Vaga Lume do município de São Gabriel da
Cachoeira (AM) e professora, Ane Keila Firmo Alves. Desde sempre na luta pela
desconstrução dessa imagem do índio presente no imaginário popular das pessoas
dos grandes centros urbanos do país, ela viu no Programa Rede, da Vaga Lume,
uma estratégia de aproximação do Brasil com os povos indígenas. “A gente começa
a descontruir o outro e o outro desconstrói a gente”.
Quando esteve na sede da
Vaga Lume, em São Paulo, para participar do 1º Comitê dos Educadores do
Programa Rede, em março, Ane Keila conversou com a equipe sobre os principais
desafios e as incoerências da data comemorativa. “Dia do Índio é todo dia. Essa
data interessa aos outros, mas para nós não porque, no nosso dia a dia, estamos
valorizando e vivendo nossa cultura”, afirma.
Confira, abaixo, a
entrevista.
Por que não falar Dia do
Índio?
Agora ninguém fala mais
índio, no singular. A gente fala indígenas, povos, Dia dos Povos Indígenas. Lá,
a gente não usa mais essa palavra Dia DO Índio. Quando se fala de índio, é
sempre de uma forma muito genérica. Quando a gente fala povos indígenas, a
gente está diferenciando cada cultura.
Porque é como se a gente
falasse que é uma coisa homogênea, igual, como se todos os índios do Brasil
fossem iguais.
Isso, homogêneo! Por
isso a gente não usa mais essa expressão “do índio”.
Ane, você que mais uma
vez participa do Programa Rede, vem para São Paulo e responde as perguntas dos
adolescentes, ainda percebe que existe uma falha no nosso tratamento em relação
aos povos indígenas?
Existe um grande
crescimento, um grande respeito pelas diferenças. Se são negros, se são índios,
se são outro tipo de gente, existe esse respeito, a gente sente isso dentro da
Vaga Lume. Agora quando a gente tá por aí, com quem a gente não tem essa
familiaridade, esse contato, a gente ainda percebe muito desconhecimento em
relação aos povos indígenas. E eu não os culpo por esse desconhecimento, mas
sim o próprio sistema do Brasil que faz isso. Ontem, eu li um artigo do
professor Gersem Baniwa, da UFAM, sobre a atual política que a gente vive, com
o veto das línguas indígenas dentro das universidades. Está existindo um
retrocesso que a gente viveu na década de 60, 70. Ele faz uma crítica sobre o
Brasil de hoje que está retrocedendo em relação ao reconhecimento da diferença.
Mas são momentos que a
gente vive da história e todo dia é uma luta. Se a gente for colocar em questão
de porcentagem, o Brasil ainda precisa conhecer o Brasil, de 100% do povo
brasileiro, 80% ainda precisa conhecer, descobrir, acertar. E a gente fazendo
toda essa quebra do desconhecimento na cabeça das pessoas, com certeza a gente
não estaria vivendo o problema que a gente está vivendo hoje da política, do
cenário político da presidente Dilma, porque as pessoas não são acostumadas a
ver o outro, a enxergar o outro, só olhando pra si, só quero pra mim.
Quais os caminhos para
encurtar esse distanciamento do Brasil com os povos indígenas?
Eu acho que a melhor
forma da gente conhecer o outro é estar perto do outro. Nós, que somos
indígenas, o viver comunitário é muito importante. Por mais que eu veja vocês
através da televisão, através de contato de e-mail, Facebook, não é a mesma
coisa que estar em contato físico com a pessoa. Então, pra conhecer o outro,
precisa ter essa proximidade. A gente vive muito isso, comunidade. Nesse Brasil
gigantesco, pra quebrar isso da gente se conhecer melhor, a primeira coisa que
tinha que mudar seriam as políticas públicas, onde todos, sem distinção de
ninguém, tenham acesso às melhores informações, melhores escolas, sem distinção
de classe, igual pra todo mundo. Isso seriaa melhor forma da gente construir um
novo Brasil. Mas a gente vive um país capitalista, egoísta, digamos assim,
unitários; as pessoas só pensam em si, são individualistas. É bem complicado,
bem complicado. Aí quando vem e a gente vem e fala do Programa Rede, que é uma
coisa muito simples de troca, que hoje a gente chama de diálogo, é uma coisa é
uma coisa, pra mim, especial, porque lá a gente consegue fazer o que as
Políticas Públicas do Brasil não conseguem fazer, onde a gente começa a
descontruir o outro e o outro desconstrói a gente.
