Nem tudo são rosas para quem vive de flores. Os dias num mundo feito de néctar
e cores se passam em ataques contra inimigos maiores e coração acelerado a
literais 1.000 batidas por minuto. Sexo, só o conquistado no grito. É dura a
vida do beija-flor. O deleite está em apreciá-los, o que no Brasil pode ser
feito em quase qualquer lugar, do asfalto à floresta. Ou até mesmo nas páginas
de livros, como o recém-lançado Beija-flores do Brasil (editora Marte), que
torna essas obras-primas da natureza em obras de arte em papel.
Esse não é o primeiro guia sobre beija-flores brasileiros, mas inova ao tratar a arte com o rigor da ciência. “Ilustrações são melhores porque muitas espécies são difíceis de fotografar, e as fotos nem sempre mostram os detalhes”, explicou Luís Fábio Silveira, um dos autores do livro e o curador da maior coleção de aves brasileiras do mundo, a do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP).
Silveira assina os textos, e Eduardo Parentoni Bretta as ilustrações. O mineiro Bretta trabalha para alguns dos principais centros de ornitologia do país e do exterior, como os da USP e o da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. “É um privilégio ter o trabalho de Brettas, o maior pintor de aves do Brasil”, elogiou Silveira.
Ganham novos ares o brilho-de-fogo (Topaza pella), o maior e um dos mais belos colibris do Brasil, e raridades como o rabo-branco-de-margarette, ou balança-rabo-de-margarette (Phaethornis margarettae), cujo nome popular acabou por se tornar uma duvidosa homenagem a Margaretta du Pont Greenewalt, mulher de Crawford Hallock Greenewalt, que foi presidente da DuPont e conservacionista. Hoje esse rabo-branco só existe em algumas poucas áreas do litoral da Bahia e do Espírito Santo.
O livro chama a atenção também para o pouco conhecido microcosmo dos beija-flores, onde a aparência muitas vezes engana. Nele, as cores não se originam de pigmentos, mas da iridescência. O fenômeno óptico é produzido por estruturas nas penas que refletem a luz em diferentes ângulos e fazem com que a tonalidade e o brilho mudem de acordo com a posição do observador.
Daí se originam os nomes indígenas colibri — resplandecente —, guainumbi — ave cintilante — e guaraciaba — raio de sol. Para reproduzir em tinta o espetáculo de plumas e penas de cada uma das 87 espécies do Brasil, Brettas precisou recorrer a uma paleta de mais de 2 mil cores.
As menores espécies, como o topetinho-vermelho (Lophornis magnificus), pesam 2 gramas, menos que a finada moeda de R$ 0,01, e chegam a não mais que 6 centímetros — perdem até para besouros. As maiores, como o brilho-de-fogo e o beija-flor-tesoura (Eupetomena macroura) — uma das mais comuns do país —, figuram fácil em qualquer jardim, pesam 9 gramas e medem até 20 centímetros.
Tudo é superlativo na vida desses passarinhos que comem para se mover e se movem para comer. Um colibri precisa visitar até 2 mil flores por dia. Para isso, voa quase sem cessar, chega a 80 quilômetros por hora, com tiros curtos de 150 quilômetros por hora. O coração alcança 1.200 batimentos por minuto em movimento, reduzidos para 600 quando a ave está pousada. O coração do ser humano bate de 60 a 100 vezes por minuto. Nem Usain Bolt, o homem mais rápido do planeta, que já chegou a 45 quilômetros por hora, tem fôlego para se comparar ao menor dos colibris.
Gastar tanta energia exige a ingestão de até oito vezes o peso do próprio corpo por dia em comida. Mas essas avezinhas que amam açúcar são tudo menos doces. Por flores e pela própria vida, brigam com o planeta. Audácia, excesso de autoestima e absoluta falta de noção de perigo se explicam por necessidade. Néctar não é tão abundante quanto parece. Símbolos de jardins de paz e contemplação, beija-flores são fúria concentrada em plumas.
“São agressivos com outros beija-flores e até mesmo com aves muito maiores. Chegam a atacar predadores de passarinhos, como gaviões e corujas. Tamanho definitivamente não é problema para eles”, disse Fernando Pacheco, um dos mais respeitados especialistas em aves do Brasil.
