Produções
semiprofissionais movimentam a Rocinha, com filmes em que a semelhança de fatos
com a realidade não é mera coincidência
O ronco de motores e o som de
buzinas em frente ao Túnel Zuzu Angel, no bairro de São Conrado, na Zona Sul do
Rio de Janeiro, abafam a voz do diretor enquanto ele conversa com parte do
elenco. Quem está naquela sala já é acostumado aos sons da vizinhança, inclusive
o mais assustador: rajadas de tiros. Em uma pequena casa de paredes coloridas,
quase colada ao túnel e aos pés da Rocinha, a sede da companhia de teatro Bando
Cultural Favelados é onde começa a nascer a série independente Facções, que
narra uma guerra pelo poder no morro. É ficção, mas também realidade.
Produzido de forma amadora e disponível em um canal do YouTube chamado “Favela Flix”, o primeiro de cinco episódios está on-line desde janeiro, com número ainda baixo de visualizações (4 mil), mas nada desprezível para pessoas que nunca trabalharam com audiovisual, a começar pelo diretor do projeto, Richard Castelo Branco, que sempre atuou como diretor de teatro. Caso também do montador do filme, Thiago Lemos, que nem sequer conhecia programas de edição como Final Cut e Premiere antes de entrar na equipe técnica. Sentados no chão da casa, estão ansiosos para o recomeço da gravação, marcada para a semana seguinte.
Era uma sexta-feira de abril na sede do grupo de teatro, improvisada no casebre que serviu como unidade-modelo do programa habitacional Minha Casa Minha Vida. Abandonado, o local era uma mistura de motel com dormitório de mendigos até ser ocupado pelos artistas. Branco passou a viver no “quarto e sala”. Foi lá que começou a pensar na série: mesmo sem dinheiro — ele usa um cabo de vassoura, por exemplo, para segurar o microfone boom —, decidiu criar Facções. Em agosto do ano passado, após três finais de semana de gravação, o primeiro episódio saiu. Pouco depois, em 17 de setembro, a Rocinha se trancou em casa durante todo o domingo: foi o dia em que pelo menos 60 traficantes da facção Amigos dos Amigos invadiram a favela no início da manhã para expulsar o bando do traficante Rogério 157, da mesma organização. Cercado, 157 fugiu pela mata, pediu abrigo ao Comando Vermelho e trocou de camisa. Agora, lê-se nos becos da favela uma inscrição que se repete: “CV 157”.
“Vamos fazer primeiro a cena da invasão, naquele mesmo esquema”, entusiasmou-se Branco. Em seguida, explicou o “esquema”: “Não temos roteiro, só uma ideia geral das cenas. Nossa base é a improvisação”. Naquele dia, ele não sabia que o recomeço das filmagens teria de esperar mais tempo. Quando chegou o dia marcado, o ar pesava na Rocinha: grupos de moradores no WhatsApp divulgavam a informação de que policiais do Batalhão de Choque invadiriam o morro à tarde. Soaram fogos de artifício nos becos da Roupa Suja, uma das localidades mais pobres da favela, na parte baixa, indicando a movimentação de policiais, mas naquele caso era apenas uma ação de rotina da UPP e não houve tiros. Mesmo assim, o dia foi perdido.
“Gravamos o primeiro episódio antes da guerra. É como se tivessem plagiado nosso trabalho”, comentou Branco, um homem agitado e falante que tentou envolver no projeto o máximo de moradores da favela (“por isso eu não queria ninguém decorando roteiro. Eles já estavam prontos”). O elenco tem gente como a diarista Rosilene Costa da Silva, de 49 anos, moradora da Rocinha que nunca sonhou em ser atriz até se separar do marido. Ela interpreta uma senhora que vê um traficante morto e corre, aos prantos, para dar a notícia à mãe do rapaz. Participou de apenas uma cena no primeiro episódio, que dura menos de meio minuto. Chegou ao “set” logo depois do almoço, mas sua curta aparição só foi filmada às 4 horas da manhã.
“Fiquei esperando 14 horas. Tentei me lembrar de todas as mães que eu conheço na Rocinha que já perderam um filho, toda a dor que eu já vi nesta comunidade”, contou. Ao usar a memória afetiva, intuitivamente empregou um conceito familiar a atores profissionais que seguem o método mais consagrado de construção de personagem, criado pelo russo Constantin Stanislavski.
