Canadense Maggie MacDonnell venceu o
Global Teacher Prize por seu trabalho com a comunidade aborígene no Ártico
Escolhida a melhor professora do
mundo pela comissão do Global Teacher Prize, a canadense Maggie MacDonnell leva
uma vida árdua em Salluit, comunidade inuíte instalada no extremo Norte de
Quebec. No inverno, a temperatura mínima chega a -25 graus Celsius. Em seis
anos, ela testemunhou o enterro de alunos que se suicidaram. Muitas de
suas estudantes sofrem com gravidez precoce e abuso sexual. Muitos de seus
colegas já desistiram de dar aulas da região. Mas ela não pensa em partir até
ver as crianças que educou e com quem criou vínculos se transformarem em
adultos de sucesso. “Alguns deles já cresceram, estão fazendo faculdade em
Montreal, levam uma vida saudável, são independentes — quero ver todos assim”,
disse em entrevista ao site de VEJA antes da premiação, que aconteceu em Dubai,
nos Emirados Árabes.
A professora, nascida na província de Nova Escócia,
de clima mais ameno, receberá o prêmio de 1 milhão de dólares entregues ao
longo de dez anos — o valor poderá ser usado da maneira que Maggie quiser, com
educação ou não. Ela afirma, porém, que tem planos nobres para o montante:
valorizar a tradição do povo inuíte, que por séculos sofreu tentativas de
assimilação do próprio governo canadense. “Quero criar um programa para os
jovens focando o kaiak. Os inuítes inventaram esse esporte, mas na comunidade
em que vivo ele não é mais tão presente”, afirmou.
Confira a entrevista:
O que vai fazer com o prêmio de 1 milhão de dólares? Quero criar um
programa para os jovens inuítes focando a tradição do kaiak. Os inuítes, na
verdade, inventaram esse esporte, que é praticado agora em todo o mundo, mas na
comunidade em que vivo não é mais tão presente. Quero trazer a prática de volta
porque acredito que isso vai incentivar a atividade física e a relação com a
natureza, além de promover a cultura inuíte.
Por que escolheu Salluit para trabalhar? Depois que eu me
formei na universidade, passei cinco anos trabalhando fora do meu país, em
lugares como Botsuana, em um orfanato com crianças afetadas pelo vírus do HIV,
e na Tanzânia, com refugiados do Burundi e Congo. Ao voltar para o Canadá, quis
aplicar os conhecimentos que obtive no exterior. Comunidades indígenas e em
especial a inuíte passam por muitas dificuldades por causa da colonização.
Queria entender a realidade e contribuir com essa população e com o Canadá, em
geral.
Quais são os principais problemas que Salluit enfrenta? Mesmo estando lá
há seis anos, ainda estou aprendendo sobre a comunidade. Mas o que já
identifiquei é que os jovens de lá têm que lidar com traumas provenientes de
gerações anteriores — apesar de serem resistentes e terem esperança e talento,
as crianças já nascem em uma situação difícil. Algo que vejo, que tem relação
com seus avós, provavelmente, remete ao sistema de escolas residenciais para
indígenas. Era um programa operado pelo governo federal desde o final do século
XIX até 1996, que tirava crianças aborígenes de suas famílias e as enviava
para escolas a milhões de quilômetros de distância de suas comunidades. Era uma
política de assimilação, na tentativa de tirar o que havia de inuíte dos
inuítes. Esses jovens voltavam para casa tendo esquecido sua língua materna e
encontravam suas famílias traumatizadas, porque elas haviam perdido totalmente
o contato com seus filhos por anos. Isso aconteceu principalmente com os avós
das crianças a quem eu ensino agora — mas as famílias continuam com receio do
sistema educacional e é preciso ganhar novamente sua confiança.
Que outros problemas afetam os seus alunos? O governo
canadense operou um programa por cerca de vinte anos, entre 1950 e 1970, que
consistia em matar os cachorros que eram parceiros dos inuítes — e que eram
necessários para sua sobrevivência no Ártico, para a caça e a proteção — na
tentativa de fazer os aborígenes deixarem aquela região e buscarem a
“civilização”. Isso abalou de tal maneira os valores tradicionais que eles
possuíam que muitas famílias estão mergulhadas no vício em álcool e drogas.
Isso se soma ao grave problema habitacional que afeta a região. O Canadá é uma
nação desenvolvida e deve ser considerada uma das melhores para se viver, mas
muitos dos meus alunos não têm seu próprio quarto, eles dormem na sala de suas
casas, que estão, aliás, lotadas e muitas vezes abrigam pessoas que bebem ou
usam drogas.
Como trabalhar com crianças que têm tantos problemas familiares e
sociais? Eu começo as aulas tentando aliviar o estresse dos estudantes. Isso pode
significar colocar uma música relaxante, promover um ambiente em que eles não
sofram bullying dos colegas, ser amigável e confiável, para que eles não sintam
que eu estou julgando o que acontece na casa deles. Também oferecemos
refeições, já que muitos não têm comida. Só aí podemos seguir com o conteúdo
das aulas.
Que maneiras encontrou de envolver também o resto da comunidade
nos projetos? Tento estimular a permanência das crianças na
escola para envolver a comunidade. Muitos dos meus alunos não têm uma reputação
positiva na sociedade, porque são conhecidos por bullying contra os outros ou
têm ficha na polícia por vandalismo, por usar ou vender drogas. Tento fazer com
que essa imagem seja revista com algumas atividades. Uma delas se chama “Acts
of kindness” (Atos de bondade), em que os jovens fazem boas ações em Salluit.
Eles ajudam os mais velhos, vão até os supermercados e carregam as compras dos
vizinhos, organizam exibições de filmes para as crianças, para que os pais
possam sair e deixar os filhos em um lugar seguro etc. Essas atividades fizeram
com que os jovens passassem a ser vistos como parte importante da comunidade.
Muitos dos seus colegas professores pararam de dar aula na região.
Já pensou em desistir? Provavelmente entre 40% e 50% dos professores
desistem de dar aulas no Norte. Isso pode ser por causa do estresse do dia a
dia ou porque eles estão morando em um lugar muito isolado, longe de suas
famílias. Há alguns estudantes que me adotaram em suas vidas e eu não quero
deixar o Norte até que eu veja que eles se tornaram adultos de sucesso. Alguns
deles já cresceram, estão fazendo faculdade em Montreal, levam uma vida
saudável, são independentes — quero ver todos assim. Mas não posso dizer quanto
tempo mais vou ficar por lá, porque meu marido é da Tanzânia.
Você já trabalhou em países da África e no Salluit. Gosta de
desafios, então? Sim! (risos) Se é para trabalhar com algo, foque em
justiça social. Não há nada que tenha mais significado do que isso. Pode não te
dar o melhor salário, mas te dá a maior satisfação pessoal possível.
Por Meire Kusumoto, na Veja.com
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