O beija-flor-tesoura, por exemplo, concorre ao título de peso-pena mais folgado do reino animal. Pesa 9 gramas, mas não se furta a atacar preventivamente gaviões-carijós, ávidos comedores de passarinhos, que pesam cerca de 30 vezes mais do que eles.
Quando um beija-flor descobre uma boa flor, cheia de néctar, toma-a para si. Fica de guarda empoleirado na vizinhança e ai de quem se atreva a beijar sua preferida, mesmo que seja da própria espécie, observou Pacheco. Invasores são repelidos a bicadas. Não há espaço para gentileza numa vida sem descanso.
Mesmo os minúsculos topetinhos encaram espécies maiores. Pense em 2 gramas de impetuosidade e beleza. “Eles nem são os mais agressivos, mas ainda assim são superbriguentos”, contou Luciano Lima, coordenador do primeiro observatório de aves do Brasil, o do Instituto Butantan, em São Paulo.
O açúcar faz do beija-flor um prisioneiro do dia, destinado a jamais ver a noite. Só lhe resta se recolher ao fechar das pétalas, pois, com tamanho gasto energético, morreria de fome em poucas horas. O beija-flor então busca um lugar seguro para se empoleirar e entra em profundo torpor. A temperatura cai à metade, e os batimentos cardíacos para menos de 40 por minuto. Ele passa assim as horas de escuridão, até que a luz o ponha de novo em movimento.
Se comida é guerra, amor significa disputa. É possível que o comportamento agressivo também seja uma espécie de chamariz para a reprodução. Uma hipótese é que exibir agressividade seja uma mensagem do tipo “Veja como estou bem, sou forte e vou sobreviver. Tenha filhos comigo”, acrescentou Pacheco.
Certo mesmo é que os beija-flores fazem tumultos. Esse é o nome dado a aglomerações de passarinhos que podem acontecer para espantar no grito — ou a piados — predadores como corujas e cobras. É também no grito que conquistam as fêmeas. Os machos de algumas espécies do grupo dos balança-rabos ou ermitões se reúnem e formam “arenas” em galhos próximos.
Vinte a 30 machos balança-rabos cantam o mais alto que conseguem, explicou Vítor Piacentini, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso e um dos maiores especialistas em beija-flores do Brasil. A tese de doutorado de Piacentini trata justamente dos ermitões.
“A fêmea passa entre eles e escolhe quem quiser. Mas, depois que copula, é abandonada. Cabe a ela construir o ninho e criar os filhotes sozinha. As fêmeas também são agressivas e disputam comida e território. O beija-flor é bélico”, afirmou Piacentini.
Para conseguir néctar, é preciso saber voar ao sabor do vento que balança as flores e se alimentar sem destruir sua delicada fonte de alimento. É por isso que os beija-flores são capazes de parar em pleno ar e voar em qualquer direção, com uma rapidez sem comparação. Isso exige que batam as asas até 200 vezes por minuto.
“Eles são os baladeiros da floresta. Não param nunca, tamanha a energia, e volta e meia se envolvem em confusão”, divertiu-se Pacheco.
Porém, colibris não são veganos adoradores de néctar, mas onívoros vorazes, que não dispensam mosca, mosquito, vespa e o que der para pegar. As flores podem ser o prato principal, mas não o único do cardápio. Eles tiram dos insetos as proteínas de que precisam para sustentar os músculos. No Brasil, não faltam lugares para apreciar beija-flores. Mesmo grandes cidades têm muitas espécies. O município do Rio de Janeiro, disse Piacentini, é campeão: tem pelo menos 30, graças à diversidade de ambientes, da restinga às florestas dos maciços da Tijuca e da Pedra Branca. Mas São Paulo, Brasília e Manaus não ficam muito atrás. Entre as florestas, as mais ricas, além da Amazônia, são as remanescentes da Mata Atlântica no Espírito Santo e na Bahia.
“Talvez o lugar mais rico do Brasil e um dos mais especiais do mundo seja a ainda pouco conhecida Serra da Mocidade, em Roraima. Ela mal começou a ser estudada e já tem 30 espécies”, destacou Piacentini, autor de um respeitado guia sobre os beija-flores do Brasil em parceria com o fotógrafo Luiz Carlos Ribenboim.
Para viver cercado de beija-flores — que para o ser humano representam inofensivas fontes de delicadeza, beleza e deslumbramento —, basta lhes oferecer flores. Ou recorrer às garrafinhas com água açucarada, injustamente demonizadas, acusadas de transmitir fungos e bactérias. Bobagem, asseguraram Luciano Lima e Luís Silveira. É só lavá-las uma vez por dia para eliminar os riscos — e, em troca, receber a visita de mais de uma espécie das espetaculares, mas não tão meigas, avezinhas.