Quando a gente
participou do Programa Rede 2014, as crianças olhavam para a favela como uma
coisa feia, com bandido, tráfico, tiroteio, morte, e quando a gente começou a conversar
com as crianças, a gente viu que não é só isso. Elas brincam, elas também têm
medocomo a gente tem, assim como eles tinham medo de dar de cara com uma cobra
lá na Amazônia, a gente tinha medo de dar de cara com um bandido aqui. A gente
precisa entrar no mato e caminhar muito pra encontrar um bicho. E aqui também,
né? Não é em qualquer esquina que a gente encontra um bandido. Então essas
coisasa gente vai descontruindo e vai criando novos conceitos e a gente vai se
respeitando. É uma coisa muito simples, muito legal, muito gostosa de se fazer
e que não dá trabalho. A gente fazendo esse trabalho lá, não tem gasto porque é
um trabalho comunitário. As famílias também participam porque a gente mexe
muito com as adolescentes, que vão pra casa, perguntam, conversam com os pais.
A gente não tem acesso, por exemplo, eles não vão pesquisar, entrar não sei
aonde, internet. A gente conversa com a família, então também tem esse outro
lado legal do Programa Rede: aproxima as pessoas, aproxima irmão com irmão, tio
com avô, porque eles começam a conversar “olha, tão perguntando isso, e aí, o
que a gente vai dizer pra eles?”, né? Então lá, a gente, no âmbito do trabalho
na Rede, mexe muito com a família.
O que comemorar no Dia
do Índio?
Lá em São Gabriel da
Cachoeira, quando a gente está na escola fazendo planejamento, a gente
questiona muito que o Dia do Índio é todo dia porque a gente vive todo dia.
Respira todo dia, come todo dia, a gente não vive só um dia. A gente tá lá o
dia inteiro, 24 horas por dia, então a gente não olha pra essa data como uma
data única. Pra nós, essa data única não nos interessa. Interessa pros outros,
mas pra nós não, não é uma data importante pra nós porque a gente, no nosso dia
a dia, a gente tá valorizando, tá vivendo a cultura, está trocando com o outro,
mesmo com quem não é indígena. Tem muitos que não são indígenas e adoram comer
as nossas comidas típicas. Então isso que é importante: no que a gente faz
dentro da escola, essa troca. E a gente não diz mais Dia do Índio. A gente diz Semana
dos Povos Indígenas. Nessa semana, a gente trabalha a questão do movimento, a
questão de luta, a questão da resistência, da organização da mulher, a gente
trabalha, volta também para o passado, trabalha as questões culturais com os
mais pequenininhos que já nascem na cidade. Mas a gente bate mais é na questão
de nós sermos reconhecidos dentro de um Brasil que ainda é preconceituoso e
racista. Eles dizem que no Brasil tem todos os povos, que todo mundo vive em
harmonia e não é verdade,na minha opinião. Porque pra viver em harmonia, todos
nós tínhamos que ser iguais em todos os sentidos na questão da saúde, da
alimentação, da educação, do lazer, pra mim isso é viver em harmonia e o Brasil
não tem isso.
Como vocês gostariam de
ser vistos nesse dia?
A gente gostaria de ser
visto não como um enfeite, mas sim como pessoa, como gente que pensa, que
discute, que sofre que tem alegrias. De gente que luta para ser conhecido num
Brasil que não reconhece a gente. Mas na história tudo tem sua época e infelizmente
nós estamos vivendo uma época de contradições. Eu gostaria de ser lembrada não
como um enfeite no meio da floresta, mas como uma pessoa que tem sentimentos,
que luta, que grita, que pensa, que produz, que constrói. Não uma pessoa que
está cuidando da árvore para não ser destruída, que esta cuidando do pássaro,
que está andando com pena na cabeça, não, mas como pessoa que tem dignidade,
que pensa num futuro melhor para o seu povo, que viva melhor, que tenha
condições de vida melhor. Por exemplo, meu filho está fazendo sistema de
informação. Eu jamais vou influenciar nos sonhos dele, mas meu sonho é que ele
se formasse e voltasse pra São Gabriel da Cachoeira e criasse algum programa de
computador que valorizasse a nossa cultura, sei lá né? Então é assim que a
gente pensa na questão da nossa valorização mesmo como pessoa, que muita gente
ainda desconhece.
Qual a importância da
literatura no exercício da cidadania?
