quarta-feira, 22 de abril de 2009

Entrevista com o autor

Entrevista com o autor, publicada na Revista Bula (www.revistabula.com)

Pioneiro do Teatro de Bonecos na região central do país, o escritor e dramaturgo Antônio Carlos dos Santos, lançou em Goiânia, no ano de 2005, a coleção Brincando de Teatro. A obra compõe-se de 37 volumes, sendo 7 de teoria do teatro e 30 volumes com a reprodução de 30 peças teatrais completas. Todo esse trabalho foi reunido em um único CD-Rom, se constituindo numa obra de referência, a maior coleção sobre teatro já lançada no país, em formato digital, de e-book. Reunindo peças em variados formatos e propostas, a coleção Brincando de Teatro ajuda alunos, professores, trabalhadores e a comunidade em geral a montar um espetáculo e a se apresentar no palco. E tem ainda, como um dos seus principais objetivos, a meta de enfatizar a necessária vinculação entre Cidadania, Educação e Teatro. Apresenta também teoria, exercícios e laboratórios dramáticos. Além de dramaturgo, Antônio Carlos é engenheiro civil e mestrando em ciências políticas. Sua estréia na literatura aconteceu em 1969 com a publicação da peça de teatro “A Chibata".

Onde tudo começa?

Nasci em Goiânia, em 1956. Meu pai, Luiz Martins era militar da Aeronáutica e minha mãe, dona Geralda, a guerreira que me fez ver o mundo de uma outra forma. Fiz o primeiro grau na Escola-Parque, em Brasília, onde comecei a atuar no teatro, nos anos 60. Nos anos 70 já estava cursando Engenharia em Goiânia. Tão logo concluí engenharia, me especializei em planejamento e administração pública e fui batalhar a vida em outros lugares, Palmas, Brasília, ... Passei cerca de quinze anos fora. Nesse ínterim lancei o romance "Os Anjos Esquecidos por Deus", o livro de poemas "Canto da Terra" e o de teatro, "Teatro Vivo", além de alguns livros técnicos. Há cerca de três anos fui convidado para criar os dois Pólos da Universidade Estadual de Goiás em Goiânia. Estruturei e fui o primeiro diretor do Pólo de Projetos Especiais, e do Pólo de Formação de Professores, que funciona no CAIC da Chácara do Governador.

Qual sua definição para Teatro? Sobre o envolvimento ou distanciamento do personagem com o ator, existem duas teorias de se representar. Uma que tem a identificação do ator com o personagem, Stanislavisky; e outra, que é o ator distanciado, Brecht. Qual teoria o senhor mais se identifica?

O que não faltam são definições para teatro. A palavra vem do grego e significa "lugar aonde se vai para ver". Os mamulengueiros costumam se referir ao teatro como uma brincadeira. Eu diria que é um processo de representação em que o ator e o espectador estão conscientes do papel de cada um. Não gosto do teatro formulado por Aristóteles, o teatro dramático tradicional, baseado na catarse e na empatia. Dois dramaturgos alemães, Erwin Piscator e Bertolt Brecht, criaram o que ficou conhecido como "efeito de distanciamento". Na realidade este artifício já era bastante comum no teatro antigo e medieval. Piscator e Brecht aprimoraram esse efeito para forçar um distanciamento do ator em relação à personagem que interpreta, e destes com o espectador. Isto para possibilitar a reflexão crítica. Também Jerzy Grotoviski enriquecem a relação ator-espectador. Não se pode deixar de lado nem Stanislawsky e nem Artaud. Teve também o Living Theater que esteve no Brasil na década de 70; o Arena; o Oficina,... O teatro que denomino Mané Beiçudo é um pouco de tudo isso.

Como era fazer teatro em Goiás nos anos 70, época em que Goiás e Tocantins constituíam ainda uma única unidade da federação?

Não era nada fácil. Não tínhamos acesso à informação de forma geral, e muito menos às informações e conteúdos teatrais. Os grupos de teatro davam murro em ponta de faca para conseguir uma peça para montar. Mas conseguimos aglutinar os que produziam teatro e estruturamos a Federação de Teatro de Goiás, que chegou, na época, a ter mais de 50 grupos filiados. O Governo, desde sempre interage com os grupos locais, mas desprezando-os, praticando a política pequena, miúda, de privilegiar panelinhas, de promover o que é insosso e medíocre. Aquele ditado de que "santo de casa não faz milagre" sempre caiu como luva por aqui. Naquela época vivíamos uma realidade esdrúxula, escrota. Para você ter idéia, em 1967, a Antígona de Sófocles, foi vetada pela Polícia Federal sob a argumentação de ser perigosa à Segurança Nacional. A Megera Domada de Shakespeare foi proibida porque os censores avaliaram que deveriam "defender" a imortalidade do autor, "conspurcada" através de palavrões. Palavrões que constam no texto original, em Inglês. Coisas inacreditáveis aconteciam diuturnamente. Em 1968 Cacilda Becker foi demitida da TV Bandeirantes e da Comissão Estadual de Teatro. E sabem o motivo apresentado? "Interpretação subversiva". Esses eram aqueles tempos.

