Antes de começar a entrevista, Zarifa Ghafari faz um
pedido: “Gostaria que não me perguntasse sobre o meu pai nem a minha fuga.
Não aguento mais chorar”.
Primeira prefeita mulher do Afeganistão — ela foi habilitada para chefiar
a cidade de Maidan Shar, em 2018 —, Zarifa precisou deixar o país no mês
passado, após a tomada de Cabul pelo Talibã. A ativista, de 28 anos, temia que
tanto ela quanto os familiares tivessem o mesmo destino que seu pai, um coronel
do exército assassinado em 2020 por integrantes do regime fundamentalista. Para
chegar até o aeroporto da capital, a jovem precisou se esconder no interior de
um carro e cruzar postos de controle do Talibã. Em seguida, voou para a Turquia
e, depois, para a Alemanha, onde recebeu asilo juntamente com o marido, a mãe e
as cinco irmãs.
É uma tarde abafada de quinta-feira, e Zarifa está visivelmente cansada,
poucas horas depois de ter aterrissado no Rio. Ela veio à cidade para
participar, como convidada especial, da primeira edição brasileira do evento
Women in Tech Awards, que premiou mulheres na área da tecnologia. Nos dias
anteriores, havia cumprido uma agenda intensa de entrevistas e palestras em
Portugal, depois de fazer o mesmo na França e na Suíça. “Não dormi nos últimos
três dias. No máximo, repousei por umas quatro horas”, desabafa, ao receber a
Revista ELA num hotel em Copacabana. “Mas, na verdade, estou feliz em encontrar
tanta gente ao redor do mundo disposta em me ajudar.”
Para alguém como ela, enxergar o lado bom das coisas soa quase como
instinto de sobrevivência. As noites maldormidas não se devem apenas à intensa
rotina como ativista. As imagens de pessoas despencando de aviões americanos,
numa tentativa desesperada de deixar o Afeganistão, também lhe trouxeram uma
sequência de madrugadas insones. “Aquilo me fez lamentar profundamente o fato
de fazer parte de um mundo capaz de provocar cenas como essas”, comenta, depois
de um suspiro profundo. A afegã cita também o ataque ao aeroporto de Cabul que
deixou cerca de 200 mortos. “Passei noites chorando muito. Não podia me controlar.”
Mais velha entre as irmãs, Zarifa teve a infância interrompida aos 4 anos,
quando precisou assumir as tarefas domésticas, enquanto seus pais trabalhavam.
Atravessou guerras civis, ataques do exército americano e, ainda assim, jamais
deixou de estudar. Mas foi no nono ano escolar que entendeu, de uma vez por
todas, como a luta por direitos seria permanente. “Percebi que um dos meus
professores não estava me dando as notas que eu merecia numa retaliação ao meu
jeito sincero e à maneira como me vestia. Para ele, mulheres deviam usar longos
vestidos e grandes lenços, e eu não era assim”, recorda-se.
Nessa mesma época, ela já nutria o sonho de se tornar embaixadora, o que
acabou por desaguar na carreira política (“uma paixão e não um desejo”). Ela se
candidatou ao cargo de prefeita de Maidan Shar, a 44 quilômetros de Cabul,
quando tinha apenas 26 anos, numa disputa em que era a única mulher entre os
138 candidatos. Mesmo vitoriosa, precisou enfrentar protestos por parte da
população local, de perfil conservador, assumindo o cargo apenas nove meses
após uma espécie de processo seletivo que a elegeu. Depois de tomar posse,
sofreu uma série de tentativas de assassinato, incluindo ataques com ácidos,
que lhe deixaram várias cicatrizes pelo corpo. Por fim, a execução a tiros do
pai, em novembro do ano passado, a fez renunciar. Aceitou, então, um emprego no
Ministério da Defesa, em Cabul.
Mesmo sem concluir o mandato, Zarifa acredita ter iniciado uma revolução
com a sua chegada ao cargo de prefeita. “Foi importante para mudar a
mentalidade daquelas pessoas, para que possam confiar numa liderança feminina.