Para ter livre acesso à Rocinha e gravar em locais como Roupa Suja, Vila Verde e Rua 2, onde as marcas dos confrontos estão nas paredes de lojas fechadas e de casas abandonadas pelos antigos moradores, a equipe do Favela Flix precisou de autorização dos líderes do tráfico. A única restrição: não filmar em certos becos, cruciais para os negócios.
A maioria das cenas, principalmente as mais dramáticas — como o momento em que, no primeiro episódio, o morro é invadido por uma facção rival e uma criança morre baleada —, foram gravadas à noite. Segundo o diretor, a madrugada é muito ativa na Rocinha, é quando as coisas acontecem.
“A Rocinha é um cenário a céu aberto. E aqui tem uma luz quente, das lâmpadas incandescentes, que é cinematográfica”, disse um dos atores do filme.
O diretor contou que três corpos foram encontrados na mata perto da sede do grupo teatral há dois meses. Quem estava presente viu os corpos ser retirados: todos eram jovens e negros.
“Favelas são as grandes senzalas do presente. Temos jovens aqui que roubavam, cheiravam e hoje têm registro profissional de ator”, afirmou Branco, diante dos colegas de produção. “Por isso a companhia se chama ‘bando’: somos uma resistência.”
“Vai levar 200 gramas de presunto por R$ 4. Quem levar três pacotes paga R$ 10”, anunciava o vendedor com estilo de rapper americano. Ele usa três colares de prata no pescoço, anéis em quase todos os dedos das mãos, boné branco e óculos escuros. “Olha esse macarrãozinho instantâneo, meu amor. Eu tenho mercadoria pra encher sua despensa por um ano”, prometia a uma freguesa de idade. A um homem que pedia um iogurte, indagou: “Vai levar só um para aquele povo todo, paizão?”. Ninguém na Rocinha conhece Ailton Domiciano Ferreira Junior pelo nome. Lá, ele é o MC Feio, ou apenas Feio, como a maioria o chama. Funkeiro em busca de sucesso — e de um empresário —, professor de muay thai, o pai de cinco filhos ganha a vida como camelô na Rocinha. Foi criado por sua mãe com mais seis irmãos — o pai, um farmacêutico viciado em drogas injetáveis, morreu com HIV. Teve uma infância pobre, dividida entre os becos de uma favela em Campo Grande, onde nasceu, da Vila Kennedy, do Vidigal e da Cruzada São Sebastião, onde cresceu, e da Rocinha, onde se encontrou.
“Quando eu era menor, fazia tanta besteira que um vizinho me falou que eu não passaria dos 15 anos. Estou com 35 e continuo aí. Tem gente que até pensa que tenho dinheiro”, disse Feio, enquanto caminhava pela Rua 4, depois de mais um dia vendendo frios e laticínios na entrada da Rocinha.
Quando ele passa, muitos o abordam, interessados em participar das produções de audiovisual em andamento na Rocinha. Além da série Facções, o longa-metragem ARep também está sendo filmado na favela de 100 mil moradores — população superior à de 94% das cidades brasileiras. Escrito e dirigido por Sandro Luz, o filme narra a história de um policial militar lotado no 23o Batalhão, do Leblon, e que atua na Rocinha. A um mototaxista que o para na rua querendo “fazer uma participação”, Feio responde: “Pô, paizão, tem um papel disponível lá no filme. Precisamos de um magrinho como você para sofrer um estupro coletivo, é uma cena com outros 40 homens”, provocou. O sujeito vai embora em cinco segundos. “Quando falo desse papel, todo mundo corre.”
Tanto na série quanto no filme, com promessa de lançamento no circuito comercial em dezembro, ele interpreta traficantes: em Facções, é o dono do morro; em ARep, é segurança pessoal do chefe do tráfico. Feio não se orgulha, mas também não tem vergonha de dizer que conhece bem essa vida. Em fevereiro, foi “fichado” pelos militares, assim como os outros moradores que tentavam sair da Vila Kennedy, onde o MC tem dois filhos. Era o começo da intervenção federal na segurança do Rio. Enquanto os militares o fotografavam, tirou sarro do momento: apareceu nas fotos sorrindo e fazendo sinal de “paz e amor”, antes de ser liberado.
