— Chegam a estranhar as nossas plantações. Eu os ouço narrando o que estão
vendo, admirados, por telefone. Muitos cariocas não conhecem esse lado da
cidade — conta Clarice Ishii, 59 anos, filha de imigrantes japoneses que
aprendeu com o pai a cultivar o solo e hoje, em pleno Rio de Janeiro, divide o
trabalho com duas irmãs.
O sítio onde moram, com pouco mais de 70 mil metros quadrados, abastece
feiras e sacolões cariocas com cerca de 60 toneladas de aipim por ano. A
propriedade fica em Santa Cruz, na Zona Oeste da cidade, às margens da Rodovia
Rio-Santos, e integra uma colônia de 16 produtores que mantém viva a tradição
rural iniciada por lá nos anos 1930.
A lavoura carioca teve peso quase imperceptível nos R$ 470,5 bilhões
gerados pela safra recorde no país em 2020. A marca foi anunciada no último dia
22 em edição da série histórica da Produção Agrícola Municipal (PAM), apurada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 1974. A
capital fluminense responde por ínfimos R$ 47,8 milhões desse total, ou 0,01%
do valor da produção agrícola nacional. Além disso, tem apenas 1,7% de sua área
dedicado ao plantio. Na segunda cidade mais populosa do país, praticamente todo
o alimento consumido é importado de municípios e estados vizinhos.
Para a mesa do carioca
Clarice Ishii e suas irmãs fazem parte do reduzido grupo de trabalhadores
que, no Rio, tiram seu sustento da terra. Após séculos de urbanização, parte da
cidade ainda é tomada por arados, lavras e enxadas. Em pouco mais de 20
quilômetros quadrados distribuídos pela Zona Oeste, toneladas de aipim,
cana-de-açúcar, coco, banana, maracujá, abacate e caqui, entre outros produtos,
são cultivados em cerca de 1,1 mil estabelecimentos rurais nos bairros de Santa
Cruz, Guaratiba, Santíssimo e Campo Grande. Tudo segue para a mesa dos
cariocas.
— Hoje ganhamos o suficiente para sobreviver. A produção caiu com a
elevação da temperatura e a expansão imobiliária na região, que dificulta nosso
acesso aos canais de irrigação — conta Clarice, que fatura cerca de R$ 120 mil
por ano. — Temos custos com maquinário, funcionários, manutenção das lavouras,
o que sobra é o suficiente para levarmos uma vida modesta e tranquila. E eu amo
muito o que faço.
Na mesma colônia, o agricultor José Fernandes, de 61 anos, responsável por
quase 95% da cana-de-açúcar plantada no Rio — a safra total do ano passado foi
de 274 toneladas —, direciona o que produz para vendedores de caldo da planta.
Já nas terras de Luiz Carlos Hoshima, de 59 anos, um coqueiral avança por
dez hectares (cerca de cem mil metros quadrados) e rende colheitas diárias de
até três mil cocos, dependendo do clima.
— Nós temos uma terra muito fértil, de turfa, material de origem vegetal,
que deixa a nossa água de coco mais doce que as demais — orgulha-se Hoshima,
apontando, no entanto, adversidades trazidas pela pandemia:
— Não sabíamos se nossos produtos teriam espaço de venda. Por isso, deixei
de cuidar da terra, de ter custos com isso. Hoje sinto diferença na plantação.
Em Guaratiba, João Carlos Abreu, de 56 anos, ocupa quase 80 mil metros
quadrados com o cultivo de maracujá, chuchu, hortaliças, aipim e tomates. O
último item da lista é aposta ousada, já que o clima local não ajuda, mas ele
gosta de desafios: vai iniciar um plantio inédito de uvas pretas sem sementes
na região, com mudas vindas de Petrolina, em Pernambuco. Todos os produtos
colhidos abastecem o mercado que mantém no bairro, onde chega a vender 600
molhos de couve por dia.
A terra de Guaratiba — não por acaso o lugar onde fica o histórico sítio
do paisagista Roberto Burle Marx, reconhecido como Patrimônio Mundial da
Humanidade em julho — também abriga produtores de plantas ornamentais. João
Camacho, de 62 anos, nasceu no bairro, tem Burle Marx como inspiração e cultiva
mais de cem espécies em quase 40 mil metros quadrados de terreno.
— Cerca de 80% das minhas vendas são de atacado, para lojas e quiosques.
Mas atendo também compradores individuais que chegam até aqui — diz João
Camacho.
Segundo o último Censo Agro do IBGE, realizado em 2017, mais de 90% dos estabelecimentos
agropecuários do município têm menos de 200 mil metros quadrados. E quase dois
terços desse universo (67,8%) pertencem à categoria definida como “agricultura
familiar”.
— Durante bastante tempo, o homem do campo foi marginalizado como alguém
atrasado. Mas, na verdade, o produtor rural tem muito orgulho do seu trabalho,
de estar abastecendo as mesas de tanta gente. É uma responsabilidade muito
grande. Diversas famílias têm nessa agricultura o único sustento. Apesar de
serem baixas, as produções de coco e aipim, por exemplo, são as segundas
maiores do estado. Por isso, digo que toda produção, mesmo que pequena, tem seu
valor e a sua importância — explica Winicius Wagner, supervisor da Pesquisa
Agrícola Municipal.
Ainda segundo o IBGE, o que determina a presença de um alimento na
pesquisa é a relevância em relação ao que se produz no resto do país, de acordo
com metodologia internacional. Pelos parâmetros do PAM, a produção mais
expressiva da cidade se concentra na Zona Oeste, já que outras localidades,
como escolas e pequenos quilombos, exibem números baixos e irregulares,
chegando a passar até um ano sem produzir.
Diego Amorim, Extra
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