Considero um bom começo para quem almeja um grande objetivo.”
Enquanto corre o mundo, a ex-prefeita tenta abrir os olhos da comunidade
internacional para o que acontece no seu país através de relatos emocionados e
colhe assinaturas para uma petição em defesa dos direitos humanos. As situações
de abuso cometidas pelo Talibã, ela diz, são cotidianas e não parecem indicar a
suposta moderação prometida por seus integrantes. “Eles estão batendo de casa
em casa, procurando por pessoas ligadas ao governo anterior, ativistas e
militares. Também soltaram criminosos, que agora querem se vingar de quem os
colocou na cadeia.”
Pela sua própria história, a situação das mulheres lhe causa preocupação
ainda maior. “As afegãs não podem mais ir à escola ou trabalhar”, relata.
“Outro dia, assisti a um debate na TV estatal em que os comentaristas discutiam
as leis do Islã e diziam que a mulher não tem o direito de exibir sua beleza em
público.”
O uso da religião para sustentar esse tipo de argumento é algo que a
ativista refuta em quase todas as suas falas, ao lembrar que o Talibã distorce
o conteúdo do Islã. “Não podemos vestir roupas bonitas em público, não podemos
usar salto alto em público... Tudo é sobre mulheres. Essas pessoas não
conseguem pensar em nada além disso?”, ironiza. “Nós representamos a nossa
cultura e a nossa bela religião. Não somos inimigas do Afeganistão nem
responsáveis pelo o que acontece de ruim no país. Não fomos nós que provocamos
a guerra ou disseminamos a corrupção.”
Em sua passagem pelo Brasil, que durou cinco noites, Zarifa teve
oportunidade de se encontrar com outras mulheres e relatou a pessoas próximas
que se identificou com o engajamento das brasileiras nas lutas por direitos.
Além da agenda protocolar, que incluiu uma reunião com executivos de um banco,
em São Paulo, em busca de apoio para a sua fundação, e um discurso no Museu do
Amanhã, no Rio, ela teve tempo para desbravar um pouco da vida carioca. Visitou
o Corcovado, o Pão de Açúcar, a Escadaria Selarón, experimentou caipirinha e
conheceu o samba numa visita ao Rio Scenarium, na Lapa. Também aproveitou para
cortar os cabelos, num dos raros momentos que pode tirar para cuidar de si, desde
que deixou o país de origem. “Ela disse que, há muito tempo, não sentia paz e
felicidade como experimentou aqui”, conta a embaixadora da Women in Tech no
Brasil, Lindália Junqueira, que a acompanhou durante toda a estadia.
Observá-la tão de perto, diz Lindália, permitiu compreender de maneira
ainda mais fiel como é a vida de alguém que nasceu num país como o Afeganistão.
Durante a visita de Zarifa ao Brasil, homens do Talibã invadiram a casa de
familiares do marido da ativista e passaram a exigir resgate. “Ela nos disse:
‘Não se preocupem. Vamos resolver’. Entendi, então, que quando essas situações
se tornam cotidianas, você passa a lidar com elas de uma outra maneira”, relata
Lindália. “Também pude compreender que ela passou a ter essa força após a execução
do pai. Zarifa acredita que isso aconteceu justamente por ele ter permitido à
filha se tornar uma ativista política. Dali em diante, ela entendeu que poderia
morrer a qualquer momento e resolveu transformar a luta num propósito de vida.”
Uma determinação que se mede pela própria disponibilidade de Zarifa em se
sentar com os líderes do Talibã para uma conversa franca, caso isso possa ser
feito em segurança. “Queria conhecê-los, porque sei que esses homens não são
meros zumbis”, diz a ativista. “Adoraria contar a eles sobre a minha vida, os
meus sonhos, os meus pais. Eu não tenho medo.”
Eduardo
Vanini, O Globo
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