Naquela mesma Vila Kennedy, muito antes de sonhar com uma vida de artista, Feio era conhecido como Pit Bull. Saiu do tráfico, segundo ele, “por gostar de aparecer, de usar roupas coloridas”, por isso não suportava mais viver escondido, com medo da própria sombra. “Vivi um tempo envolvido, foi um tempo de necessidade. Meu primeiro serviço foi porque eu precisava de dinheiro para comprar gás. Um amigo criado comigo me disse que, se eu vendesse uma carga, ganharia R$ 100 no fim. Comprei o gás e não parei mais durante seis anos. Você conhece altas gatas, ganha respeito e é difícil sair, mas eu sabia que aquilo não era vida para mim. Graças a Deus não fiz inimigos, nunca dei tiro em polícia, nunca matei ninguém, por isso ando de cabeça erguida.”
Antes de virar camelô, trabalhou na oficina mecânica de um amigo, com reparo de lataria de automóveis. Enquanto fazia um serviço de martelinho de ouro, reconheceu o dono do automóvel: era um dos policiais que o perseguiam no passado. O homem também se lembrou e disse para ele continuar trabalhando, do contrário seria preso com tantos flagrantes (forjados) que não sairia antes de completar a pena máxima de 30 anos. “Tive carro, moto, bicicleta, hoje estou a pé e ando de ônibus, mas acho que não perdi nada. Eu me sinto vitorioso por estar vivo. ”
No código de comunicação da Polícia Militar, ARep significa “ação repressiva”. Quando Sandro Luz soube disso, ao conversar com uma policial, escolheu naquela hora o nome de seu terceiro filme. Seus dois longas anteriores, Favela da paixão e Traços da lei, de 2012 e 2013, foram produzidos com baixo orçamento e divulgados no YouTube. O primeiro teve 16 mil visualizações; o segundo, quase 1 milhão. Gravado no Complexo do Alemão, Traços conta a história da caçada de um policial civil aos assassinos de sua mulher e filha. O sucesso do filme projetou Sandro Luz a um novo patamar: ao contrário das produções anteriores, ARep conseguiu um investimento alto, cerca de R$ 1,5 milhão, entre patrocínios e leis de incentivo à cultura.
Ao gravar Traços, Sandro conheceu João Carvalho, o Carvalhão, antigo morador da Rocinha, onde trabalha como chaveiro. Foi ele quem abriu as portas da favela para o início das filmagens de ARep, em 2015. A história, roteirizada por Luz, tem inegável inspiração em Tropa de elite. O trailer não deixa dúvida, com o protagonista narrando, em voz over, os acontecimentos em primeira pessoa. A Polícia Militar deu amplo apoio logístico ao filme: cedeu uniformes, viaturas e fez até voos de helicóptero para o longa. A história do terceiro-sargento Roberto Bispo dos Santos, interpretado por Luz, vai para o cinema comercial, garante o diretor e ator, que diz estar fechando contrato com uma distribuidora.
“Quando vi Tropa de elite, tive um estalo: esse é o futuro do cinema brasileiro. Considero Traços minha galinha dos ovos de ouro, quero transformar essa história no nosso Missão impossível. Já tenho outros três roteiros prontos”, empolgou-se o diretor, que gastou R$ 15 mil na produção, filmada com uma Nikon D3100 comprada em prestações a perder de vista.
ARep tem 200 participantes no total. A maioria nunca fez teatro, cinema ou televisão antes. Muitos já foram traficantes. Um deles, segundo Luz, deixou o crime durante as filmagens, uma condição imposta pelo diretor para qualquer um que queira participar. São mais de 70 armas de airsoft, ou tiros de pressão, usadas no filme, réplicas quase perfeitas.
Por pouco Luz não abandonou o sonho de ser ator. Aos 8 anos, ele chegou a participar de um teste de elenco para fazer um menino escravo numa novela de época. Foi escondido de seu pai, um homem autoritário e violento. Sua mãe o acompanhou e acabou sendo escolhida para um papel. Em casa, após o jantar, contou ao marido que ela e o filho foram convidados a fazer uma novela e ganhariam por isso. Ele rasgou o contrato que deram para ela assinar e a espancou na frente do filho. Depois, disse ao menino que não queria mais aquele assunto dentro de casa: “Preto e pobre não aparecem na televisão”, encerrou a conversa.
Só aos 25 anos de idade, quando trabalhava como garçom do restaurante Gula Gula, Luz entrou em uma companhia de teatro. Depois fundou a sua própria, Prosélitos, hoje nome de sua produtora de cinema. Quem quiser assistir ao filme ARep terá de esperar, pois ele não vai para o YouTube. Daqui para a frente, segundo Luz, vai ser assim: seus filmes só estrearão na telona.
