Lele (de camiseta cinza) brinca com as crianças sírias em campo de refugiado na Grécia |
Mas nos últimos meses, se sua atividade seguiu sendo a
mesma, o cenário e a situação dos meninos e meninas do outro lado do jogo
mudaram drasticamente.
Em uma semana, ela estava em Nova York, onde mora há 14
anos, com as várias crianças que participam do grupo de brincadeiras que ela
mantém no quintal de sua casa ou em algum parque da cidade americana.
Em outra, ela estava em um campo de refugiados na
Grécia, brincando com crianças sírias que chegaram até lá de bote, depois de
presenciarem todo tipo de atrocidades."Elas já haviam perdido tudo. Não
queria que perdessem também a infância."
'Os meus professores sempre foram as crianças', diz Lele Luiza, como a brasileira é conhecida |
Com a ideia de ajudar crianças a continuar sendo
crianças mesmo diante dessa situação, Lele criou o "Child Rescue
Project". Após uma campanha de financiamento coletivo, ela foi até o campo
de refugiados de Eko para brincar com as crianças sírias - e arrancar umas
risadas delas.
Antes de embarcar para inventar brincadeiras, dessa vez
com refugiados na Áustria e provavelmente na Turquia, Lele conversou com a BBC
Brasil sobre as surpresas (boas e ruins) de sua experiência e a luta para
"garantir o direito de brincar às crianças de quem isso lhes foi
roubado".
Confira os principais trechos da conversa:
BBC
Brasil - Como você foi parar na Grécia? Já tinha algum envolvimento com a causa
dos refugiados?
Lele Luiza - Não, não tinha. Mas desde setembro do ano
passado, quando comecei a ver fotos das crianças sírias mortas após se afogarem
na travessia, passei a acompanhar essa crise, a coletar doações, a me envolver
- especialmente com Calais (cidade na França que abriga campo conhecido como
"A Selva", com imigrantes que tentam entrar na Inglaterra), que
passou a abrigar mais e mais famílias. Fiz contatos e resolvi ir trabalhar com
as crianças de lá, mas acabou não dando certo.
Lele descobriu que as crianças sírias já sabiam jogar pião |
BBC
Brasil - Por quê?
Lele - Porque o campo foi desativado e as famílias,
inclusive as crianças que estavam sozinhas, foram expulsas, se dispersaram. Mas
não mudei de planos. Por meio de uma ONG que conheci (a Lighthouse Release),
decidir ir para o campo de Eko, no norte da Grécia.
BBC
Brasil - Como você viabilizou a viagem?
Lele - Ia bancar tudo eu mesma, mas uma amiga achou que
poderíamos fazer um financiamento coletivo, especialmente para comprar
material. Acabou sendo um sucesso. Pedimos US$ 3 mil, mas conseguimos mais que
o dobro. Quando vi, pensei 'Gente, tudo isso? Não vou dar conta de levar tanto
brinquedo e giz' (risos). Mas foi lindo ver essa generosidade.
BBC
Brasil - E chegando lá na Grécia?
Lele - Eu e uma amiga que foi comigo alugamos um carro
e quando fomos chegando perto do acampamento, vimos um sinal luminoso. Eko era
um posto. O acampamento era em um posto de gasolina. Foi meu primeiro choque.
Brasileira conta que, inicialmente, as crianças estavam traumatizados que não conseguiam nem parar para brincar |
BBC
Brasil - Como você foi recebida?
Lele - Cheguei lá e fui conversar com dois espanhóis
que já estavam trabalhando com as crianças, entre outras coisas. Eles chegavam
lá, colocavam os brinquedos no chão numa espécie de tenda, e entrava uma manada
de crianças. Segundos depois, elas começavam a disputar os brinquedos e a se
bater.
BBC
Brasil - Por quê?
Lele - Essas crianças são incríveis, são uns amores,
mas elas são uma panela de pressão. Nem tem como ser diferente, né? Tem tanta
coisa por baixo, estão tão traumatizados, que mal conseguem brincar, qualquer
coisa já saem na mão.
