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"Lava jato" cria nova
geração de juízes, promotores e advogados
A “lava jato” se concretiza em
estratégia indutiva que pode mudar a Justiça. Antes de mudar leis, teses e
doutrinas, vem mudando a própria prática do Judiciário, da advocacia, Polícia Federal
e Ministério Público. Jurídica, econômica e politicamente. Muda comportamentos
fragmentados antes de pensamentos sistematizados.
Impacta, por consequência, no direito
penal, processual, administrativo e constitucional. Na jurisprudência.
Estimula-se a criação de novas leis, como a MP 703/2015, que dispôs sobre os
acordos de leniência. Se estas mudanças vão permanecer, não sabemos. É cedo.
Mas com certeza se abrem novos caminhos. Não consolidados de antemão. É bom
prestar atenção.
Marcel Proust dizia que o hábito é a
segunda natureza do homem. A primeira sendo a natureza física. Cultura é o
conjunto dos hábitos de uma sociedade. Estamos, pois, assistindo possível
mudança cultural de como o Brasil entende e prática a justiça. Os indicadores
são vários. Nosso objetivo neste texto é identificar alguns. Uns mais
polêmicos, outros menos.
Uma nova geração de juízes,
procuradores e policiais:
Estamos diante de mudança geracional.
Juízes, procuradores, delegados envolvidos são mais jovens. Formaram-se com
entre 24 e 26 anos. Aguardaram os três anos necessários de prática jurídica e
tentaram fazer concurso durante mais dois ou três anos, em média, acredito. Uma
geração em volta dos quarenta anos. Moldada na democracia, ou pelo menos em sua
crença constitucional. Receberam melhores salários e têm maior statussocial.
Embora não se tenha pesquisas
empíricas rigorosas, provavelmente estes jovens profissionais não procedem
apenas da elite econômica, mas também da nova classe média, com novos valores e
ambições. Mais mérito, competição, experimentação, objetividade, rapidez. Menos
retórica, dogmas e pistolão.
Têm menos passado a proteger ou a
temer. Poucos participaram de alianças ou disputas de poder político ou
administrativas internas aos tribunais. São mais livres e contestadores de suas
próprias instituições. Em geral, defendem eleições diretas para a presidência
dos tribunais e querem maior transparência orçamentária.
Na tese de doutorado em Ciências
Políticas de Cátia Aida da Silva, orientada por Ruth Cardoso,1 sobre promotores de São Paulo,
ficou evidente que esta geração quer participar da política brasileira. Mas não
por meio dos partidos políticos. Escolhem suas profissões pela motivação de
fazer política, no seu sentido mais digno. Participar do destino da polis onde
vivem. Inclusão política e exclusão partidária.
Perguntado certa vez, pela mídia
global, se o juiz Sergio Moro tinha uma pauta politica própria, e se isto lhe
afetaria a imparcialidade necessária, respondi que ele tinha sim uma pauta
política: o combate à corrupção. E que tanto não lhe afetava a imparcialidade.
Reforçava.
Muitas pesquisas mostram que às vezes
a corrupção preocupa os brasileiros mais do que o desemprego. O que de resto é
fenômeno global. Estados Unidos, China, Europa e América Latina. A própria
“lava jato”, com suas conexões holandesas, suíças, americanas, angolanas e de
paraísos fiscais comprova a globalização da corrupção local. Ou vice-versa.
Esta geração mostra-se mais apta a
lidar com as tecnologias de informática, como, aliás, mostrou pesquisa
coordenada por Maria Tereza Sadek e Sérgio Luiz Junkes, publicada em agosto de
2015.2 Lidam bem com softwares sofisticados. São
capazes de retirar inteligência de bancos de dados e trabalhar com Big Data.
Com isto, se moderniza o principal
objetivo dos inquéritos: a busca da verdade por meio de informações confiáveis.
A tecnologia do acesso a informações, antes inalcançável, lhes é mais fácil. E
mais rápida. Procuram e acham fatos decorrentes de telefonemas, viva-voz,
planilhas, documentações, extratos bancários, vídeos, listagens e por aí vão.
Tudo conectado. Tudo muda.
Ulysses Guimarães chamava o fato de
"sua excelência, o fato", diante da preponderância que hoje tem para
quase todos, processos decisórios. Políticos e jurídicos também.
E se o fato é o poder, a informação é
seu exercício. Na “lava jato”, a produção e controle da informação é a base
real da autonomia constitucional do Ministério Público, da Polícia Federal e do
livre convencimento dos juízes. Daí porque o Ministério Público e a Polícia
Federal hesitam em comunicar suas diligências e operações a Brasília.
