O consumo de ultraprocessados na dieta dos brasileiros nunca foi tão alto.
É o que aponta a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que indica que, entre 2002-03 e 2017-18, a disponibilidade calórica de ultraprocessados em nossa alimentação foi de 12,6% para 18,4%, respectivamente. O crescimento de alimentos in natura foi mais tímido, passando de 49,5% para 53,5%.
Levantamento realizado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), com dados do Vigitel - sistema do Ministério da Saúde, traça o perfil que mais consome alimentos ultraprocessados: homens jovens e com baixa escolaridade.
O Vigitel, em 2019, entrevistou 52.4 mil pessoas acima dos 18 anos de idade, residentes nas capitais dos 27 estados brasileiros. Nove em cada dez entrevistados relatou ter consumido pelo menos um subgrupo e uma em cinco consumiram cinco ou mais subgrupos de alimentos ultraprocessados.
Comidas ultraprocessadas são fáceis de serem encontradas. Estão em estações de metrô, bancas e farmácias e são escolhidas por serem mais baratas, práticas e rápidas para o consumo.
Ultraprocessados são formulações industriais de substâncias extraídas de alimentos e neles são aplicados aditivos, como corantes e aromatizantes, para tornarem-se produtos de propriedades sensoriais atraentes, como biscoitos, refrigerantes, sorvetes, macarrão e temperos instantâneos.
São alimentos pobres em fibras, vitaminas, minerais e de outras substâncias encontradas em produtos in natura ou minimamente processados, além de favorecerem o surgimento de doenças do coração, diabetes e alguns tipos de câncer.
De acordo com a vice-presidente da Associação Brasileira de Nutrição (Asbran), Daniela Cierro, alimentos ultraprocessados também contribuem para o aumento do risco de deficiências nutricionais.
O genocídio alimentar, conhecido como nutrícidio, mata pela fome. O termo foi criado pelo norte-americano Llaila Afrika, médico e autor do livro Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race, para demonstrar como a colonização europeia destruiu a nutrição adequada de pessoas negras.
No contexto do genocídio alimentrar, para a população preta, a ingestão de alimentos transgênicos, com agrotóxicos e ultraprocessados é uma escolha mais barata do que produtos orgânicos e naturais, o que leva a surgimento de doenças e comorbidades.
Outra síndrome ligada à alimentação é a fome oculta, associada ao consumo insuficiente de comidas capazes de suprir nossas demandas de vitaminas e minerais, como frutas, legumes, peixes e carnes. Estimativa da OMS aponta que uma a cada quatro pessoas no mundo sofre com a fome oculta.
As duas síndromes podem estar relacionadas à ingestão de ultraprocessados, explica Daniela Cierro, já que são alimentos mais baratos e de menor qualidade nutricional, com mais gorduras saturadas, açúcar, sódio e calorias.
“Embora cada aditivo utilizado nesses produtos tenha que passar por testes e ser aprovado por autoridades sanitárias, os efeitos de longo prazo sobre a saúde e o efeito cumulativo da exposição a vários aditivos nem sempre são bem conhecidos”, explica a nutricionista.
O artigo científico “Alimentos ultraprocessados e perfil nutricional da dieta no Brasil”, aponta que o consumo médio diário de energia dos brasileiros, que tem 10 anos ou mais de idade, foi de 1.866 kcal, sendo 69,5% proveniente de alimentos in natura ou minimamente processados, 9% de alimentos processados e 21,5% de alimentos ultraprocessados.
Entre os alimentos mais presentes na dieta da população estão a margarina (42,6%), pão de forma, de cachorro-quente ou hambúrguer (32,8%), refrigerante (27,7%), salsicha e embutidos (26,5%), chocolate, sorvete, gelatinas e outras sobremesas (25,6%), salgadinho de pacote (23,9%) e bolacha doce, biscoito recheado (21,3%).
A ingestão de ultraprocessados no Brasil é menor do que o consumo per capita visto nos Estados Unidos e Canadá, mas tem avançado.
“Embora o volume de vendas continue mais elevado nos países de alta renda, o crescimento foi mais acelerado nos países de baixa renda”, afirma a presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), Cintia Cercato.
O que há por trás do alimento
A pesquisa do IBGE que abriu esta reportagem demonstra que o consumo de ultraprocessados no Brasil avança mais rapidamente do que o de alimentos in natura, apesar que o segundo ainda lidera a dieta da população.
Explicar essa substituição de preparações culinárias por alimentos prontos para consumo é complexa, afirma o coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens), Carlos Monteiro.
Ele elenca três fatores para esse cenário. O primeiro está ligado à incorporação das mulheres ao mercado de trabalho, movimento que passou a exigir o compartilhamento de tarefas domésticas no preparo das refeições, o que nem sempre acontece.
O segundo motivo é o forte investimento em propagandas que promovem estes alimentos, ressaltando a facilidade de preparo destes produtos para a população. Em terceiro lugar, explica Monteiro, está o campo de pesquisas sobre ultraprocessados.
