O mês de julho marca os 100 anos de nascimento — no
dia 2 — e os dez de morte — no dia 31 — de Athos Bulcão, pintor, escultor e
desenhista, cuja obra foi associada, no Brasil e no exterior, aos mosaicos em
azulejo que produziu desde a década de 1940. Na época, após abandonar o curso
de medicina para se dedicar à pintura, tornou-se assistente de Candido
Portinari na construção do painel de São Francisco de Assis, na Igreja da
Pampulha, em Belo Horizonte, marco da arquitetura moderna que se espalharia
pelo país nas décadas seguintes.
Quando Brasília foi erguida no meio do Cerrado, entre 1956 e 1960, além do cinza do concreto armado dos projetos de Oscar Niemeyer e do vermelho da terra que subia com o trabalho das máquinas e dos operários, eram de Bulcão as cores que davam vida aos prédios da futura capital, como a Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima ou o Brasília Palace Hotel. A ligação do artista carioca com a cidade tornou-se intrinsecamente relacionada a sua produção: após se mudar em 1958, ainda durante as obras, Bulcão permaneceu em Brasília até morrer aos 90 anos, em 2008, no Hospital Sarah Kubitschek — em decorrência de mal de Parkinson, contra o qual lutava desde 1991. Hoje, a capital conta com cerca de 260 obras de sua autoria, em prédios públicos e espaços privados.
A obra do carioca, contudo, vai muito além da azulejaria e dos projetos relacionados à arquitetura, como revela a exposição 100 anos de Athos Bulcão, inaugurada em janeiro no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília, de onde seguiu para Belo Horizonte, permanecendo em cartaz até 26 de junho. Com uma média superior a 100 mil visitantes em cada cidade, a mostra será aberta em São Paulo em 1º de agosto e finalizará sua temporada itinerante no CCBB do Rio de Janeiro, numa volta à cidade natal do artista, em 7 de novembro. Com curadoria de Marília Panitz e André Severo, a mostra é dividida em oito núcleos temáticos, que também destacam a pintura figurativa realizada entre as décadas de 1940 e 1950, os croquis feitos para o grupo de teatro O Tablado e as fotomontagens que remetem ao surrealismo de Man Ray e Dora Maar. Em seu centenário, Bulcão é redescoberto como um criador plural, que explorava linguagens distintas, seja em obras monumentais, seja em telas e desenhos.
“É curioso como Athos é um dos artistas com quem os brasileiros têm mais contato, por causa das obras públicas, e, paradoxalmente, grande parte de sua produção veio a ser mais conhecida nos últimos anos, sobretudo os trabalhos em ateliê”, afirmou André Severo. “A proposta de nossa curadoria foi destacar como ele investigou diferentes poéticas e como cada uma influencia a outra. Ele trabalhava simultaneamente em diferentes suportes, por isso é difícil falar em fases distintas como acontece com outros artistas. A constante complementaridade entre linguagens já desmonta essa perspectiva cronológica.” ATHOS BULCÃO É UM DOS ARTISTAS COM QUEM OS BRASILEIROS TÊM MAIS CONTATO POR CAUSA DAS OBRAS PÚBLICAS EM VÁRIAS CAPITAIS, MAS GRANDE PARTE DE SUA PRODUÇÃO DE ATELIÊ FOI RECENTEMENTE REDESCOBERTA Um dos núcleos da exposição, “Rastros” aponta os caminhos abertos por Bulcão e de que forma sua influência se mantém viva entre artistas de gerações posteriores. É o caso do mineiro Alexandre Mancini, de 44 anos, considerado um discípulo direto do carioca na azulejaria, técnica a que se dedica desde 2006. Ele chegou a se encontrar com o mestre em 2007, quando este já estava internado no Sarah Kubitschek, e de lá para cá atua na divulgação de sua obra, nos cursos que ministra.
“Artistas como Athos, Burle Marx e Paulo Rossi Osir elevaram a azulejaria brasileira a outro patamar, recriando uma arte milenar a partir de uma ideia de liberdade e movimento. Athos criou um novo alfabeto, quebrando a percepção do rigor como uma característica essencial para as obras. Quando ele propõe uma modulação aleatória, a partir de certos parâmetros, a repetição de padrões deixa de dominar os trabalhos, e o olhar do espectador é que passa a formar o todo”, destacou Mancini. “Em meados dos anos 2000, a azulejaria voltou com força à produção brasileira em nossa geração, que bebeu direto na fonte de Athos. Vejo o trabalho de muitos jovens artistas e coletivos, como o MUDA, do Rio, levar esse legado à frente.”