Desconfiam de eventuais alianças de suas chefias político-partidárias com
empreiteiros e políticos envolvidos.
Daí também porque o Supremo confirma
a imensa maioria das decisões das instâncias inferiores. São baseadas em
sólidos fatos, que dificilmente se dissolvem no ar das argumentações puramente
abstratas. Fatos limitam as teorias e intepretações. Não é por menos que quando
comprovados em inglês chamam de evidence. Ou seja é vidente, é
visto.
Erram estes jovens profissionais aqui
e acolá. Às vezes, extrapolam, mas passaram por duro aprendizado institucional,
com Banestado, castelo de areia, furacão e outras operações. Aprenderam. A
principal função de Teori Zavascki, nesse contexto, é evitar nulidades em
qualquer instância. E assim se faz obedecer e legitimar.
É também geração capaz de trabalho em
equipe. Juiz, desembargador e ministro não decidem mais sozinhos, com seus
livros, em seus gabinetes. Seja no fórum, ou nos seus apartamentos.
O trabalho judicial não é mais
solidão unipessoal, mas equipe interinstitucional. Judiciário, Ministério
Público e Polícia Federal, resguardadas suas competências distintas, se unem em
objetivo comum: produzir justiça. Será um exemplo? Permanecerá?
Os advogados e a batalha da
coordenação:
Os advogados e os escritórios
enfrentam estas mudanças. Mas enfrentam também dificuldades, sobretudo pela
maneira como se organiza atualmente o exercício profissional.
Diante da extensão e complexidade das
redes e sub-redes de ilícitos, seus múltiplos impactos, em múltiplos campos,
pessoal, familiar e empresarial, coordenar é preciso. Diante da pluralidade de
réus em redes, corrupção, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e tantos
outros, raramente o ilícito é crime individual.
Um sistema repressivo, estruturado no
individualismo da ideologia liberal, se mostra cada dia menos eficaz para lidar
com a realidade interconectada dos negócios e da administração pública de hoje.
Na Petrobras, o cartel não é
econômico. É cartel para se controlar direito de corromper. E se desdobra em
várias áreas: penal, processual, administrativa, cível, constitucional e
outras.
Assim, defender os réus é, antes de
tudo, desafio de coordenação. A organização da advocacia, por meio de
individualizações de advogados ou mesmo de escritórios, tem novos desafios.
O problema é que os melhores
advogados criminalistas atuam individualmente em seus escritórios. Assim como
os melhores advogados constitucionalistas, por exemplo. Refletem a anacrônica
divisão de disciplinas dos currículos das escolas de direito e o positivismo de
dogmáticas feitas do isolamento dos conhecimentos.
Quem primeiro vislumbrou esta
necessidade - a da interdisciplinaridade como coordenação de múltiplas defesas,
de múltiplos réus, em múltiplas arenas interconectadas — foi Marcio Thomaz
Bastos.
Com sua ida, grandes empreiteiros têm
contratado grandes escritórios, com a tarefa de apenas coordenar grandes
equipes, dentro e de fora de seus âmbitos. A tecnologia da coordenação jurídica
e judicial é novo campo que se abre aos advogados.
A cooperação jurídica internacional,
criada como combate ao financiamento do terrorismo, produziu um subproduto
imensamente útil: o combate ao financiamento da corrupção global e local. E
neste aspecto, a cooperação é também diferencial decisivo.
É organizada, institucionalizada e
coordenada entre os judiciários, promotorias e polícias nacionais. De e entre
países. O que a torna mais ágil e mais eficiente. Os escritórios privados,
mesmo internacionais, têm dificuldade nesta coordenação governamental global.
A rede de corrupção pode até ser uma
só, feitas de conexões sucessivas a fundamentar a extensão da competência
processual de Curitiba. Mas a fragmentação institucional — Supremo, TCU, CGU,
Ministério da Justiça, múltiplas instâncias etc. — cria instabilidade, onde
acordos isolados aqui são desconsiderados por desacordos acolá.
A coordenação além do apenas
judicial:
Finalmente, a batalha das
coordenações entre autoridades públicas e os advogados privados no judiciário,
isto é, no judicial, se estende para além dos limites do apenas jurídico, isto
é, do lícito ou do ilícito.
“Lava jato” progride na liberdade de
imprensa, no desenvolvimento das mídias sociais, na prevalência da imagem sobre
a palavra, do visível contra o apenas argumentado, da ascensão do judiciário na
democracia, e da melhor educação da população.
Pesquisa ainda inédita de Armando
Castelar e Fernando de Holanda indica que o fator educação, mais do que renda,
é o que faz com que as pessoas procurem a justiça.