Muitas ONGs e
antropólogos condenaram as ações dos missionários capuchinhos e salesianos durante
a colonização do Alto Rio Negro, quando se perderam muitas coisas, como línguas
e rituais. Perdeu-se muito, mas também, por outro lado, tem uma coisa muito
positiva que foi a gente se apropriar de uma língua que não é nossa e que a
gente usa essa língua pra se fortalecer como cidadão brasileiro. Uma língua que
a gente consegue se comunicar, consegue gritar pelos direitos, consegue ler uma
Lei, entender a Lei, discutir a Lei, bater de frente com a Lei se ela não
estiver de acordo com aquilo que a gente pensa. Então livros em português, pra
nós, são interessantes porque nos ajudam, nos fortalecem. Existem antropólogos,
por exemplo, que foram pra São Gabriel e que pra eles o interessante é falar
tudo em língua indígena, escrever tudo na língua indígena, não falar língua
portuguesa, mas aí quando a gente, indígena mesmo, começa a discutir os nossos
próprios problemas, a gente diz que não, a gente precisa aprender. A gente
precisa conhecer o outro, porque conhecendo o outro, conhecendo outras coisas,
falando outra língua, a gente consegue esse espaço que a gente quer dentro do
Estatuto brasileiro. Porque se não fosse isso, se não fossem as lideranças lá
no Congresso Nacional debatendo, indo lá, fazendo as danças ali no Congresso, a
gente não era visto. Não era visto de jeito nenhum. A gente tem contato com
essa questão de luta, de reconhecimento e pra isso a língua portuguesa ajuda a
gente a exercer essa cidadania, porque cidadão é aquele que luta, participa, é
visto dentro de um país. Eu nunca esqueço de uma frase que meu pai falou “eu
vivo neste mundo e eu luto todo dia pra ser considerado brasileiro”, então é
isso né. E os livros da biblioteca Vaga Lume chegaram lá, pelo menos na escola
onde eu trabalho, e ajudam muito na alfabetização, na questão da expressão da
fala. A gente recebe muitas crianças da comunidade que têm dificuldade de falar
o português, que entende, mas quando se pronuncia, é como se fosse o
estrangeiro, que fala o português todo atravessado. É a mesma coisa. E quando a
gente começa a ler pra eles em língua portuguesa, eles vão se apropriando
devagar e quando chega no final do ano, eles já falam a língua deles e falam o
português. Eles começam a se comunicar com os alunos que não são indígenas e
que fazem parte da escola.
Então pra mim, na minha
visão muito particular, toda a literatura que tiver escrita na língua
portuguesa e que venha somar com a nossa luta vai ser sempre bem vinda, sempre.
A gente nunca vai dizer “não, isso não pode chegar aqui porque não fomos nós
que construímos”. A gente se apropria disso pra ficar forte.
Última pergunta: quem é
você?
Eu sou Ane Keyla, sou
desana, tenho muito orgulho, eu agradeço muito também por ter me tornado uma
pessoa que tem ideias, valores próprios e que eu muitas vezes consigue passar
de uma maneira muito simples aquilo que muitos não conseguem entender. Eu sou
uma pessoa muito humilde, eu aprendi com a irmã Nazaré que “a humildade é a
verdade”.
Eu era muito explosiva,
aí a gente vai aprendendo no dia a dia a ter uma conversa não violenta. Na minha
juventude, eu pegava o microfone e falava “eu sou produto dessa colonização
discriminatória, racista, eu não falo a língua do meu pai porque tal”... Aí a
gente vai crescendo, amadurecendo e vai vendo que muitas vezes atacar dessa
forma não dá muito certo. Hoje aprendi a ouvir mais, falar menos. Sou
professora, adoro dar aula, os meus alunos gostam de mim, quando eu disse que
vinha pra cá, teve uma menina que fez um coração pra mim e ela disse
“professora, volta logo”. Eu tenho uma fama de ser durona, professora de
matemática né, mas eles me abraçam a gente canta, faço mediação de leitura
antes das aulas de matemática e eles adoram. Virou assim uma rotina: a gente
canta, depois tem mediação de leitura, depois a gente tira as carteiras daquele
negócio enfileirado, vamos para o chão e começamos a aula. Então isso me
realiza. E isso me faz falta também. A gente vem e ao mesmo tempo quer ir
embora logo. Aí por isso que quando os adolescentes me perguntaram ontem, na
escola, se a gente gostaria de mudar e ser eles, eu disse que não, porque eu
gosto de ser o que eu sou.
Fonte Vaga Lume
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I – Coleção Educação, Teatro e Folclore (peças teatrais infanto-juvenis):
II – Coleção Infantil (peças teatrais infanto-juvenis):
Livro 8. Como é bom ser diferente
III – Coleção Educação, Teatro e Democracia (peças teatrais infanto-juvenis):
IV – Coleção Educação, Teatro e História (peças teatrais juvenis):
V – Coleção Teatro Greco-romano (peças teatrais infanto-juvenis):
B - TEORIA TEATRAL, DRAMATURGIA E OUTROS
VI – ThM-Theater Movement: