Após a polêmica levantada pelo
ministro da Justiça, Torquato Jardim, sobre possíveis relações da polícia
carioca com o crime organizado, Michel Temer e o presidente da Câmara, Rodrigo
Maia, colocaram panos quentes na situação
O Rio de Janeiro está em decomposição. E as ruínas desse
esfacelamento chegam a Brasília. O estado fluminense é simbólico na crise que
vive o país. Dos conflitos éticos aos econômicos, da insegurança à calamidade
na saúde. Das cifras astronômicas gastas com as Olimpíadas de 2016 à falta de
merenda nas escolas. Os problemas do Rio vão muito além das críticas do
ministro da Justiça, Torquato Jardim, à polícia carioca. Eles sintetizam a
deterioração de um país mergulhado em escândalos de corrupção. De uma rica
nação, que tenta se reerguer após a mais longa recessão. Para superar os
obstáculos e evitar maiores desgastes entre as esferas do poder, será
necessário um esforço conjunto entre os governos federal e estadual. E o primeiro
passo começou ontem, com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia
(DEM-RJ), admitindo que o auxiliar do presidente da República, Michel Temer,
tenha dito verdades por linhas tortas.
Durante viagem oficial à Itália,
Maia, em tom mais ponderado, avaliou que as declarações de Torquato são
pertinentes, mas questionou a maneira usada pelo colega. “Acho que ele falou
muita verdade ali, só que não sei se foi da forma adequada. Eu acho que,
talvez, aquela entrevista valesse depois de uma ação da polícia, com meses de
investigação, pegando aqueles que estão boicotando as ações de segurança no
Rio”, disse o presidente da Câmara ao jornal Folha de S.Paulo. Na quarta-feira,
Maia classificou as palavras do ministro como “infantis” e “irresponsáveis”.
O recuo do democrata, pré-candidato à
reeleição, foi vista, nos bastidores, como uma reconexão com a maioria da
sociedade carioca, que concorda com a afirmação de Torquato. À imprensa, o
ministro afirmou que há uma associação de policiais do Rio em cargos de comando
com o crime organizado. Agora, não somente Maia, como também Temer procuram
colocar panos quentes sobre a polêmica. Pessoas próximas do peemedebista
garantem que ele pediu ao auxiliar que evite dar novas declarações sobre o
assunto. O Palácio do Planalto quer evitar atritos com o presidente da Câmara,
pensando nas agendas econômicas que devem entrar em breve em votação.
Rodrigo Maia, por sua vez, tenta
evitar desgaste com Temer. A fatura pela permanência do peemedebista na
Presidência ainda está sendo paga, como a Medida Provisória que prevê a
permissão para que o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) tenha acesso aos
fundos regionais de desenvolvimento. O chefe do Executivo Federal também
assinou um contrato de R$ 652 milhões para obras no Rio. Os esforços entre
Câmara e Planalto, no entanto, estão concentrados na reforma da Previdência.
Maia não esconde o desejo de aprovar o texto, que dependerá de uma ampla
articulação entre os dois Poderes.
A agenda das reformas, no entanto, é
apenas o começo para um longo processo de recuperação da crise moral, ética e
econômica do Rio. Afinal, a Cidade Maravilhosa precisa enfrentar notórios
percalços, como a crise entre os representantes políticos e a escalada da
violência pública. Nada menos do que dois ex-governadores cariocas, Anthony
Garotinho e Sérgio Cabral Filho, estão presos. O atual, Luiz Fernando Pezão, é
acusado de receber via caixa dois dinheiro de propina nas eleições de 2014.
Cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Rio, que deveriam zelar pela aprovação
das contas, são investigados por corrupção.
São exemplos de nomes fortes que
surgiram na política da capital fluminense, ganharam projeção nacional e, hoje,
não representam nada além de um estado em frangalhos. Doutor em filosofia e
professor de Ética Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
Roberto Romano avalia que a decadência do Rio de Janeiro não é nova, tendo
surgido com a migração da capital do Brasil do Rio para Brasília. “Essa mudança
criou um vácuo de poder e de capacidade, inclusive, de manusear recursos.
Assim, os cariocas, acostumados a ter dinheiro e poder, perderam os dois. Essa
lacuna precisou ser preenchida”, avaliou, justificando a origem das relações
entre bandidos e autoridades locais.
A simbiose entre autoridades públicas
e os grandes nomes do jogo do bicho, do tráfico é algo antigo, ressalta Romano.
“Sempre foi comum ver os donos de negócios escusos nos palanques tentando
eleger candidatos. Aí entra a velha tradição brasileira de trocar favor. Como
eu, você e todos os brasileiros vimos ultimamente, essa tradição continua
funcionando com força total”, acrescentou.
No meio do embate sobre a eficácia da
polícia carioca, um triste incidente aconteceu ontem: o menino de 3 anos que
foi atingido, na última quarta-feira, por uma bala perdida enquanto brincava no
sofá de casa teve a morte cerebral declarada. Um dia antes, o policial Rafael
Santa Ana Corrêa foi assassinato em uma drogaria. O cabo foi o 114º integrante
da Polícia do Rio de Janeiro morto em 2017.
