"Bombardeiros de uvas-passas" voavam tão baixo que pilotos e berlinenses trocavam acenos |
Há 70 anos, a URSS
decretou o cerco de Berlim, privando-a de alimento e energia. A saída dos
Aliados foi abastecer a cidade pelo ar, na operação "Luftbrücke". Era
o início de uma grande amizade.
Desde que tomou posse, o presidente americano, Donald Trump, tem
submetido as relações Estados Unidos-Alemanha a um teste de estresse, países
entre os quais no momento parece existirem mais diferenças do que pontos em
comum. No entanto, os laços econômicos, culturais e históricos de ambos são
considerados bastante estreitos para sobreviver até a esta presidência em
Washington. A profundidade da amizade teuto-americana se fundamenta em especial
sobre um acontecimento de 70 anos atrás.
Era primavera de 1948, a Segunda Guerra Mundial acabara há três
anos. O sonho de Adolf Hitler de um reino nazista milenar e sua ideologia
racista custara milhões de vidas humanas. A Alemanha jazia em ruínas, e agora
os sobreviventes tinham esperança de tempos melhores.
Entretanto a sombra da Guerra Fria ainda pesava sobre a
reconstrução. Os Aliados ocidentais e a União Soviética (URSS) se observavam
mutuamente, com desconfiança. As tensões eram especialmente sensíveis na Berlim
dividida. O oeste da metrópole era administrado pelas potências vencedoras
Estados Unidos, Reino Unido e França, e o leste, pela URSS.
No três setores das potências ocidentais em Berlim, viviam cerca
de 2 milhões de pessoas, como numa ilha em meio ao império soviético.
Tanto a Alemanha Oriental, que circundava a cidade, como o Leste Europeu
estavam firmes na mão de Moscou. Berlim Ocidental só era abastecida por uma
linha ferroviária, uma autoestrada e algumas vias fluviais, atravessando o
território da zona comunista.
Em 20 de junho de 1948, se iniciou uma prova de força entre
Leste e Oeste, quando os Aliados decidiram criar uma união monetária,
introduzindo o D-Mark, o marco alemão.
Soviéticos contra o marco alemão
A intenção era estabilizar economicamente a Alemanha através de
uma moeda forte. Mas a União Soviética se recusou a aceitar a introdução do
marco também em Berlim Ocidental, temendo que ela consolidasse o status
especial daquela parte da cidade em meio ao território soviético, como um
flanco aberto para os Aliados. O conflito latente se transforma em briga
declarada.
"Assim ocorreu um racha entre as três potências ocupadoras
ocidentais e o lado soviético", conta Bernd von Kostka, do Museu do
Aliados, na capital alemã. "Uma política conjunta para a Alemanha se
tornou impossível com a união monetária."
Na madrugada de 24 de junho, os soviéticos barraram todos os
acessos à parte oeste. Como 75% da eletricidade vinha das regiões circundantes,
logo as luzes se apagaram. O Bloco Comunista planejava desmoralizar os
habitantes, a fim de expulsar os Aliados da metrópole dividida.
"Ninguém sabia o que estava acontecendo, nem os americanos,
nem nós", lembra o berlinense Gerhard Bürger, cujas recordações, assim
como de outras testemunhas da época, estão disponíveis no website do projeto
Memória da Nação, da Fundação Haus der Geschichte (Casa da História).
"O medo de que os americanos nos abandonassem, de que nós,
por assim dizer, fôssemos cair nas mãos dos russos, era enorme", relata.
Aliados defendem bastião contra comunismo
Os Aliados resolveram defender seus postos, ainda que se
tratasse da antiga capital do inimigo recém derrotado, que levara morte e
devastação a tantas partes do mundo. Os EUA viam Berlim Ocidental como posto
avançado da liberdade, um bastião contra o comunismo a ser defendido.
Como os Aliados não haviam fechado nenhum contrato com a
URSS sobre a utilização das vias de acesso, não dispunham de nenhum
recurso jurídico contra o bloqueio. Uma opção militar não entrava seriamente em
cogitação, devido ao alto risco envolvido.
Por outro lado, americanos, ingleses e franceses dispunham de
três corredores aéreos garantidos. O tempo urgia, com os berlinenses ocidentais
sob ameaça de morrer de fome.
"Logo começou a ser mais racionado ainda, além do
racionamento normal. Era uma ingerência na vida que não podia ter um efeito
mais dramático", recorda o cidadão Eberhard Schönknecht.
De comum acordo com seus aliados, o então presidente dos EUA,
Harry S. Truman, decidiu realizar uma espetacular operação de salvamento:
abastecer inteiramente por via aérea uma cidade daquelas proporções, com
2 milhões de habitantes, em meio à reconstrução sobre as ruínas de uma
guerra mundial.