Esse não é o primeiro guia sobre beija-flores brasileiros, mas inova ao tratar a arte com o rigor da ciência. “Ilustrações são melhores porque muitas espécies são difíceis de fotografar, e as fotos nem sempre mostram os detalhes”, explicou Luís Fábio Silveira, um dos autores do livro e o curador da maior coleção de aves brasileiras do mundo, a do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP).
Silveira assina os textos, e Eduardo Parentoni Bretta as ilustrações. O mineiro Bretta trabalha para alguns dos principais centros de ornitologia do país e do exterior, como os da USP e o da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. “É um privilégio ter o trabalho de Brettas, o maior pintor de aves do Brasil”, elogiou Silveira.
Ganham novos ares o brilho-de-fogo (Topaza pella), o maior e um dos mais belos colibris do Brasil, e raridades como o rabo-branco-de-margarette, ou balança-rabo-de-margarette (Phaethornis margarettae), cujo nome popular acabou por se tornar uma duvidosa homenagem a Margaretta du Pont Greenewalt, mulher de Crawford Hallock Greenewalt, que foi presidente da DuPont e conservacionista. Hoje esse rabo-branco só existe em algumas poucas áreas do litoral da Bahia e do Espírito Santo.
O livro chama a atenção também para o pouco conhecido microcosmo dos beija-flores, onde a aparência muitas vezes engana. Nele, as cores não se originam de pigmentos, mas da iridescência. O fenômeno óptico é produzido por estruturas nas penas que refletem a luz em diferentes ângulos e fazem com que a tonalidade e o brilho mudem de acordo com a posição do observador.
Daí se originam os nomes indígenas colibri — resplandecente —, guainumbi — ave cintilante — e guaraciaba — raio de sol. Para reproduzir em tinta o espetáculo de plumas e penas de cada uma das 87 espécies do Brasil, Brettas precisou recorrer a uma paleta de mais de 2 mil cores.
As menores espécies, como o topetinho-vermelho (Lophornis magnificus), pesam 2 gramas, menos que a finada moeda de R$ 0,01, e chegam a não mais que 6 centímetros — perdem até para besouros. As maiores, como o brilho-de-fogo e o beija-flor-tesoura (Eupetomena macroura) — uma das mais comuns do país —, figuram fácil em qualquer jardim, pesam 9 gramas e medem até 20 centímetros.
Tudo é superlativo na vida desses passarinhos que comem para se mover e se movem para comer. Um colibri precisa visitar até 2 mil flores por dia. Para isso, voa quase sem cessar, chega a 80 quilômetros por hora, com tiros curtos de 150 quilômetros por hora. O coração alcança 1.200 batimentos por minuto em movimento, reduzidos para 600 quando a ave está pousada. O coração do ser humano bate de 60 a 100 vezes por minuto. Nem Usain Bolt, o homem mais rápido do planeta, que já chegou a 45 quilômetros por hora, tem fôlego para se comparar ao menor dos colibris.
Gastar tanta energia exige a ingestão de até oito vezes o peso do próprio corpo por dia em comida. Mas essas avezinhas que amam açúcar são tudo menos doces. Por flores e pela própria vida, brigam com o planeta. Audácia, excesso de autoestima e absoluta falta de noção de perigo se explicam por necessidade. Néctar não é tão abundante quanto parece. Símbolos de jardins de paz e contemplação, beija-flores são fúria concentrada em plumas.
“São agressivos com outros beija-flores e até mesmo com aves muito maiores. Chegam a atacar predadores de passarinhos, como gaviões e corujas. Tamanho definitivamente não é problema para eles”, disse Fernando Pacheco, um dos mais respeitados especialistas em aves do Brasil.
O beija-flor-tesoura, por exemplo, concorre ao título de peso-pena mais folgado do reino animal. Pesa 9 gramas, mas não se furta a atacar preventivamente gaviões-carijós, ávidos comedores de passarinhos, que pesam cerca de 30 vezes mais do que eles.