Silêncio
O poder carioca resolveu
contra-atacar e processará o ministro da Justiça, Torquato Jardim. Do
governador do Rio, Luiz Fernando Pezão aos comandantes da Polícia Militar,
todos questionam as declarações dadas por Torquato de que a cúpula da PM está
controlada pelo crime organizado. Questionado, o presidente Michel Temer
preferiu não se envolver na polêmica para não dar mais espaço à crise.
O silêncio que permeia o Planalto
também chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que deve julgar a interpelação
proposta por Pezão. Para o ministro Marco Aurélio Mello, é necessário aguardar
os desdobramentos antes de qualquer declaração. “Não posso comentar esse caso
porque um de nós (ministros) pode acabar sendo relator”, disse. O Correio
também entrou em contato com Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que
preferiram não se manifestar sobre o assunto.
O senador Lindbergh Farias (PT-RJ),
no entanto, rompeu a falta de expressividade dos poderosos e disse que “todo
mundo que mora no Rio de Janeiro sabe que as palavras do ministro são verdade”.
Outros integrantes do parlamento que concordam com Torquato dizem que, embora
ele esteja certo, foi imprudente e exagerado.
Estado em deterioração
Entre as unidades da federação, o Rio
de Janeiro é, talvez, a que mais personifica a escancarada crise ética, moral e
econômica que assola o país. Entenda os principais atores e fatos que o levaram
à atual situação:
Corrupção
Desvio de recursos públicos,
recebimento de propina, lavagem de dinheiro e participação em organização
criminosa são alguns dos delitos pelos quais representantes públicos do Rio
foram condenados ou acusados.
» Anthony Garotinho: o ex-governador foi condenado a 9 anos e 11
meses de prisão por corrupção eleitoral, associação criminosa, supressão de
documento público e coação. A avaliação da Justiça é de que ele comprou votos
para a mulher, Rosinha Garotinha, ser reeleita à prefeitura fluminense, em
2016. Ele chegou a ser detido, mas, por decisão do STJ, aguarda julgamento de
recurso em liberdade.
» Sérgio Cabral Filho: o ex-governador foi condenado a 45 anos e 2 meses
de prisão, considerado como o “grande líder da organização criminosa” que
possibilitou o desvio de milhões dos cofres públicos do estado. Cabral está
preso desde novembro do ano passado no complexo penitenciário de Gericinó, em
Bangu. Ex-diretores da construtora Odebrecht apontam pagamentos de R$ 94
milhões a ele, que também é suspeito de ter recebido propina durante as
Olimpíadas e de ter comprado votos para escolher o Rio como a sede do evento.
Uma família ligada a ele foi presa por desvio de recursos da merenda escolar.
» Eduardo Cunha: o ex-presidente da Câmara dos Deputados e um
dos mais influentes políticos
do Rio de Janeiro foi condenado a 15
anos e 4 meses de prisão por corrupção passiva devido a solicitação e
recebimento de vantagem indevida no contrato de exploração de petróleo em
Benin, na África. Cunha está detido em Curitiba desde outubro do ano passado.
» Luiz Fernando Pezão: o atual governador do Rio é acusado de
recebimento de propina da Odebrecht nas eleições de 2014. Ex-presidente da
construtora Odebrecht afirma que teria pagado, via caixa 2, R$ 20,3 milhões na
campanha eleitoral.
» Jorge Picciani e conselheiros do
TCE: cinco conselheiros do Tribunal
de Contas do Rio de Janeiro foram presos por suspeita de recebimento de propina
de 1% sobre valores de contratos de empreiteiras. As investigações apontam que
eles recebiam dinheiro para fazer vista grossa e aprovar obras, como a do
Maracanã e a da linha 4 do metrô. O presidente da Assembleia Legislativa do
Rio, Jorge Picciani, foi alvo de condução coercitiva para prestar depoimento
após ter o nome citado em acordo de delação por um ex-conselheiro.
Economia
A crise que estourou em 2015 só
escancarou o desequilíbrio das contas públicas do Rio. Antes disso, o governo
já vinha elevando muito os gastos públicos, inclusive com servidores, ancorado
na valorização do barril de petróleo no mercado externo. Uma lei de 2003 previa
o pagamento de aposentadorias com uso dos royalties, mas o arrefecimento da atividade
econômica e a queda do preço do barril provocaram queda nas receitas, enquanto
os gastos se mantiveram em crescimento, principalmente o da Previdência.
Segurança pública, saúde, educação
O orçamento comprometido pela crise
econômica provocou um efeito cascata altamente danoso e negativo sobre os
serviços públicos. Policiais passaram a ter menos incentivos, o sistema de
saúde entrou em colapso, com deficit de médicos, insumos, medicamentos e
atrasos em atendimentos. A educação seguiu o mesmo caminho: organizações não
governamentais acusam a secretaria estadual de fechar turmas.
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