Plano mirabolante
O plano de estabelecer uma tão monumental Luftbrücke (ponte
aérea) provisória foi apoiado "com ressalvas", relata Von Kostka. Mas
não havia alternativa.
Em 26 de junho, os primeiros aviões da Força Aérea americana
partiram de Frankfurt e Wiesbaden para Berlim. Os franceses, que acabavam de
sofrer sob a ocupação alemã, precisaram de mais tempo para se decidir a favor
da assistência aérea.
Contudo, em breve os aviões de transporte estavam voando
ininterruptamente. A intervalos de 90 segundos, aterrissavam no aeroporto
Tempelhof, no setor americano; Gatow, no britânico; e, a partir de dezembro de
1948, no aeroporto Tegel, recém ampliado pelos franceses.
A parte sitiada de Berlim precisava diariamente, em média, de
pelo menos 5 mil a 6 mil toneladas de gêneros alimentícios e carvão.
A maior operação transcorreu entre 15 e 16 de abril de 1949, quando, no espaço
de 24 horas, 1.400 aviões entregaram quase 13 mil toneladas de carga.
Os pilotos da ponte aérea estavam mobilizados constantemente,
muitas vezes esgotados, arriscando a vida para aterrissar na cidade sitiada,
independentemente das condições meteorológicas. Algumas máquinas sofreram
acidentes. As movidas a hélices, apelidadas pelos berlinenses de Rosinenbomber (bombardeiros
de uvas-passas), sobrevoavam a cidade tão baixo ao aterrissar, que tripulação e
cidadãos podiam trocar acenos.
Com paraquedas improvisados, os pilotos jogavam chocolates e
chicletes para as crianças. "Na época, o sentimento em relação à Luftbrücke entre
nós, jovens, era fantástico", recorda o berlinense Günter
Schliepdiek. "A simpatia pelos americanos no nosso meio era, sem dúvida,
muito, muito grande."
Berlinenses determinados
Não apenas a façanha logística dos Aliados foi decisiva, mas
também a força de vontade dos sitiados. Na página multimídia do projeto Memória
da Nação, o historiador suíço Walther Hofer descreve a situação no inverno,
quando cada casa só tinha uma hora de eletricidade a cada 24 horas, pois era
preciso trazer pelos ares o carvão para as usinas elétricas.
"O horário mudava de semana para semana, de forma que,
dependendo do caso, só dava para cozinhar a única refeição quente do dia à 1h
da manhã." Não se podia sequer falar de calefação. "Foram privações
inacreditáveis que a população teve que aguentar", avalia Hofer, docente da
Universidade Livre de Berlim nos anos 50.
Em 9 de setembro, num discurso histórico, o prefeito de Berlim
Ocidental, Ernst Reuter, apelou às potências ocidentais para que não deixassem
a cidade à sua sorte.
"Povos do mundo, povos da América, da Inglaterra, da
França: olhem para esta cidade e reconheçam que vocês não devem, não podem
entregar esta cidade e este povo", apelava o social-democrata ao
microfone, diante das ruínas do parlamento, o Reichstag.
Modelo para assistência de crise, hoje
A cada dia em que mantinham a ponte aérea, os Aliados ocidentais
conquistavam mais simpatia da opinião pública internacional, enquanto caía a
reputação dos soviéticos. Por fim, o ditado Josef Stalin reconheceu não ter
como vencer aquele pôquer de poder.
Em 12 de maio de 1949, o bloqueio foi suspenso, após negociações
secretas com Washington. Até então, as Forças Aliadas haviam levado mais de
2,1 milhões de gêneros de primeira necessidade à cidade, em cerca de
260 mil voos, numa verdadeira proeza de logística. Não só para os
berlinenses, mas para todos os alemães ocidentais, a ponte aérea tinha um
enorme significado simbólico e psicológico.
Os alemães se sentiram novamente parte da comunidade de valores
do Ocidente, explica Von Kostka. "Os alemães não mais viam os Aliados, em
primeira linha, como forças ocupadoras, mas antes como foças protetoras."
Da Luftbrücke à
amizade transatlântica com os EUA bastou um pequeno passo. Von Kostka espera
que essa conexão não sofra danos duradouros sob a política externa de Trump.
Ele considera a ponte aérea de Berlim também um modelo de como prestar
assistência nas atuais regiões de crise e de conflito, por exemplo na Síria.
"Pode-se ver como o abastecimento pelo ar é perfeitamente
possível. E com a capacidade de transporte dos aviões de carga atuais, se
poderia levar a mesma quantidade que a Luftbrücke
a qualquer cidade do mundo, com uma fração do número de voos", diz.
Deutsche Welle