“Minha mãe só via na televisão uma vida que nunca foi a dela. A geração dela era assim, a minha paga para ver o que é real, o que faz sentido para nós. Tem muita gente produzindo conteúdo autoral hoje, mas sem muita qualidade. Quando começarmos a ter investimento, vamos invadir também o cinema.”
Produzido de forma amadora e disponível em um canal do YouTube chamado “Favela Flix”, o primeiro de cinco episódios está on-line desde janeiro, com número ainda baixo de visualizações (4 mil), mas nada desprezível para pessoas que nunca trabalharam com audiovisual, a começar pelo diretor do projeto, Richard Castelo Branco, que sempre atuou como diretor de teatro. Caso também do montador do filme, Thiago Lemos, que nem sequer conhecia programas de edição como Final Cut e Premiere antes de entrar na equipe técnica. Sentados no chão da casa, estão ansiosos para o recomeço da gravação, marcada para a semana seguinte.
Era uma sexta-feira de abril na sede do grupo de teatro, improvisada no casebre que serviu como unidade-modelo do programa habitacional Minha Casa Minha Vida. Abandonado, o local era uma mistura de motel com dormitório de mendigos até ser ocupado pelos artistas. Branco passou a viver no “quarto e sala”. Foi lá que começou a pensar na série: mesmo sem dinheiro — ele usa um cabo de vassoura, por exemplo, para segurar o microfone boom —, decidiu criar Facções. Em agosto do ano passado, após três finais de semana de gravação, o primeiro episódio saiu. Pouco depois, em 17 de setembro, a Rocinha se trancou em casa durante todo o domingo: foi o dia em que pelo menos 60 traficantes da facção Amigos dos Amigos invadiram a favela no início da manhã para expulsar o bando do traficante Rogério 157, da mesma organização. Cercado, 157 fugiu pela mata, pediu abrigo ao Comando Vermelho e trocou de camisa. Agora, lê-se nos becos da favela uma inscrição que se repete: “CV 157”.
“Vamos fazer primeiro a cena da invasão, naquele mesmo esquema”, entusiasmou-se Branco. Em seguida, explicou o “esquema”: “Não temos roteiro, só uma ideia geral das cenas. Nossa base é a improvisação”. Naquele dia, ele não sabia que o recomeço das filmagens teria de esperar mais tempo. Quando chegou o dia marcado, o ar pesava na Rocinha: grupos de moradores no WhatsApp divulgavam a informação de que policiais do Batalhão de Choque invadiriam o morro à tarde. Soaram fogos de artifício nos becos da Roupa Suja, uma das localidades mais pobres da favela, na parte baixa, indicando a movimentação de policiais, mas naquele caso era apenas uma ação de rotina da UPP e não houve tiros. Mesmo assim, o dia foi perdido.
“Gravamos o primeiro episódio antes da guerra. É como se tivessem plagiado nosso trabalho”, comentou Branco, um homem agitado e falante que tentou envolver no projeto o máximo de moradores da favela (“por isso eu não queria ninguém decorando roteiro. Eles já estavam prontos”). O elenco tem gente como a diarista Rosilene Costa da Silva, de 49 anos, moradora da Rocinha que nunca sonhou em ser atriz até se separar do marido. Ela interpreta uma senhora que vê um traficante morto e corre, aos prantos, para dar a notícia à mãe do rapaz. Participou de apenas uma cena no primeiro episódio, que dura menos de meio minuto. Chegou ao “set” logo depois do almoço, mas sua curta aparição só foi filmada às 4 horas da manhã.
“Fiquei esperando 14 horas. Tentei me lembrar de todas as mães que eu conheço na Rocinha que já perderam um filho, toda a dor que eu já vi nesta comunidade”, contou. Ao usar a memória afetiva, intuitivamente empregou um conceito familiar a atores profissionais que seguem o método mais consagrado de construção de personagem, criado pelo russo Constantin Stanislavski.
Para ter livre acesso à Rocinha e gravar em locais como Roupa Suja, Vila Verde e Rua 2, onde as marcas dos confrontos estão nas paredes de lojas fechadas e de casas abandonadas pelos antigos moradores, a equipe do Favela Flix precisou de autorização dos líderes do tráfico. A única restrição: não filmar em certos becos, cruciais para os negócios.