A defesa hoje extrapola o apenas
legal. A coordenação dos réus, assim como das autoridades, precisa incluir a
comunicação, as relações institucionais, os múltiplos lobbies judiciais,
administrativos, e legislativos, assessoria de imprensa e mídia training para
seus clientes, como alguns escritórios, aliás, já oferecem. Treinamentos como
testemunhas, comportamento e cuidados em caso de serem presos, body
language, como se desfazer tecnologicamente de evidências etc.
Mais: o judicial e o comunicativo têm
que se coordenar com especialistas em inteligência de big data, em
informática, contabilidade, finanças empresarias e privadas. Todo um bravo
mundo novo de oportunidades e desafios.
Neste novo mercado, ressaltam, sem
dúvidas, os profissionais, jurídicos ou não, com qualidades de estrategistas.
Fazer ou não a delação? Fazer ou não o acordo leniência? Quem? Quando? Onde? Qual
a extensão? Como melhorar, em benefício do cliente, as novas leis,
anticorrupção? Ou mesmo como mudá-las, não apenas na arena da jurisprudencial,
mas na própria arena legislativa como no caso da MP do acordo de leniência.
Como em todos os países, a defesa
preferencial dos réus tem sido a minimizadora de riscos. Contabilizar perdas e
danos. Por isso, aceitam a delação. Amortecem as condenações individuais dos
executivos, oferecendo apoio empresarial às famílias. Fazem acordo de
leniência. Pagam alguns bilhões ao erário, via Controladoria Geral da União.
Vendem ou remodelam as empresas. A defesa tem que incluir a remodelagem da
governança e a perspectiva de seus negócios futuros.
Como disse um empresário de grande
empreiteira pioneira no acordo de leniência, Vitor Hallack, em novembro de
2015, ao jornal Folha de S.Paulo: "Se, com tudo isso, nada
mudar, estamos fora do mercado".3
Nesta batalha de estratégias
coordenadas, o advogado tem mais dificuldades em conduzir os processos através
do princípio de que o Judiciário não age, apenas reage. O juiz é quem agora
conduz. Os infindáveis recursos protelatórios, instrumentos principais da
condução via advogados, parecem estar com eficácia findável.
Plantar nulidades para colher
prescrição - o juiz não seria competente, a defesa foi cerceada, o delegado
extrapolou poder investigatório etc. - é estratégia mais arriscada. Tribunais
superiores não suportam mais serem "engavetadores" de casos que
chegam quase prescritos. Diminuem-se diante do olhar da opinião pública. Perdem
credibilidade moral, legitimidade operacional e poder político institucional.
Quem melhor expressou este passado,
que ainda persiste, foi o jornalista Pimenta Neves que assassinou a namorada.
Perguntado mais de dez anos depois de denunciado se daquela vez iria mesmo para
a prisão, ele respondeu: "Agora vou sim, pois acabaram-se os
recursos".4 Juízes e tribunais começam a se autodefender
contra estas estratégias.
Na medida em que exista maior
sintonia entre primeira instância e instâncias superiores, como está havendo na
“lava jato”, a estratégia dos conflitos de competência pode prevalecer aqui e
ali, mas tem tido menos sucesso.
Em suma, na “lava jato” o que está em
jogo é muito mais do que a culpabilidade ou não dos réus, o combate à
corrupção. Está aparecendo uma nova demanda para uma nova prática profissional
de juízes, advogados, procuradores e policiais. Mais sintonizada com um mais
eficaz estado democrático de direito.
Provavelmente a Justiça muda, ou
muda.
1 Cátia Aida
Pereira da Silva, Doutorado, Ciência Política, Novas Facetas de Atuação dos
Promotores de Justiça - Um Estudo sobre o Ministério Público e a Defesa de
Interesses Sociais (11.06.1999).
2 Disponível
em: [www.amab.com.br/fileadmin/user_upload/Pesquisa_litigio_no_brasil_BAHIA.pdf].
Acesso em: 22.04.2016.
3 Disponível
em:
[www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/11/1707764-se-nada-mudar-depois-da-lava-jato-sairemos-do-mercado-diz-executivo.shtml].
Acesso em: 22.04.2016.
4 Sobre o tema,
ver: [www.estadao.com.br/noticias/geral,apos-quase-11-anos-stf-manda-prender-pimenta-neves,723573].
Acesso em: 22.04.2016.
Por Joaquim Falcão, na Revista
dos Tribunais, vol. 967/2016 (Caderno Especial Corrupção), e disponível
na Revista dos Tribunais Online Essencial.