A maneira como você se desfaz de eletrodomésticos e aparelhos de ar-condicionado antigos pode ter um grande impacto no aquecimento global — Foto: Javier Hirschfeld/Getty Images via BBC |
Quer você seja um fazendeiro no Quênia transportando leite para o mercado local, um proprietário de mercearia em Londres ou um paciente sendo submetido a quimioterapia no Japão, todos nós dependemos de dispositivos que mantenham frescos os produtos que consumimos.
Sem geladeira, nossa comida estragaria rapidamente, o leite azedaria fácil
e as intoxicações alimentares provavelmente disparariam.
Nos próximos meses, é provável que a refrigeração também desempenhe um
papel vital na atual pandemia de Covid-19. À medida que as vacinas começam a
estar disponíveis, elas vão precisar de enormes cadeias de suprimento de
armazenamento refrigerado para serem fabricadas, distribuídas e armazenadas até
serem aplicadas.
Muitos outros medicamentos que salvam vidas — de insulina a antibióticos —
também precisam ser armazenados na chamada "cadeia de frio" para
evitar que se deteriorem e se tornem inúteis.
Em escolas, escritórios, lojas e residências em muitas partes do mundo, os
fluidos refrigerantes também desempenham um papel importante nos sistemas de
ar-condicionado que mantêm esses edifícios em uma temperatura confortável.
A indústria de refrigeração é importante, mas também extremamente poluente
— sendo responsável por cerca de 10% das emissões globais de CO₂. Isso é três vezes a
quantidade produzida pela aviação e navegação juntas. E como as temperaturas ao
redor do mundo não param de subir devido às mudanças climáticas, a demanda pela
refrigeração também vai aumentar.
Com países e empresas pressionados a reduzir seu impacto nas mudanças
climáticas, a indústria de refrigeração está passando por uma reformulação
radical na forma como produz e descarta os fluidos refrigerantes.
Nas últimas três décadas, governos de todo o mundo se comprometeram a
combater o uso de produtos químicos que contribuem para o aquecimento global,
como os fluidos refrigerantes, enquanto as companhias começaram a buscar
alternativas naturais e menos poluentes.
Mas os ativistas ambientais argumentam que as mudanças devem ser feitas de
forma muito mais rápida, se quisermos alcançar as metas climáticas
internacionais.
Os consumidores também podem fazer a sua parte por meio dos dispositivos
que compram, do uso que fazem deles e da maneira como descartam equipamentos
cheios de fluidos refrigerantes.
Mas o que há
nos fluidos de refrigeração que os torna tão prejudiciais ao clima?
Os refrigeradores e aparelhos de ar-condicionado certamente usam uma boa
quantidade de energia, especialmente quando ficam ligados continuamente em
climas quentes. Mas eles também contêm produtos químicos que absorvem
prontamente o calor do ambiente à medida que passam do estado líquido para o
gasoso.
Conforme fazem a transição de volta ao estado líquido, eles liberam o
calor para o exterior — seja de um edifício ou geladeira — antes de iniciarem o
processo de resfriamento novamente.
Esses mesmos produtos químicos também são usados em alguns tipos de espuma de isolamento
térmico e como propulsores em latas de spray e aerossol.
O tipo mais comum de fluido refrigerante costumava ser à base de
clorofluorcarbonos, mais conhecidos por sua sigla CFCs. Mas depois que se
descobriu que os CFCs estavam destruindo a camada de ozônio, foi feito um
esforço mundial para eliminá-los.
O Protocolo de Montreal de 1987 — um acordo ambiental histórico assinado
por mais de 200 países — estabeleceu que esses produtos químicos prejudiciais
ao meio ambiente não seriam mais produzidos.
Mas o esforço para se livrar dos CFCs levou muitos fabricantes de produtos
químicos a optar por substituí-los por dois grupos de compostos — os
hidrofluorcarbonos (HFCs) e hidroclorofluorcarbonos (HCFCs) — com um problema
diferente.
Esses fluidos refrigerantes quebram muito menos as moléculas de ozônio,
mas são gases de efeito estufa extremamente potentes. Sua capacidade de aquecer
a atmosfera — mensurada como potencial de aquecimento global — é milhares de
vezes maior do que a do dióxido de carbono, sendo alguns até 13.850 vezes mais
potentes.
Isso acontece porque os HFCs e HCFCs — junto com os CFCs — também absorvem
a radiação infravermelha, prendendo o calor dentro da atmosfera, em vez de
permitir que ele escape de volta ao espaço, criando o efeito estufa que aquece
o planeta.
Embora esses produtos químicos sejam usados para diversos fins, de longe a maior fonte de emissões é proveniente
dos sistemas de refrigeração e ar-condicionado. Com o tempo, eles podem vazar para a atmosfera de
aparelhos danificados ou de sistemas de ar-condicionado de automóveis, por exemplo.
"A indústria como um todo teve um enorme impacto no aquecimento
global", diz Clare Perry, ativista sênior da Agência de Investigação
Ambiental (EIA, na sigla em inglês), organização sem fins lucrativos que
investiga e faz campanha contra o abuso ambiental. Ela diz que, juntos, os
CFCs, HFCs e HCFCs foram responsáveis por cerca de 11% do total das emissões responsáveis pelo
aquecimento global até agora.
Em 2016, autoridades de mais de 150 países assinaram a Emenda de Kigali,
concordando em reduzir o consumo de HFC em 80% até 2047. Se a meta for
alcançada, poderá evitar mais de 0,4 °C de aquecimento global até o fim do
século — uma quantidade considerável em nossos esforços para reduzir os efeitos
das mudanças climáticas.
Como os HFCs são gases potentes que podem permanecer na atmosfera por até
29 anos, há uma necessidade urgente de eliminá-los progressivamente, diz Doug
Parr, cientista-chefe do clima do Greenpeace.
"Uma vez que são produzidos, são difíceis de lidar. Você está
construindo um banco de produtos químicos problemáticos", acrescenta.
Mas especialistas da indústria afirmam que esses fluidos refrigerantes
nocivos ainda estão disseminados e aumentando rapidamente devido ao crescimento
global na demanda por ar-condicionado; à inovação lenta da indústria; e à
legislação inadequada sobre seu descarte.
Em todo o mundo, a demanda por ar-condicionado está aumentando à medida
que as temperaturas sobem e as pessoas ficam mais ricas, de acordo com a
Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês). As recentes ondas
de calor na Europa, por exemplo, também impulsionaram as vendas de
ar-condicionado em áreas onde antes era incomum.
Estima-se que o número global de aparelhos de refrigeração aumente de 3,6
bilhões para 9,5 bilhões até 2050, segundo um relatório do Programa das Nações
Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e da IEA.
Fornecer refrigeração para todos que precisam, e não apenas para aqueles
que podem pagar, exigirá 14 bilhões de dispositivos até 2050, observa o
relatório.
"À medida que os países ao sul do globo estão começando a aumentar
sua riqueza, sua capacidade de comprar aparelhos de ar-condicionado e
geladeiras está aumentando drasticamente", diz Brian Dean, chefe de
eficiência energética e refrigeração da iniciativa Sustainable Energy for All,
apoiada pela ONU.
Sem mudanças radicais na indústria de refrigeração, a projeção é de que as
emissões de HFC contribuam com um aquecimento equivalente a 20% das emissões de
CO2 em 2050, alerta o relatório do Pnuma.
Há maneiras de resfriar uma casa sem a necessidade de ar-condicionado. As
técnicas tradicionais usam recursos hídricos, como fontes para ajudar a
resfriar o ar que passa por um edifício, enquanto algumas construções são
cuidadosamente projetadas para estimular a circulação natural do ar.
Mesmo medidas simples, como colocar uma moringa de barro com água perto de
uma janela ou local com corrente de ar, podem ajudar a refrescar um cômodo.
Parte do problema com os fluidos refrigerantes, entretanto, é que muitos
dos danos que eles causam acontecem depois que nós, como consumidores,
terminamos de usá-los. Ocorrem fora da nossa vista e, em grande parte, nem nos
damos conta.
Cerca de 90% das emissões da refrigeração ocorrem no fim da vida útil do
equipamento, de acordo com a Project Drawdown, organização sem fins lucrativos
que analisa soluções climáticas. Isso significa que o descarte adequado é
essencial.
