Cidades contratam advogados para receber R$ 90 bi, e honorários abrem
guerra judicial
Professora
dá aula em escola pública de educação básica: recursos do Fundeb devem ser
ressarcidos a 3,8 mil cidades, que contrataram advogados para acelerar
liberação dos recursos; honorários podem chegar a R$ 18 bi
Bancas de advocacia espalhadas pelo país, grandes e pequenas, tentam receber uma fatia bilionária de recursos destinados à educação básica, uma ofensiva que ganhou a oposição da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Um parecer dela de 25 de maio, obtido pelo GLOBO, aponta a iniciativa como 'gravíssima situação' e defende que o Ministério Público Federal (MPF) empreenda ações para barrar contratações desses escritórios de advocacia por prefeituras país afora para agilizar a liberação dos recursos federais.
As bancas vêm sendo contratadas por municípios que têm direito a receber da União uma complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Ao todo, 3,8 mil cidades, em 19 estados, podem receber quase R$ 90 bilhões, dinheiro que corresponde a uma diferença de ressarcimentos do governo federal ao Fundef, o antecessor do Fundeb.
O MPF ingressou com uma ação civil pública na Justiça Federal em São Paulo em 1999, apontando uma retenção ilegal de recursos pela União. Em 2015, a ação chegou ao fim, sem possibilidades de recursos, com ganho de causa dos municípios.
É nesse contexto que começou a ofensiva de escritórios de advocacia para representar as prefeituras e assegurar os repasses do Fundeb - convertidos em precatórios (requisição de pagamento para cobrar órgãos públicos após condenação) - a que passaram a ter direito. Os honorários cobrados seguem um padrão: 20% do total do dinheiro a ser depositado. Assim, as bancas tentam receber um montante que pode chegar a R$ 18 bilhões.
A ofensiva dos escritórios levou a uma contraofensiva dos órgãos de controle, como o MPF, que vêm sedimentando o entendimento de que o dinheiro do Fundeb deve ter uma destinação exclusiva à educação básica.
Primeiro, em agosto de 2017, o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que é inconstitucional destinar o dinheiro dos precatórios para pagamentos de honorários. Depois, no mês seguinte, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os recursos da complementação da União, no caso de quatro estados, devem estar vinculados a 'ações de desenvolvimento e manutenção do ensino'. Em 7 de junho, uma decisão monocrática do ministro Edson Fachin, a respeito de um quinto estado, foi na mesma direção.
TRÊS ESCRITÃ'RIOS, 400 CIDADES
Há ainda recomendações do MPF em cinco estados - Paraíba, Pernambuco, Bahia, Sergipe e Rondônia - contra a destinação do dinheiro a honorários advocatícios. Municípios nesses estados chegaram a efetivar a contratação de escritórios. O MPF também expediu orientações com aplicação geral, a partir de iniciativas de colegiados que funcionam no âmbito da Procuradoria-Geral da República (PGR). Existem ainda posições contrárias da Advocacia Geral da União (AGU), do Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União (CGU), de MPs e tribunais de contas locais.
Em maio, a procuradora-geral da República manifestou num parecer a mesma posição. 'O MPF defende que, assim como as verbas do Fundef tinham aplicação vinculada a ações de educação, os valores agora repassados aos municípios em razão de sentença judicial devem ser igualmente utilizados exclusivamente para essa finalidade, sem a possibilidade de ser gasta parte da verba para pagamento de honorário advocatício', escreveu Dodge no parecer.
Nesse cenário, bancas de advocacia passaram a atuar em diferentes frentes para ver assegurada a prestação de serviços aos municípios. O GLOBO identificou que apenas três escritórios têm mais de 400 prefeituras em suas carteiras, a maioria na região Nordeste. Um único escritório, se conseguir garantir a continuidade dos contratos, pode receber mais de R$ 1 bilhão.
Uma iniciativa apontada como estratégica para a continuidade dos serviços advocatícios é um processo no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), movido pela Associação Paraibana da Advocacia Municipalista (Apam). A iniciativa visa a impedir que o MP expeça recomendações para que as prefeituras não contratem escritórios de advocacia sem licitação. O parecer de Dodge é dentro desse processo. O CNMP é presidido pela procuradora-geral da República. O conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, que ocupa o cargo por indicação do Senado, mais especificamente de Renan Calheiros (MDBAL), deu liminar favorável aos advogados.
Em sessão no último dia 26, a maioria do CNMP derrubou a liminar em plenário. Ficaram vencidos Bandeira de Mello, relator do processo; o conselheiro Gustavo Rocha, indicado pela Câmara e integrante do primeiro escalão do governo de Michel Temer; e o conselheiro Leonardo Accioly da Silva, indicado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Não houve exame do mérito, que será analisado em agosto, depois do recesso do Judiciário.