“Essas crianças
são incríveis, uns amores, mas são uma panela de pressão. Estão tão
traumatizados, que mal conseguem brincar, qualquer coisa já saem na mão.”
BBC
Brasil - Como você reagiu?
Lele - Passei meu primeiro dia lá no campo controlando
briga, tentando acalmá-los. Morri de tristeza. As crianças choravam o tempo
todo. Os voluntários, que eram fantásticos, estavam exaustos, claro.
BBC
Brasil - E depois desse dia meio traumático, como foi?
Lele - No dia seguinte, pedi para a Clara (a voluntária
espanhola) para eu começar o dia e ela topou. Não sabia exatamente o que fazer,
mas sabia que tinha de ser uma coisa amorosa, calma, para lidar com a energia
desses meninos, algo alegre, mas sem ser explosivo. Então, fui pegando as
crianças pela mão, duas por vez. Pegava, abraçava, beijava e levava para a
dentro da tenda e falava de um jeito bem tranquilo para elas ficarem
sentadinhas. Fizemos uma roda e peguei um livro de histórias e fui tirando umas
mágicas do bolso. Foi dando certo... olhei para a Clara e ela estava chorando,
nunca tinha visto os meninos tranquilos daquele jeito.
BBC
Brasil - Não teve disputa por brinquedos?
Lele - Num primeiro momento, não teve brinquedo. Só
depois fomos distribuindo, aos poucos. Levei alguns piões do Brasil e foi a
coisa mais linda que aconteceu. Achei que ia ter de ensiná-los a jogar. Dei um
giz para cada um ir pintando o seu e, quando olhei para trás, eles estavam
todos jogando pião, brincando, rindo, numa alegria...
Lele Luiza vai continuar seu projeto com crianças refugiadas ou em situação de risco |
BBC
Brasil - Eles já conheciam pião?
Lele - Não fazia ideia disso, mas sim. Sem querer,
conseguimos levar para eles a melhor memória que eles tinham do país deles. Uma
memória que não tinha nada a ver com a guerra na Síria, tinha a ver com tempos
felizes, era uma memória alegre. Eles estavam muito empolgados, fazendo algo
que tinham aprendido na cidade, na escola, no quintal deles. Foi incrível. Uma
energia... não teve uma briga sequer. Fiquei muito emocionada. É incrível ver
como a brincadeira une, acalma, põe a criança em contato com ela mesma.
BBC
Brasil - Por que você achar que brincar é uma prioridade para essas crianças
refugiadas?
Lele - Para elas é ainda mais urgente, porque elas
perderam tudo o que tinham. Vivem a falta de tudo. Não têm casa, não têm o
lugarzinho deles, a caixinha debaixo da cama. Por isso mesmo que é preciso dar
continuidade à infância deles, reinventar o espaço da brincadeira mesmo em um
lugar completamente adverso. Brincar é um direito deles. Tanta coisa já foi
roubada deles. Isso não pode ser roubado também.
BBC
Brasil - As brincadeiras também os ajudavam a esquecer um pouco da tragédia,
não?
Lele - Sim, vendo eles brincarem, a gente nem imagina
pelo que passaram até ali. Nos intervalos, eu usava uma Polaroid que havia
levado para fotografar as famílias. Um menino me levou até a tenda dele e só
estava o pai. Perguntei da mãe. Ele apontou para o céu. Fiz um sinal com a mão,
perguntando "como?" E ele fez um som com a boca; "bum!"
Você engole seco, abraça a pessoa, demonstra todo o seu amor.
BBC
Brasil - Mas você conseguia se segurar?
Lele - Sabe, quando eu estava com as crianças, claro
que eu eu ficava superemocionada com as histórias, mas não sentia vontade de
chorar - mesmo nos momentos mais difíceis. Com as crianças, era como se eu
fosse que nem elas. Só que à noite, quando ia pro hotel, chorava sem parar.
Pensava que eu tinha uma cama, um banho quente... os meninos não tinham nada
disso. Voltar para Nova York também foi difícil. Voltar para sua vida real, não
ter mais como estar com as crianças.