Se os produtos químicos refrigerantes forem cuidadosamente extraídos e
armazenados, eles podem ser purificados para reutilização ou transformados em
outras substâncias que não causam aquecimento global.
O gerenciamento adequado e a reutilização de gases refrigerantes podem
reduzir 100 bilhões de gigatoneladas das emissões globais de CO2 entre 2020 e
2050, de acordo com a EIA. Mas o descarte adequado de HFCs não é um requisito
obrigatório no Protocolo de Montreal — tampouco é devidamente aplicado em
muitos países, de acordo com o Pnuma.
O HFC mais comum encontrado em geladeiras domésticas é o HFC-134a, que tem
um potencial de aquecimento global 3,4 mil vezes maior do que o dióxido de
carbono. Uma geladeira padrão pode conter entre 0,05kg e 0,25kg de fluido
refrigerante que, se vazar no meio ambiente, geraria emissões equivalentes a
dirigir de 675km a 3.427km em um carro de tamanho médio.
Os consumidores que desejam se livrar de forma responsável de geladeiras,
freezers ou aparelhos de ar-condicionado antigos, têm uma série de opções à sua
disposição. Nos EUA, os eletrodomésticos antigos podem ser descartados por meio
de esquemas aprovados pela Agência de Proteção Ambiental.
Muitas autoridades locais recolhem e reciclam aparelhos antigos, enquanto
os fabricantes e varejistas de eletrodomésticos novos costumam se oferecer para
retirar os itens antigos. Esforços para eliminar os HFCs no país foram
acrescentados ao projeto de lei de inovação de energia que está atualmente em
tramitação no Senado.
Na União Europeia, a legislação já exige que os gases HFC sejam
recuperados no fim da vida útil para evitar que vazem para a atmosfera.
Se a sua geladeira quebrar no Reino Unido, por exemplo, você deve levá-la
a uma instalação de tratamento de resíduos licenciada, onde um técnico removerá
o gás. É ilegal não retirar os fluidos refrigerantes antes de destruir o
aparelho.
Mas um estudo recente mostrou que as emissões globais de HFC-23, que tem o
maior potencial de aquecimento global de todos os HFCs, atingiram um pico
histórico em 2018, apesar dos esforços internacionais para reduzi-lo.
O HFC-23 é um subproduto da fabricação do HFCF-22, que é um propulsor e
refrigerante comum usado em aparelhos de ar-condicionado. O aumento sugere que
não está sendo feito o suficiente para coletar e destruir o HFC-23 durante os
processos de fabricação.
Em muitos países, não há regulamentação adequada em vigor. Esta é uma
preocupação especialmente nos países em desenvolvimento, de acordo com Dean.
"Se [as pessoas] decidirem manter [seus eletrodomésticos] e talvez
destruí-los no quintal, não há mecanismo regulatório que impeça as pessoas de
descartar os fluidos refrigerantes de maneira adequada", diz ele.
Em alguns casos, os HFCs também estão chegando aos produtos ilegalmente, o
que ameaça minar os esforços para eliminá-los. Após as novas normas
introduzidas pela União Europeia em 2014, os preços dos HFCs dispararam.
Mas a EIA alega que há discrepâncias nos dados de exportação e importação
de HFCs que saem da China e chegam à União Europeia. No segundo semestre de
2019, foram apreendidas 54 toneladas de HFCs, um aumento de dez vezes em
relação ao mesmo período de 2018, segundo uma análise da EIA.
De acordo com Perry, o controle ineficiente está permitindo o comércio
ilegal de HFC em grande escala, que pode acabar em dispositivos vendidos aos
consumidores.
"Provavelmente, o maior risco para o consumidor comum é que HFCs
ilegais possam ser usados para consertar
o ar-condicionado do carro", diz ela.
"Portanto, vale a pena perguntar à sua oficina como eles se
certificam de que os HFCs que usam são de uma fonte confiável."
A indústria química está tomando medidas para impedir o comércio ilegal de
HFCs — e os consumidores podem descobrir quais empresas se comprometeram a agir
em um site que eles criaram. Mas é preciso fazer mais, acrescenta Perry.
"Se o comércio ilegal avançar em ritmo acelerado, vai ameaçar a
integridade da redução progressiva do HFC e das metas climáticas da União
Europeia", diz ela.