“As evidências dos males causados pelo consumo desses alimentos são descobertas recentes da ciência e ainda não bem conhecidas por toda a população”.
Ultraprocessados e infância
A introdução de alimentos ultraprocessados acontece desde os primeiros anos de vida de uma criança e tem impactos negativos, como demonstra o estudo feito pela Nupens, em parceria com o Imperial College London do Reino Unido, que avaliou o consumo médio de ultraprocessados de crianças britânicas de 7 anos até completarem 24 anos.
Na pesquisa foram utilizadas 9.025 crianças para se observar o efeito nos indicadores da obesidade, e os resultados mostram que os participantes que tiveram mais consumo de ultraprocessados na infância tinham os piores índices de obesidade.
O artigo ainda afirma que, quanto maior a ingestão de ultraprocessados na dieta de crianças, maior é o ganho de peso e o papel definitivo desses produtos para a formação de preferência dos hábitos alimentares.
A nutricionista Simone Maria relaciona as preocupações em relação aos alimentos ultraprocessados na primeira infância e no processo de crescimento.
“A criança tem um gasto energético enorme na fase de crescimento e precisa de nutrientes para ter um bom desenvolvimento. Atualmente, as crianças fazem o consumo cada vez mais cedo de alimentos com gorduras, excesso de açúcar e sódio, alimentos refinados, carboidratos simples e pouca fibras, levando a obesidade infantil que é um problema de saúde pública no mundo”, afirma.
Leticia Polidorio é mãe de Davi, de 12 anos, e Valentina, de 7, e acaba recorrendo aos alimentos ultraprocessados pela praticidade e para atender o pedido das crianças.
Davi não é grande fã de refrigerante, mas Valentina consome a bebida entre quatro a cinco vezes na semana. “Eles acabam comendo pão todos os dias, pizza e lanche aos finais de semana e bolacha são duas vezes por semana”, relata a mãe.
A estudante de 19 anos, Beatriz Reis, conta que seu café da manhã é composto, geralmente, por pão, ovo, aipim, inhame, sempre acompanhado de café. No almoço, os alimentos que mais consome são arroz, feijão e carne. Consome verduras, mas sua preferência maior é por frutas
Beatriz come muito pão e, às vezes, presunto e chocolate. Apesar da sua lista de consumo de alimentos ultraprocessados com frequência não ser longa, confessa que é facilmente influenciada pelas propagandas desses produtos.
“Se eu vejo uma embalagem bonitinha que me dá vontade de comer, eu compro”, admite.
A publicidade dos ultraprocessados
O protagonista da propaganda aparece na tela sorridente. Tem nas mãos um produto congelado e, olhando para a câmera, enumera cada vantagem, desde sabor a praticidade, que aquele alimento pode trazer se incorporado a sua rotina de alimentação. É rápido e fácil.
Como explica o professor Carlos Monteiro, do Nupens, essa comida não é tão alimento assim. O professor da USP descreve os ultraprocessados como "formulações de substâncias derivadas de alimentos". São frequentemente modificadas quimicamente e possuem pouco ou nenhum alimento inteiro, além de serem adicionados corantes, aromatizantes e outros produtos para ficarem saborosos.
Além do ponto de ser atrativo pela praticidade, as empresas recorrem a outros recursos para estimular o consumo de alimentos pobres em fibras e vitaminas. A forma de utilização da publicidade para vender alimentos ultraprocessados é diversa. Vai desde um simples comercial como descrito acima até a uma campanha mais elaborada.
Durante a exibição do BBB 2021, o maior reality show brasileiro, aconteceu uma estratégia de comunicação que integrava o programa com a rede de fast food Mc Donald’s, famosa por seu cardápio de hambúrgueres, batata-frita e refrigerante.
Em uma das festas em que houve o patrocínio da multinacional, ela se aliou a plataforma de delivery iFood para dar cupons de descontos, criando hashtags nas redes sociais que a deixaram entre os assuntos mais falados no Twitter por 24 horas.
Isso se soma a outras estratégias de marketing que grandes marcas fazem para influenciar na compra de seus produtos.
“Centenas de novos alimentos ultraprocessados são lançados todos os anos no mercado acompanhados de estratégias agressivas de propaganda que buscam convencer as pessoas de que cozinhar seria uma grande perda de tempo”, explica Monteiro.
Neste ano, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela constitucionalidade da Lei 13.583/2016, que proíbe a publicidade de alimentos e bebidas pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio direcionada ao público infantil.
A regulamentação da divulgação e leis específicas sobre esses produtos, inclusive, é uma recomendação do Fundo das Nações Unidas Para a Infância (Unicef) para o progresso do consumo de alimentos com nutrientes adequados para crianças. A agência também elenca “acabar com práticas nocivas de marketing que têm o público infantil e suas famílias como alvo”.