No dia de seu centenário, o doodle — como é chamada cada uma das versões customizadas do logotipo do Google, para marcar alguma data ou acontecimento — reproduzia alguns padrões e cores criados por Athos Bulcão, em sequências animadas que se alternavam com o clique do mouse. Em painéis como os do Palácio do Itamaraty, em Brasília; no Memorial da América Latina, em São Paulo; ou no Sambódromo, no Rio, essa sensação de movimento é produzida pela dinâmica desenvolvida pelo artista, que também dava aos operários certa liberdade de criação, dentro de diretrizes que se mantinham de projeto para projeto.
“É incrível como Athos criava tanto dinamismo, muitas vezes a partir de uma variação mínima de elementos. Ele sabia que, em um painel de formas circulares, se o instalador fechasse um círculo, o olhar do espectador seria diretamente direcionado para esse ponto. Por isso, ele sempre recomendava que as formas ficassem abertas. É essa desconstrução que dá a ideia de movimento”, disse André Severo. “Esses padrões de ruptura fazem com que o público fique imerso na obra. Você não precisa decodificar nenhum elemento, é a experiência do todo que cria o sentido.”
Além de Brasília e Belo Horizonte, Athos Bulcão tem obras públicas em cidades como Rio e São Paulo, chegando a países como Argélia, Argentina, França e Itália. Trabalhou sobretudo em projetos assinados por Niemeyer e João Filgueiras Lima, o Lelé, outro expoente da arquitetura moderna brasileira. O trabalho de preservação e divulgação de sua obra é realizado pela Fundação Athos Bulcão, fundada em 1992 na capital federal e que hoje funciona como uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip). Secretária executiva da instituição, Valéria Cabral contou que em Brasília é mais fácil fiscalizar o estado de conservação das obras, que são todas inventariadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em outras cidades, o instituto depende de que danos a obras ou a necessidade de reparos sejam reportados para que ações de conservação sejam sugeridas.
“No Distrito Federal, até pelo fato de as pessoas já conhecerem a fundação, elas sabem a quem procurar no caso de algum risco aos trabalhos de Athos. O fato de serem inventariadas já dá uma condição quase de tombamento às obras na cidade, e qualquer mudança estrutural nos ambientes em que estão instaladas só pode ser realizada com autorização do Iphan e da fundação”, disse Cabral, que trabalha há 22 anos na instituição. “Temos as obras públicas e particulares de Athos catalogadas, mas, fora de Brasília, fica mais difícil fazer esse acompanhamento mais de perto.”
Entidade sem fins lucrativos, a Fundação Athos Bulcão se mantém por meio de captação de projetos, parcerias com empresas, cessão de direito de imagem e da reprodução de padrões para projetos arquitetônicos, mediante uma série de diretrizes e após análise de um conselho fiscal e curatorial. São proibidas, por exemplo, reproduções das azulejarias de obras como as da Igrejinha e do Brasília Palace ou a instalação de padronagens nas chamadas “áreas molhadas” das edificações, como banheiros e cozinhas. Outra área de atuação da fundação se dá na certificação das obras, sobretudo diante do aparecimento mais frequente de falsificações nos últimos anos, acompanhando sua valorização no mercado.
“Chega muita coisa como se fossem trabalhos de ateliê, como gravuras e desenhos. São vários exercícios de nus de mulheres, mas esses eram raríssimos, a maioria dos nus que Athos fez eram masculinos. Mesmo quando ele já sofria os efeitos do mal de Parkinson, algumas características de sua assinatura se mantinham, dá para ver logo quando é uma falsificação”, afirmou Cabral. “A maioria dos trabalhos de Athos são públicos, e quem tem um deles em casa não se desfaz facilmente, o que eleva o preço de mercado e, consequentemente, aumenta o número de falsificações. Sempre pedimos que as pessoas nos procurem antes de adquirir uma obra, mesmo que sejam oferecidas em leilões ou por vendedores conhecidos. Depois da compra pode ser tarde demais.”
Para a secretária executiva da fundação, outra característica de Bulcão que o público começa a descobrir em seu centenário, por meio de iniciativas como a exposição que percorre as unidades do CCBB pelo país, é o humor por trás de suas criações, mais evidente nas fotomontagens ou em obras inspiradas no universo do Carnaval.
“Athos tinha um senso de humor magnífico, muito sofisticado e criticamente apurado. Outro dia fui a um encontro de arquitetos formados na UnB, e eles lembravam as aulas de Athos no Instituto de Artes, quando circulava em volta dos alunos para observar seus desenhos. De vez em quando, ele topava com algum menos habilidoso e sugeria, em tom de brincadeira: ‘Sabia que a faculdade de odontologia daqui é muito boa?’”, lembrou Cabral. “Era uma pessoa de trato muito fácil, de uma sensibilidade e generosidade enormes. Não é à toa que a maior parte de sua obra está em prédios públicos, sempre disponível aos olhos dos espectadores”.