A posição de Dodge, contrária à destinação de fatia dos recursos da educação aos escritórios, está expressa no voto que ela levará a plenário em agosto. Ela decidiu 'expor a gravíssima situação que consubstanciou um dos motivos determinantes para a atuação do MP da Paraíba no sentido de evitar as contratações ocorridas ao arrepio da legislação pertinente'.
Responsável por ingressar com a ação no CNMP, o presidente da Associação Paraibana da Advocacia Municipalista, Marco Aurélio Villar, nega que o objetivo seja garantir a destinação de dinheiro do Fundeb para honorários.
- A discussão posta no conselho não teve início com o Fundeb, mas com recomendações do MP para que houvesse rescisão de contratos com escritórios. Não discutimos pagamento, só contratação. Se isso for discutido em plenário, vou suscitar questão de ordem e dizer que o pleito da Apam não diz respeito a isso.
O advogado critica a iniciativa de escritórios na busca por honorários dos caso do Fundeb:
- Eles pegaram o processo em fase final só para receber (honorários). Isso deve ser avaliado pelo Judiciário. Os municípios podem resolver essa questão do recebimento dos precatórios sozinhos.
'BRIGA LONGE DE ACABAR'
O processo no TCU que tratou da questão analisou a situação de municípios no Maranhão que contrataram escritórios para receber o dinheiro. Um único escritório, o João Azêdo e Brasileiro Sociedade de Advogados, sediado em Teresina, foi contratado por 105 municípios, como consta de relatório do tribunal. Outras cinco prefeituras contrataram mais dois escritórios. O montante envolvido é de R$ 7 bilhões. 'Desse valor, R$ 1,4 bilhão seria então destinado ao pagamento dos honorários dos três escritórios contratados', escreveram os auditores.
A iniciativa acabou barrada pelo TCU. Ao GLOBO, um dos sócios do escritório, João Ulisses Azêdo, afirma que apenas 20 dos 105 municípios chegaram a efetivar a contratação:
- A decisão de 2015 é consequência, na verdade, de 15 anos de trabalho. Posso certificar que esses R$ 90 bilhões não existem. E que esses R$ 7 bilhões do Maranhão são um número para impressionar o Judiciário. A AGU vem embargando as execuções de pagamentos, e essa briga está longe de acabar.
Bancas de advocacia espalhadas pelo país, grandes e pequenas, tentam receber uma fatia bilionária de recursos destinados à educação básica, uma ofensiva que ganhou a oposição da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Um parecer dela de 25 de maio, obtido pelo GLOBO, aponta a iniciativa como 'gravíssima situação' e defende que o Ministério Público Federal (MPF) empreenda ações para barrar contratações desses escritórios de advocacia por prefeituras país afora para agilizar a liberação dos recursos federais.
As bancas vêm sendo contratadas por municípios que têm direito a receber da União uma complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Ao todo, 3,8 mil cidades, em 19 estados, podem receber quase R$ 90 bilhões, dinheiro que corresponde a uma diferença de ressarcimentos do governo federal ao Fundef, o antecessor do Fundeb.
O MPF ingressou com uma ação civil pública na Justiça Federal em São Paulo em 1999, apontando uma retenção ilegal de recursos pela União. Em 2015, a ação chegou ao fim, sem possibilidades de recursos, com ganho de causa dos municípios.
É nesse contexto que começou a ofensiva de escritórios de advocacia para representar as prefeituras e assegurar os repasses do Fundeb - convertidos em precatórios (requisição de pagamento para cobrar órgãos públicos após condenação) - a que passaram a ter direito. Os honorários cobrados seguem um padrão: 20% do total do dinheiro a ser depositado. Assim, as bancas tentam receber um montante que pode chegar a R$ 18 bilhões.
A ofensiva dos escritórios levou a uma contraofensiva dos órgãos de controle, como o MPF, que vêm sedimentando o entendimento de que o dinheiro do Fundeb deve ter uma destinação exclusiva à educação básica.
Primeiro, em agosto de 2017, o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que é inconstitucional destinar o dinheiro dos precatórios para pagamentos de honorários. Depois, no mês seguinte, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os recursos da complementação da União, no caso de quatro estados, devem estar vinculados a 'ações de desenvolvimento e manutenção do ensino'. Em 7 de junho, uma decisão monocrática do ministro Edson Fachin, a respeito de um quinto estado, foi na mesma direção.