Para quem já está pensando em trocar a geladeira ou ar-condicionado por
uma alternativa mais amistosa para o planeta, há cada vez mais opções
disponíveis. Os fabricantes começaram a recorrer a produtos químicos favoráveis
ao clima, conhecidos como refrigerantes
naturais, que têm potencial de aquecimento global comparativamente baixo ou zero.
Marcas globais importantes, como Coca Cola, PepsiCo e Unilever,
estabeleceram metas para eliminar os HFCs e já começaram a usar alternativas.
Amônia, certos hidrocarbonetos e CO2 são as opções mais populares.
A Coca-Cola prometeu que todos os equipamentos novos para refrigeração de
bebidas que usa serão livres de HFC — e já passou a usar o hidrocarboneto
propano em muitas de suas máquinas de venda automática de refrigerante. As
marcas de sorvete da Unilever, incluindo Ben & Jerry's e Wall's, também
usam hidrocarbonetos em seus freezers.
A maioria dos supermercados na Europa agora usa CO2 em suas geladeiras e
freezers, depois que a regulamentação da União Europeia para eliminar os HFCs
foi introduzida em 2015.
Mas as preocupações com a segurança estão impedindo a transição de toda a
indústria para refrigerantes naturais. A amônia, por exemplo, é altamente
tóxica, o que significa que apresentaria um risco à saúde caso escapasse por
meio de um vazamento, enquanto o propano é um gás inflamável.
Mas são necessárias quantidades relativamente pequenas desses produtos
químicos nos tubos que os fazem circular pelas geladeiras e aparelhos de
ar-condicionado.
Ativistas ambientais afirmam que os fabricantes de produtos químicos
também estão resistindo à mudança para essas substâncias naturais.
"Eles não podem patentear CO2, hidrocarbonetos ou amônia porque são
substâncias naturais", diz Marc Chasserot, fundador da Shecco, uma
aceleradora de mercado para refrigerantes naturais.
"Eles dirão que são perigosos, [mas] nenhuma máquina de venda de
refrigerante da Coca-Cola que usa hidrocarbonetos jamais explodiu. O risco de
inflamabilidade pode ser gerenciado com muita facilidade."
A Honeywell, fabricante de produtos químicos nos EUA, investiu em
hidrofluorolefinas (HFOs), em vez de refrigerantes naturais, produzindo um
produto químico patenteado chamado HFO1234yf.
"Em muitas aplicações, essas soluções têm um potencial de aquecimento
global igual, ou até menor, do que o dióxido de carbono e até 99% menor do que
outras tecnologias de HFC", diz George Koutsaftes, presidente de materiais
avançados da Honeywell.
Mas, segundo Perry, essas substâncias não são soluções de longo prazo, uma
vez que produzem ácido tóxico ao se decompor na atmosfera, o que polui os
lençóis freáticos.
"Os refrigerantes naturais são basicamente os únicos à prova do
futuro", diz Perry.
"A eliminação progressiva vai continuar e só será reforçada,
[tornando os fluidos refrigerantes potentes] cada vez mais raros e caros, e por
fim ilegais."
Uma empresa que se comprometeu a eliminar os HFCs é a Mabe, uma grande
fabricante mexicana que distribui eletrodomésticos para mais de 70 países. A
empresa anunciou que eliminará completamente os HFCs de suas 11 fábricas neste
ano, substituindo-os por hidrocarbonetos.
"Queremos que o mundo saiba que a transição para novas alternativas
de refrigeração é possível", explica Pablo Moreno, chefe de assuntos
corporativos da Mabe.
Segundo ele, a mudança pode reduzir as emissões de CO2 da empresa em 240
mil toneladas por ano.
Outro fabricante, a Electrolux, se comprometeu a remover todos os HFCs de
suas geladeiras e freezers até 2023.
Para os consumidores, no entanto, descobrir quais eletrodomésticos contêm
refrigerantes naturais nem sempre é fácil. Alguns países já introduziram
etiquetas para ajudar as pessoas a identificar facilmente quais geladeiras
contêm essas alternativas mais favoráveis ao clima.
Mas com tanto HFC nas cozinhas e sistemas de ar-condicionado no mundo
todo, nosso desejo de esfriar a temperatura pode tornar o mundo muito mais
quente.
Por BBC
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