Quando Brasília foi erguida no meio do Cerrado, entre 1956 e 1960, além do cinza do concreto armado dos projetos de Oscar Niemeyer e do vermelho da terra que subia com o trabalho das máquinas e dos operários, eram de Bulcão as cores que davam vida aos prédios da futura capital, como a Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima ou o Brasília Palace Hotel. A ligação do artista carioca com a cidade tornou-se intrinsecamente relacionada a sua produção: após se mudar em 1958, ainda durante as obras, Bulcão permaneceu em Brasília até morrer aos 90 anos, em 2008, no Hospital Sarah Kubitschek — em decorrência de mal de Parkinson, contra o qual lutava desde 1991. Hoje, a capital conta com cerca de 260 obras de sua autoria, em prédios públicos e espaços privados.
A obra do carioca, contudo, vai muito além da azulejaria e dos projetos relacionados à arquitetura, como revela a exposição 100 anos de Athos Bulcão, inaugurada em janeiro no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília, de onde seguiu para Belo Horizonte, permanecendo em cartaz até 26 de junho. Com uma média superior a 100 mil visitantes em cada cidade, a mostra será aberta em São Paulo em 1º de agosto e finalizará sua temporada itinerante no CCBB do Rio de Janeiro, numa volta à cidade natal do artista, em 7 de novembro. Com curadoria de Marília Panitz e André Severo, a mostra é dividida em oito núcleos temáticos, que também destacam a pintura figurativa realizada entre as décadas de 1940 e 1950, os croquis feitos para o grupo de teatro O Tablado e as fotomontagens que remetem ao surrealismo de Man Ray e Dora Maar. Em seu centenário, Bulcão é redescoberto como um criador plural, que explorava linguagens distintas, seja em obras monumentais, seja em telas e desenhos.
“É curioso como Athos é um dos artistas com quem os brasileiros têm mais contato, por causa das obras públicas, e, paradoxalmente, grande parte de sua produção veio a ser mais conhecida nos últimos anos, sobretudo os trabalhos em ateliê”, afirmou André Severo. “A proposta de nossa curadoria foi destacar como ele investigou diferentes poéticas e como cada uma influencia a outra. Ele trabalhava simultaneamente em diferentes suportes, por isso é difícil falar em fases distintas como acontece com outros artistas. A constante complementaridade entre linguagens já desmonta essa perspectiva cronológica.” ATHOS BULCÃO É UM DOS ARTISTAS COM QUEM OS BRASILEIROS TÊM MAIS CONTATO POR CAUSA DAS OBRAS PÚBLICAS EM VÁRIAS CAPITAIS, MAS GRANDE PARTE DE SUA PRODUÇÃO DE ATELIÊ FOI RECENTEMENTE REDESCOBERTA Um dos núcleos da exposição, “Rastros” aponta os caminhos abertos por Bulcão e de que forma sua influência se mantém viva entre artistas de gerações posteriores. É o caso do mineiro Alexandre Mancini, de 44 anos, considerado um discípulo direto do carioca na azulejaria, técnica a que se dedica desde 2006. Ele chegou a se encontrar com o mestre em 2007, quando este já estava internado no Sarah Kubitschek, e de lá para cá atua na divulgação de sua obra, nos cursos que ministra.
“Artistas como Athos, Burle Marx e Paulo Rossi Osir elevaram a azulejaria brasileira a outro patamar, recriando uma arte milenar a partir de uma ideia de liberdade e movimento. Athos criou um novo alfabeto, quebrando a percepção do rigor como uma característica essencial para as obras. Quando ele propõe uma modulação aleatória, a partir de certos parâmetros, a repetição de padrões deixa de dominar os trabalhos, e o olhar do espectador é que passa a formar o todo”, destacou Mancini. “Em meados dos anos 2000, a azulejaria voltou com força à produção brasileira em nossa geração, que bebeu direto na fonte de Athos. Vejo o trabalho de muitos jovens artistas e coletivos, como o MUDA, do Rio, levar esse legado à frente.”
No dia de seu centenário, o doodle — como é chamada cada uma das versões customizadas do logotipo do Google, para marcar alguma data ou acontecimento — reproduzia alguns padrões e cores criados por Athos Bulcão, em sequências animadas que se alternavam com o clique do mouse. Em painéis como os do Palácio do Itamaraty, em Brasília; no Memorial da América Latina, em São Paulo; ou no Sambódromo, no Rio, essa sensação de movimento é produzida pela dinâmica desenvolvida pelo artista, que também dava aos operários certa liberdade de criação, dentro de diretrizes que se mantinham de projeto para projeto.