TRÊS ESCRITÃ'RIOS, 400 CIDADES
Há ainda recomendações do MPF em cinco estados - Paraíba, Pernambuco, Bahia, Sergipe e Rondônia - contra a destinação do dinheiro a honorários advocatícios. Municípios nesses estados chegaram a efetivar a contratação de escritórios. O MPF também expediu orientações com aplicação geral, a partir de iniciativas de colegiados que funcionam no âmbito da Procuradoria-Geral da República (PGR). Existem ainda posições contrárias da Advocacia Geral da União (AGU), do Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União (CGU), de MPs e tribunais de contas locais.
Em maio, a procuradora-geral da República manifestou num parecer a mesma posição. 'O MPF defende que, assim como as verbas do Fundef tinham aplicação vinculada a ações de educação, os valores agora repassados aos municípios em razão de sentença judicial devem ser igualmente utilizados exclusivamente para essa finalidade, sem a possibilidade de ser gasta parte da verba para pagamento de honorário advocatício', escreveu Dodge no parecer.
Nesse cenário, bancas de advocacia passaram a atuar em diferentes frentes para ver assegurada a prestação de serviços aos municípios. O GLOBO identificou que apenas três escritórios têm mais de 400 prefeituras em suas carteiras, a maioria na região Nordeste. Um único escritório, se conseguir garantir a continuidade dos contratos, pode receber mais de R$ 1 bilhão.
Uma iniciativa apontada como estratégica para a continuidade dos serviços advocatícios é um processo no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), movido pela Associação Paraibana da Advocacia Municipalista (Apam). A iniciativa visa a impedir que o MP expeça recomendações para que as prefeituras não contratem escritórios de advocacia sem licitação. O parecer de Dodge é dentro desse processo. O CNMP é presidido pela procuradora-geral da República. O conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, que ocupa o cargo por indicação do Senado, mais especificamente de Renan Calheiros (MDBAL), deu liminar favorável aos advogados.
Em sessão no último dia 26, a maioria do CNMP derrubou a liminar em plenário. Ficaram vencidos Bandeira de Mello, relator do processo; o conselheiro Gustavo Rocha, indicado pela Câmara e integrante do primeiro escalão do governo de Michel Temer; e o conselheiro Leonardo Accioly da Silva, indicado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Não houve exame do mérito, que será analisado em agosto, depois do recesso do Judiciário.
A posição de Dodge, contrária à destinação de fatia dos recursos da educação aos escritórios, está expressa no voto que ela levará a plenário em agosto. Ela decidiu 'expor a gravíssima situação que consubstanciou um dos motivos determinantes para a atuação do MP da Paraíba no sentido de evitar as contratações ocorridas ao arrepio da legislação pertinente'.
Responsável por ingressar com a ação no CNMP, o presidente da Associação Paraibana da Advocacia Municipalista, Marco Aurélio Villar, nega que o objetivo seja garantir a destinação de dinheiro do Fundeb para honorários.
- A discussão posta no conselho não teve início com o Fundeb, mas com recomendações do MP para que houvesse rescisão de contratos com escritórios. Não discutimos pagamento, só contratação. Se isso for discutido em plenário, vou suscitar questão de ordem e dizer que o pleito da Apam não diz respeito a isso.
O advogado critica a iniciativa de escritórios na busca por honorários dos caso do Fundeb:
- Eles pegaram o processo em fase final só para receber (honorários). Isso deve ser avaliado pelo Judiciário. Os municípios podem resolver essa questão do recebimento dos precatórios sozinhos.
'BRIGA LONGE DE ACABAR'
O processo no TCU que tratou da questão analisou a situação de municípios no Maranhão que contrataram escritórios para receber o dinheiro. Um único escritório, o João Azêdo e Brasileiro Sociedade de Advogados, sediado em Teresina, foi contratado por 105 municípios, como consta de relatório do tribunal. Outras cinco prefeituras contrataram mais dois escritórios. O montante envolvido é de R$ 7 bilhões. 'Desse valor, R$ 1,4 bilhão seria então destinado ao pagamento dos honorários dos três escritórios contratados', escreveram os auditores.
A iniciativa acabou barrada pelo TCU. Ao GLOBO, um dos sócios do escritório, João Ulisses Azêdo, afirma que apenas 20 dos 105 municípios chegaram a efetivar a contratação:
- A decisão de 2015 é consequência, na verdade, de 15 anos de trabalho. Posso certificar que esses R$ 90 bilhões não existem. E que esses R$ 7 bilhões do Maranhão são um número para impressionar o Judiciário. A AGU vem embargando as execuções de pagamentos, e essa briga está longe de acabar.
Por VINICIUS SASSINE, em O Globo