O mundo vem celebrando os 400 anos da morte do maior de todos os escritores, o inglês William Shakespeare, nascido na bucólica Stratford-upon-Avon e morto lá mesmo 52 anos depois, em 23 de abril de 1616. Poeta, dramaturgo e empresário, Shakespeare produziu ao longo de 25 anos de atividade 39 peças teatrais, entre elas algumas das maiores obras-primas da literatura.
Não foi apens o maior poeta e prosador da história. “Ele inventou o humano como o conhecemos até hoje”, escreve o crítico Harold Bloom no livro
Shakespeare – a invenção do humano, tema de minha
coluna na revista Época. Bloom argumenta que, na enorme variedade de personagens que criou, Shakespeare escreveu tudo aquilo que pensamos e vivemos no séculos seguintes.
Seu livro analisa uma a uma 35 das peças de Shakespeare. É uma leitura pessoal, mas uma das melhores introduções à obra dele. Shakespeare foi mais inteligente do que todos nós. Conhecia os limites da linguagem, que tentava expandir para representar nossa condição humana, com todas as suas dores, alegrias e contradições.
Seus personagens se tornam humanos na medida em que refletem sobre seus sentimentos e seus atos. É com essa auto-consciência que nos identificamos e aprendemos a respeito de nós mesmos. Na centena de tipos criados por Shakespeare, Bloom destaca sete.
Iago, de Otelo – É o vilão dos vilões. Preterido numa promoção pelo general Otelo, Iago engendra uma vingança ardilosa, que leva o chefe a matar a própria mulher a a acabar com a própria vida. A religião de Iago é a guerra, sua vitória é a aniquilação do adversário e nada mais. “A literatura moderna não superou Iago, ele permanece o perfeito diabo do Ocidente”, escreve Bloom. “Soberbo como psicólogo, roteirista, crítico dramático e teólogo da negatividade.”
Cleópatra, de Antônio e Cleópatra – O casal formado pelo general romano e pela rainha egípcia quer não apenas ser parte do mundo, mas quer ser o próprio mundo, com a união dos dois impérios. Represeentam um universo a quem todos devem se curvar. Mas quem é na realidade o casal-celebridade? “Cleópatra nunca deixa de desempenhar o papel de Cleópatra”, diz Bloom. É o papel de deusa egípcia, senhora imperial. A morte de Antônio e a inevitável perda do poder a leva a tramar o próprio fim. Mesmo diante da áspide que acabaria por dar-lhe a picada fatal, ela mantém um certo ar distante, como se ainda atuasse em vez de viver.
Lear, de Rei Lear – O rei louco, seguido pelo bobo da corte em seus delírios, depois de ser traído por duas das três filhas a quem legara suas terras, é a lembrança do vazio essencial da nossa existência. “Para aqueles que acreditam que a justiça divina de algum modo prevalece neste mundo, a tragédia de Lear mostra que somos todos ‘bobos’ no sentido Shakespeariano, exceto aqueles que são vilões descarados”, diz Bloom. “Bobos em Shakespeare pode significar ‘trouxas’, ‘amados’, ‘loucos’, ‘bobos da corte’ e, mais que tudo, ‘vítimas’. O sofrimento de Lear não é redimido nem pode ser redimido.”
Macbeth, da peça homônima – Como Iago, o general escocês é um vilão que, movido por uma profecia e incentivado pela mulher, trai e destrói seus pares para conquistar o poder, até que a profecia se volta contra ele. Ao contrário de Iago, ele sofre intensamente porque sabe que faz o mal e que deve continuar a praticá-lo em doses ainda maiores. “Nós somos Macbeth, nossa identidade com ele é involuntária, mas inescapável”, diz Bloom. “Macbeth nos aterroriza em parte porque esse aspecto da nossa imaginação é tão assustador; parece fazer de nós assassinos, ladrões, usurpadores e estupradores.”
Hamlet, de Hamlet – O jovem príncipe da Dinamarca é o maior personagem da literatura. Sua tragédia é a mais humana das tragédias: ele conhece a verdade – e nada pode fazer. Em seus solilóquios, na sua auto-reflexão sobre a vida, Shakespeare cria uma mente intelectualmente insuperável, que transcende a própria peça. “Ele tem uma mente tão poderosa que a maioria das atitudes, valores e julgamentos contrários podem coexistir nela de modo coerente, tão coerente que Hamlet se tornou todas as coisas para todos os homens e mulheres”, diz Bloom. “Mal conseguimos pensar em nós mesmos como seres autônomos sem pensar em Hamlet, mesmo que nem estejamos conscientes de que estamos lembrando dele.”
Rosalind, de Como quiserdes – Se o gênio de Shakespeare estava na tragédia, sua alma estava na comédia. Como em Hamlet, o trono do pai de Rosalind também é usurpado pelo irmão. Mas sua atitude é outra. Ela consegue o homem que quer e, graças a sua astúcia, seu pai obtém o reino de volta. O apelo de Rosalind está na virtude. Ela é bela, inteligente, leal e, amis que tudo, espirituosa. “A boa sorte de Rosalind é estar no dentro de uma peça em que nenhum mal de verdade pode acontecer com ninguém”, diz Bloom. “A glória de Rosalind, e de sua peça, é sua confiança, e a nossa, de que tudo vai dar certo.”
Falstaff, de Henrique IV – Beberrão, mulherengo e amante dos prazeres da vida, o velho militar John Falstaff, preceptor do príncipe Hal (e futuro rei Henrique V) era o mais popular dos personagens de Shakespeare em seu próprio tempo. Sua inteligência é comparável à de Hamlet, mas ele é dono de uma irreverência que Bloom qualifica como “engrandecedora da vida e destruidora de estados”. Falstaff representa a mais humana de todas as aspirações: a liberdade. Ele é a resposta para aqueles que se levam a sério demais, o antídoto perfeito para os acadêmicos que tentam aprisionar Shakespeare em celas de teorias políticas, ideológicas, psicanalíticas, feministas, multiculturais ou de qualquer outra moda. Num sangrento campo de batalha, diante de uma batalha absurda e sem sentido que acaba tendo de travar, Falstaff solta a exclamação que melhor define a obra de Shakespeare: “Dá-me vida!”.