Nalem, de véu, saiu da Síria e chegou até a Grécia sozinha com os cinco filhos |
BBC
Brasil - E como ficou sua vida em Nova York, seu grupo de brincadeiras?
Lele - Resolvi desativar meu playgroup por pelo menos
um ano, para me dedicar ao Child Project Refugee. Me dói muito porque faço isso
desde que cheguei aqui, há 14 anos. Quando comecei, inclusive, meu inglês era
igual ao deles, falava como uma criança de 3 anos (risos). Mas na Grécia me deu
um click, porque pela primeira vez eu estava fazendo o que eu queria quando saí
do Brasil: brincar com crianças do mundo, assegurar essa cultura da criança.
BBC
Brasil - Quais os próximos destinos?
Lele - Neste mês, embarco para a Áustria, passarei
algumas semanas com as crianças refugiadas de lá. Depois, devo ir para a
Turquia e para o Líbano. E também tenho projetos de brincar com crianças em
situações delicadas, não necessariamente envolvendo guerra, como em um projeto
que devo participar na Índia.
BBC
Brasil - E a Grécia?
Lele - Eu mal posso acreditar, mas o campo Eko não
existe mais. Os refugiados foram retirados de lá e levados para um campo
militar, onde não podem cozinhar, não há escola e as condições são péssimas. E
lá ONGs estrangeiras também costumam ser proibidas. Eu vi como funcionam esses
campos quando visitei um assim no norte da Grécia (o campo de Alexandria). Mas
vou voltar para Grécia no segundo semestre.
BBC
Brasil - Você mantém contato com os refugiados que conheceu lá?
Lele - Sim, com alguns eu me comunico ainda,
especialmente por WhatsApp, como com a família que ganhou um celular para a
esposa falar com o marido, que estava na Alemanha. Uma mãe de cinco crianças,
que atravessou sozinha da Síria até a Grécia. Nunca vi uma mãe naquele estado
de esgotamento, me disse que não dormia, com medo de os meninos saírem da
barraca no meio da noite.
A brasileira diz que chorava à noite, quando voltava para seu hotel |
BBC
Brasil - O que você aprendeu no começo do projeto que vai repetir ou evitar nessa segunda fase?
Lele - Uma das coisas que quero repetir é o projeto de
troca que fiz entre crianças de uma escola aqui de Nova York com crianças
sírias. Umas fizeram desenhos para as outras - foi incrível. Agora quero fazer
vídeos também. Porque quero mostrar para as crianças que todos são iguais.
Aquela pessoa sofrendo é parte de você. Você não quer isso, porque vai sofrer
também.
Quero manter esse contato entre elas, porque toda
criança tem dentro dela a compaixão, tem senso de igualdade, de justiça. E vai
perdendo quando cresce, quando passa a achar que ter um carro te faz melhor. Eu
acho que esse intercâmbio de desenho ou vídeo mantém esse valor original que
vive dentro das crianças. As mensagens eram lindas, com frases como:
"Vocês são as pessoas mais corajosas desse mundo, estamos
orgulhosos...".
BBC
Brasil - Você percebe diferença entre as crianças sírias, brasileiras,
americanas?
Lele - Bem, o que eu percebi logo de cara quando
cheguei aos Estados Unidos foi que as crianças daqui já tinham uma perda, não
sabiam brincar sozinhas, não podiam pular corda, tudo era perigoso.
Normalmente, as brincadeiras aqui têm de ter um propósito. Fiquei chocada
quando um menino me contou que no pega-pega aqui, quem for pego tem que falar
uma palavra com a letra que o pegador fala. Gente, o verdadeiro brincar não tem
propósito. No meu grupo, eu só brinco, não fico querendo ensinar nada.
Mas em geral, meninos e meninas de todo o mundo são
muito parecidos, porque a linguagem da criança é sempre o brincar. Sempre fico
observando. Os meus professores sempre foram as crianças.
Por
Mariana Della Barba, da BBC
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Um livro sobre a questão dos refugiados que você não pode deixar de ler:
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