A maioria das cenas, principalmente as mais dramáticas — como o momento em que, no primeiro episódio, o morro é invadido por uma facção rival e uma criança morre baleada —, foram gravadas à noite. Segundo o diretor, a madrugada é muito ativa na Rocinha, é quando as coisas acontecem.
“A Rocinha é um cenário a céu aberto. E aqui tem uma luz quente, das lâmpadas incandescentes, que é cinematográfica”, disse um dos atores do filme.
O diretor contou que três corpos foram encontrados na mata perto da sede do grupo teatral há dois meses. Quem estava presente viu os corpos ser retirados: todos eram jovens e negros.
“Favelas são as grandes senzalas do presente. Temos jovens aqui que roubavam, cheiravam e hoje têm registro profissional de ator”, afirmou Branco, diante dos colegas de produção. “Por isso a companhia se chama ‘bando’: somos uma resistência.”
“Vai levar 200 gramas de presunto por R$ 4. Quem levar três pacotes paga R$ 10”, anunciava o vendedor com estilo de rapper americano. Ele usa três colares de prata no pescoço, anéis em quase todos os dedos das mãos, boné branco e óculos escuros. “Olha esse macarrãozinho instantâneo, meu amor. Eu tenho mercadoria pra encher sua despensa por um ano”, prometia a uma freguesa de idade. A um homem que pedia um iogurte, indagou: “Vai levar só um para aquele povo todo, paizão?”. Ninguém na Rocinha conhece Ailton Domiciano Ferreira Junior pelo nome. Lá, ele é o MC Feio, ou apenas Feio, como a maioria o chama. Funkeiro em busca de sucesso — e de um empresário —, professor de muay thai, o pai de cinco filhos ganha a vida como camelô na Rocinha. Foi criado por sua mãe com mais seis irmãos — o pai, um farmacêutico viciado em drogas injetáveis, morreu com HIV. Teve uma infância pobre, dividida entre os becos de uma favela em Campo Grande, onde nasceu, da Vila Kennedy, do Vidigal e da Cruzada São Sebastião, onde cresceu, e da Rocinha, onde se encontrou.
“Quando eu era menor, fazia tanta besteira que um vizinho me falou que eu não passaria dos 15 anos. Estou com 35 e continuo aí. Tem gente que até pensa que tenho dinheiro”, disse Feio, enquanto caminhava pela Rua 4, depois de mais um dia vendendo frios e laticínios na entrada da Rocinha.
Quando ele passa, muitos o abordam, interessados em participar das produções de audiovisual em andamento na Rocinha. Além da série Facções, o longa-metragem ARep também está sendo filmado na favela de 100 mil moradores — população superior à de 94% das cidades brasileiras. Escrito e dirigido por Sandro Luz, o filme narra a história de um policial militar lotado no 23o Batalhão, do Leblon, e que atua na Rocinha. A um mototaxista que o para na rua querendo “fazer uma participação”, Feio responde: “Pô, paizão, tem um papel disponível lá no filme. Precisamos de um magrinho como você para sofrer um estupro coletivo, é uma cena com outros 40 homens”, provocou. O sujeito vai embora em cinco segundos. “Quando falo desse papel, todo mundo corre.”
Tanto na série quanto no filme, com promessa de lançamento no circuito comercial em dezembro, ele interpreta traficantes: em Facções, é o dono do morro; em ARep, é segurança pessoal do chefe do tráfico. Feio não se orgulha, mas também não tem vergonha de dizer que conhece bem essa vida. Em fevereiro, foi “fichado” pelos militares, assim como os outros moradores que tentavam sair da Vila Kennedy, onde o MC tem dois filhos. Era o começo da intervenção federal na segurança do Rio. Enquanto os militares o fotografavam, tirou sarro do momento: apareceu nas fotos sorrindo e fazendo sinal de “paz e amor”, antes de ser liberado.
Naquela mesma Vila Kennedy, muito antes de sonhar com uma vida de artista, Feio era conhecido como Pit Bull. Saiu do tráfico, segundo ele, “por gostar de aparecer, de usar roupas coloridas”, por isso não suportava mais viver escondido, com medo da própria sombra. “Vivi um tempo envolvido, foi um tempo de necessidade. Meu primeiro serviço foi porque eu precisava de dinheiro para comprar gás. Um amigo criado comigo me disse que, se eu vendesse uma carga, ganharia R$ 100 no fim. Comprei o gás e não parei mais durante seis anos. Você conhece altas gatas, ganha respeito e é difícil sair, mas eu sabia que aquilo não era vida para mim. Graças a Deus não fiz inimigos, nunca dei tiro em polícia, nunca matei ninguém, por isso ando de cabeça erguida.”