“É incrível como Athos criava tanto dinamismo, muitas vezes a partir de uma variação mínima de elementos. Ele sabia que, em um painel de formas circulares, se o instalador fechasse um círculo, o olhar do espectador seria diretamente direcionado para esse ponto. Por isso, ele sempre recomendava que as formas ficassem abertas. É essa desconstrução que dá a ideia de movimento”, disse André Severo. “Esses padrões de ruptura fazem com que o público fique imerso na obra. Você não precisa decodificar nenhum elemento, é a experiência do todo que cria o sentido.”
Além de Brasília e Belo Horizonte, Athos Bulcão tem obras públicas em cidades como Rio e São Paulo, chegando a países como Argélia, Argentina, França e Itália. Trabalhou sobretudo em projetos assinados por Niemeyer e João Filgueiras Lima, o Lelé, outro expoente da arquitetura moderna brasileira. O trabalho de preservação e divulgação de sua obra é realizado pela Fundação Athos Bulcão, fundada em 1992 na capital federal e que hoje funciona como uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip). Secretária executiva da instituição, Valéria Cabral contou que em Brasília é mais fácil fiscalizar o estado de conservação das obras, que são todas inventariadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em outras cidades, o instituto depende de que danos a obras ou a necessidade de reparos sejam reportados para que ações de conservação sejam sugeridas.
“No Distrito Federal, até pelo fato de as pessoas já conhecerem a fundação, elas sabem a quem procurar no caso de algum risco aos trabalhos de Athos. O fato de serem inventariadas já dá uma condição quase de tombamento às obras na cidade, e qualquer mudança estrutural nos ambientes em que estão instaladas só pode ser realizada com autorização do Iphan e da fundação”, disse Cabral, que trabalha há 22 anos na instituição. “Temos as obras públicas e particulares de Athos catalogadas, mas, fora de Brasília, fica mais difícil fazer esse acompanhamento mais de perto.”
Entidade sem fins lucrativos, a Fundação Athos Bulcão se mantém por meio de captação de projetos, parcerias com empresas, cessão de direito de imagem e da reprodução de padrões para projetos arquitetônicos, mediante uma série de diretrizes e após análise de um conselho fiscal e curatorial. São proibidas, por exemplo, reproduções das azulejarias de obras como as da Igrejinha e do Brasília Palace ou a instalação de padronagens nas chamadas “áreas molhadas” das edificações, como banheiros e cozinhas. Outra área de atuação da fundação se dá na certificação das obras, sobretudo diante do aparecimento mais frequente de falsificações nos últimos anos, acompanhando sua valorização no mercado.
“Chega muita coisa como se fossem trabalhos de ateliê, como gravuras e desenhos. São vários exercícios de nus de mulheres, mas esses eram raríssimos, a maioria dos nus que Athos fez eram masculinos. Mesmo quando ele já sofria os efeitos do mal de Parkinson, algumas características de sua assinatura se mantinham, dá para ver logo quando é uma falsificação”, afirmou Cabral. “A maioria dos trabalhos de Athos são públicos, e quem tem um deles em casa não se desfaz facilmente, o que eleva o preço de mercado e, consequentemente, aumenta o número de falsificações. Sempre pedimos que as pessoas nos procurem antes de adquirir uma obra, mesmo que sejam oferecidas em leilões ou por vendedores conhecidos. Depois da compra pode ser tarde demais.”
Para a secretária executiva da fundação, outra característica de Bulcão que o público começa a descobrir em seu centenário, por meio de iniciativas como a exposição que percorre as unidades do CCBB pelo país, é o humor por trás de suas criações, mais evidente nas fotomontagens ou em obras inspiradas no universo do Carnaval.
“Athos tinha um senso de humor magnífico, muito sofisticado e criticamente apurado. Outro dia fui a um encontro de arquitetos formados na UnB, e eles lembravam as aulas de Athos no Instituto de Artes, quando circulava em volta dos alunos para observar seus desenhos. De vez em quando, ele topava com algum menos habilidoso e sugeria, em tom de brincadeira: ‘Sabia que a faculdade de odontologia daqui é muito boa?’”, lembrou Cabral. “Era uma pessoa de trato muito fácil, de uma sensibilidade e generosidade enormes. Não é à toa que a maior parte de sua obra está em prédios públicos, sempre disponível aos olhos dos espectadores”.
Por NELSON GOBBI, na revista Época