Quando um beija-flor descobre uma boa flor, cheia de néctar, toma-a para si. Fica de guarda empoleirado na vizinhança e ai de quem se atreva a beijar sua preferida, mesmo que seja da própria espécie, observou Pacheco. Invasores são repelidos a bicadas. Não há espaço para gentileza numa vida sem descanso.
Mesmo os minúsculos topetinhos encaram espécies maiores. Pense em 2 gramas de impetuosidade e beleza. “Eles nem são os mais agressivos, mas ainda assim são superbriguentos”, contou Luciano Lima, coordenador do primeiro observatório de aves do Brasil, o do Instituto Butantan, em São Paulo.
O açúcar faz do beija-flor um prisioneiro do dia, destinado a jamais ver a noite. Só lhe resta se recolher ao fechar das pétalas, pois, com tamanho gasto energético, morreria de fome em poucas horas. O beija-flor então busca um lugar seguro para se empoleirar e entra em profundo torpor. A temperatura cai à metade, e os batimentos cardíacos para menos de 40 por minuto. Ele passa assim as horas de escuridão, até que a luz o ponha de novo em movimento.
Se comida é guerra, amor significa disputa. É possível que o comportamento agressivo também seja uma espécie de chamariz para a reprodução. Uma hipótese é que exibir agressividade seja uma mensagem do tipo “Veja como estou bem, sou forte e vou sobreviver. Tenha filhos comigo”, acrescentou Pacheco.
Certo mesmo é que os beija-flores fazem tumultos. Esse é o nome dado a aglomerações de passarinhos que podem acontecer para espantar no grito — ou a piados — predadores como corujas e cobras. É também no grito que conquistam as fêmeas. Os machos de algumas espécies do grupo dos balança-rabos ou ermitões se reúnem e formam “arenas” em galhos próximos.
Vinte a 30 machos balança-rabos cantam o mais alto que conseguem, explicou Vítor Piacentini, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso e um dos maiores especialistas em beija-flores do Brasil. A tese de doutorado de Piacentini trata justamente dos ermitões.
“A fêmea passa entre eles e escolhe quem quiser. Mas, depois que copula, é abandonada. Cabe a ela construir o ninho e criar os filhotes sozinha. As fêmeas também são agressivas e disputam comida e território. O beija-flor é bélico”, afirmou Piacentini.
Para conseguir néctar, é preciso saber voar ao sabor do vento que balança as flores e se alimentar sem destruir sua delicada fonte de alimento. É por isso que os beija-flores são capazes de parar em pleno ar e voar em qualquer direção, com uma rapidez sem comparação. Isso exige que batam as asas até 200 vezes por minuto.
“Eles são os baladeiros da floresta. Não param nunca, tamanha a energia, e volta e meia se envolvem em confusão”, divertiu-se Pacheco.
Porém, colibris não são veganos adoradores de néctar, mas onívoros vorazes, que não dispensam mosca, mosquito, vespa e o que der para pegar. As flores podem ser o prato principal, mas não o único do cardápio. Eles tiram dos insetos as proteínas de que precisam para sustentar os músculos. No Brasil, não faltam lugares para apreciar beija-flores. Mesmo grandes cidades têm muitas espécies. O município do Rio de Janeiro, disse Piacentini, é campeão: tem pelo menos 30, graças à diversidade de ambientes, da restinga às florestas dos maciços da Tijuca e da Pedra Branca. Mas São Paulo, Brasília e Manaus não ficam muito atrás. Entre as florestas, as mais ricas, além da Amazônia, são as remanescentes da Mata Atlântica no Espírito Santo e na Bahia.
“Talvez o lugar mais rico do Brasil e um dos mais especiais do mundo seja a ainda pouco conhecida Serra da Mocidade, em Roraima. Ela mal começou a ser estudada e já tem 30 espécies”, destacou Piacentini, autor de um respeitado guia sobre os beija-flores do Brasil em parceria com o fotógrafo Luiz Carlos Ribenboim.
Para viver cercado de beija-flores — que para o ser humano representam inofensivas fontes de delicadeza, beleza e deslumbramento —, basta lhes oferecer flores. Ou recorrer às garrafinhas com água açucarada, injustamente demonizadas, acusadas de transmitir fungos e bactérias. Bobagem, asseguraram Luciano Lima e Luís Silveira. É só lavá-las uma vez por dia para eliminar os riscos — e, em troca, receber a visita de mais de uma espécie das espetaculares, mas não tão meigas, avezinhas.
Por Ana Lucia Azevedo, na Revista Época