Antes de virar camelô, trabalhou na oficina mecânica de um amigo, com reparo de lataria de automóveis. Enquanto fazia um serviço de martelinho de ouro, reconheceu o dono do automóvel: era um dos policiais que o perseguiam no passado. O homem também se lembrou e disse para ele continuar trabalhando, do contrário seria preso com tantos flagrantes (forjados) que não sairia antes de completar a pena máxima de 30 anos. “Tive carro, moto, bicicleta, hoje estou a pé e ando de ônibus, mas acho que não perdi nada. Eu me sinto vitorioso por estar vivo. ”
No código de comunicação da Polícia Militar, ARep significa “ação repressiva”. Quando Sandro Luz soube disso, ao conversar com uma policial, escolheu naquela hora o nome de seu terceiro filme. Seus dois longas anteriores, Favela da paixão e Traços da lei, de 2012 e 2013, foram produzidos com baixo orçamento e divulgados no YouTube. O primeiro teve 16 mil visualizações; o segundo, quase 1 milhão. Gravado no Complexo do Alemão, Traços conta a história da caçada de um policial civil aos assassinos de sua mulher e filha. O sucesso do filme projetou Sandro Luz a um novo patamar: ao contrário das produções anteriores, ARep conseguiu um investimento alto, cerca de R$ 1,5 milhão, entre patrocínios e leis de incentivo à cultura.
Ao gravar Traços, Sandro conheceu João Carvalho, o Carvalhão, antigo morador da Rocinha, onde trabalha como chaveiro. Foi ele quem abriu as portas da favela para o início das filmagens de ARep, em 2015. A história, roteirizada por Luz, tem inegável inspiração em Tropa de elite. O trailer não deixa dúvida, com o protagonista narrando, em voz over, os acontecimentos em primeira pessoa. A Polícia Militar deu amplo apoio logístico ao filme: cedeu uniformes, viaturas e fez até voos de helicóptero para o longa. A história do terceiro-sargento Roberto Bispo dos Santos, interpretado por Luz, vai para o cinema comercial, garante o diretor e ator, que diz estar fechando contrato com uma distribuidora.
“Quando vi Tropa de elite, tive um estalo: esse é o futuro do cinema brasileiro. Considero Traços minha galinha dos ovos de ouro, quero transformar essa história no nosso Missão impossível. Já tenho outros três roteiros prontos”, empolgou-se o diretor, que gastou R$ 15 mil na produção, filmada com uma Nikon D3100 comprada em prestações a perder de vista.
ARep tem 200 participantes no total. A maioria nunca fez teatro, cinema ou televisão antes. Muitos já foram traficantes. Um deles, segundo Luz, deixou o crime durante as filmagens, uma condição imposta pelo diretor para qualquer um que queira participar. São mais de 70 armas de airsoft, ou tiros de pressão, usadas no filme, réplicas quase perfeitas.
Por pouco Luz não abandonou o sonho de ser ator. Aos 8 anos, ele chegou a participar de um teste de elenco para fazer um menino escravo numa novela de época. Foi escondido de seu pai, um homem autoritário e violento. Sua mãe o acompanhou e acabou sendo escolhida para um papel. Em casa, após o jantar, contou ao marido que ela e o filho foram convidados a fazer uma novela e ganhariam por isso. Ele rasgou o contrato que deram para ela assinar e a espancou na frente do filho. Depois, disse ao menino que não queria mais aquele assunto dentro de casa: “Preto e pobre não aparecem na televisão”, encerrou a conversa.
Só aos 25 anos de idade, quando trabalhava como garçom do restaurante Gula Gula, Luz entrou em uma companhia de teatro. Depois fundou a sua própria, Prosélitos, hoje nome de sua produtora de cinema. Quem quiser assistir ao filme ARep terá de esperar, pois ele não vai para o YouTube. Daqui para a frente, segundo Luz, vai ser assim: seus filmes só estrearão na telona.
“Minha mãe só via na televisão uma vida que nunca foi a dela. A geração dela era assim, a minha paga para ver o que é real, o que faz sentido para nós. Tem muita gente produzindo conteúdo autoral hoje, mas sem muita qualidade. Quando começarmos a ter investimento, vamos invadir também o cinema.”
Por
Caio Barreto Briso, na Revista Época