Monteiro afirma que, entre os motivos do consumo de ultraprocessados ser maior entre a população mais jovem, está a vulnerabilidade às ações de marketing da indústria de ultraprocessados. Ele também elenca a preocupação maior com a saúde entre a população mais velha.
Como o governo atua na área?
Debates e alertas sobre o consumo de ultraprocessados são uma dificuldade a nível mundial.
Em setembro deste ano foi realizada a Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas e o apagamento de discussões sobre o poder nocivo de ultraprocessados gerou críticas de organizações da sociedade civil e da comunidade científica que estuda a área.
Tereza Cristina rejeita nota técnica que combatia ultraprocessados
No Brasil, em setembro de 2020, a Secretaria de Política Agrícola, pertencente ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), elaborou uma nota técnica em que desqualificava e recomendava mudanças no texto do Guia Alimentar Para a População Brasileira.
O documento foi publicado em 2014, pelo Ministério da Saúde, em parceria com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e com o apoio da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/Brasil).
O guia orienta a evitar ultraprocessados, incentiva uma alimentação saudável para a população e apresenta os níveis de processamento dos alimentos, a partir da classificação Nova, sistema também utilizado por outros países, como França, Canadá e Uruguai.
O guia alimentar brasileiro tornou-se referência para outras nações da América Latina e outras regiões do mundo na elaboração de documentos semelhantes e é elogiado por seu conteúdo e linguagem acessível.
Na nota técnica elaborada pela secretaria do Mapa, a pedido da ministra da pasta Tereza Cristina, o guia é classificado como “um dos piores”. “A recomendação mais forte nesse momento é a imediata retirada das menções a classificação NOVA no atual guia alimentar e das menções equivocadas, preconceituosas e pseudocientíficas sobre os produtos de origem animal”, dizia o texto.
A nota também colocava como “confusa, incoerente e prejudicial” a classificação utilizada pelo guia para orientar políticas voltadas à alimentação saudável. “A classificação definida pelo critério de tipo de processamento não apresenta nenhuma contribuição para um guia alimentar público, representando o posicionamento do Governo Federal”.
Na época, entidades de saúde e nutrição emitiram notas em resposta ao documento elaborado pela secretaria do Mapa em defesa do Guia Alimentar Para a População Brasileira. Também foi endereçada à Tereza Cristina uma carta assinada por 33 cientistas de sete países endossando o coro a favor do guia brasileiro.
“Afirmar que esse guia ‘é um dos piores’, conforme nota técnica do ano passado, é algo desprovido de referências e totalmente desconectado com a realidade do conhecimento que temos sobre alimentação saudável e, sobretudo, da literatura científica relacionada às medidas e aos fatores impactantes para a construção de uma sociedade com maior segurança alimentar e mais saúde”, diz a presidente da Abeso, Cintia Cercato.
Um avanço enorme foi dado pelo Brasil ao publicar a segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira em 2014, que substitui a versão anterior de 2006. A presidente da entidade afirma que o guia é fundamental para orientar escolhas alimentares mais saudáveis e tem o diferencial de adequar as sugestões para as diferentes regiões do país.
Reprovação, contestação e nova rejeição pelo MAPA
De acordo com Monteiro, coordenador do Nupens - uma das entidades envolvidas na elaboração do documento, o material foi inédito no incentivo ao consumo de alimentos mais saudáveis e uso destes na preparação das refeições, além de influenciar importantes políticas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), responsável pelo cardápio das merendas escolares.
Atualizações nos guias alimentares são necessárias quando um conjunto de evidências científicas amparem novas orientações para uma nutrição saudável, o que não era o caso do documento do Mapa.
A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, acabou rejeitando o teor da nota técnica, demandada por ela mesma, e a devolveu à Secretaria de Política Agrícola porque não viu argumentos suficientes que sustentassem o pedido de alteração e acrescentou que questões de nutrição são de competência do Ministério da Saúde. Porém, no despacho foi pedida a reformulação do documento e não o fim do debate.
“A nota técnica encaminhada ao Ministério da Saúde não tinha embasamento científico e acabou sendo rejeitada pela própria ministra do Mapa. As críticas mostram um claro conflito de interesses que envolve a indústria de alimentos ultraprocessados”, afirma Monteiro.
A presidente da Abeso reforça que os números de obesidade e diabetes têm aumentado no país e que é fundamental que o governo brasileiro invista na promoção de uma alimentação saudável e nutritiva.
Conforme dados do Vigitel de 2019, 55,4% da população brasileira está acima do peso; 20,3% estão obesos (crescimento de 72% entre 2006 e 2019); 7,4% possuem diabetes e 24,5% têm hipertensão.
“De acordo com a OMS, são necessárias políticas públicas para deter o crescimento da obesidade, como rotulagem de advertência frontal, taxação de bebidas açucaradas, proibição de marketing de alimentos e bebidas ultraprocessadas voltadas ao público infantil. No Brasil, recentemente [em 2020], a Anvisa aprovou a rotulagem frontal de advertência, mas ainda faltam muitas outras medidas regulatórias”, ela alerta.
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