Quem fazia teatro no Estado nessa época?

Éramos muitos. Dos grupos havia o Espantalho, que era o grupo em que eu atuava; havia o Terra da Selma Ferreira; o Quilombo de Solange Oliveira. Nessa época já atuavam o Divanir Pimenta, o Carlos Moreira, Zoroastro, Eurípedes, Ademir Faleiros, o Delgado, Odilon, o Tonzé. Sem que eles soubessem, tínhamos como referência Hugo Zorzetti e Carlos Fernando, dois grandes encenadores goianos. Olhe, não éramos poucos, e estou cometendo uma tremenda injustiça ao não citar todos.

E o teatro de bonecos, como chegou ao Brasil?

O teatro de bonecos sempre foi uma manifestação cultural eminentemente popular. Muitos chegam a afirmar que o teatro de bonecos é tão antigo quanto o de atores. É praticado desde a antiguidade. Supõe-se que tenha originado no Oriente e depois conquistado a Europa e as Américas. Na idade média, na Europa, o Teatro de Bonecos experimentava uma forte expansão. Com a colonização portuguesa, recebemos também essa herança. No velho continente as apresentações ocorriam nas praças e logradouros públicos, nas feiras livres. Mas ocorriam também nas cortes e nos palácios reais. Nesse período, a Igreja Católica, então onipresente, se apropriou das técnicas teatrais como instrumento de evangelização e catequização. Por isso, a versão mais coerente é que o Teatro de Bonecos tenha chegado por aqui na forma de presépio, no esteio das apresentações da cena do nascimento de Jesus.

A frase "Assim, os fios que dão movimento aos bonecos, a música, a narração - tudo conspira para que os sentimentos também movam-se com a história enquanto ela segue seu curso." de S. Marra e S. Crepaldi. É uma boa definição para o Teatro de Bonecos?

Acredito que sim. Bert Brecht já dizia que qualquer definição vale a pena; que se fosse necessário chamar "teatro" de "taetro" que se fizesse. Tudo para nos fixar no que é determinante, no que é essência e fundamento. Tudo no sentido de não perdermos o foco, de não perdermos tempo com o que é meramente circunstancial, acessório. E no teatro, a essência e o fundamento é o conflito. Seja teatro de bonecos ou não, um bom conflito já enseja um bom começo.

No inicio o Teatro era uma manifestação ligada a igreja, como foi essa desterritorialização?

A jornada do teatro na história da humanidade é recheada de contradições. Na Grécia e em Roma, o teatro era livre e cultuado. Nos inícios do cristianismo foi excomungado e banido da Igreja. Mas, na Idade Média, foi novamente incorporado à liturgia como mecanismo de pregação religiosa. Desde que se limitasse ao contexto religioso passou a ser estimulado. Mas, como o povo não se deixa encabrestar por muito tempo, logo ganhou as ruas, as praças, incorporando temas outros que não somente os preconizados pela igreja. Foi assim que surgiu, na Europa, o movimento preconizado pela commedia dell’arte.

E os mamulengos?

Sim, e os mamulengos. Quando o teatro de bonecos abandona os temas sacros, passa a abraçar o mundo, o universo popular, os temas que tocam a alma do povo simples. Surge então um teatro simples, mas forte, pujante, repleto de reflexão crítica, tomado de muita alegria e humor. Esse teatro no Estado de Pernambuco, recebe o nome de "Mamulengo". Na Paraíba e no Rio Grande do Norte, é denominado "João Redondo". Na Bahia recebe o nome de "Mané Gostoso"; no Piauí, "Cassimiro Coco"; em São Paulo, Rio e Espírito Santo, "João Minhoca" ou "Briguella", e assim vai...

E isso tudo vem lá de trás, da idade média.

É verdade, este movimento sim. É de origem italiana, as características baseadas na commedia dell’arte. As companhias italianas viajavam por toda a Europa, se apresentando. Logo o movimento começou a incorporar valores das culturas locais, o que resultou nos teatros de bonecos nacionais. Na Inglaterra, o Punch; na Holanda, o Pickelhering; na Rússia, o Petruchka; no Brasil, o mamulengo, dentre outros aos quais já me referi.

Foi esse teatro que o senhor trouxe para a região central do país, para Goiás, Brasília, Tocantins e os dois Mato Grosso?

Sim e não. Sim porque aproveitei como eixo a mesma estrutura, a coluna dorsal, digamos assim. Do mamulengo tomei o "mestre", que é o responsável, o principal ator. Tomei também o contramestre, que é o ajudante, e o Mateus, que denomino palhaço Serelepe. O Mateus é um personagem que migrou do bumba-meu-boi. No mamulengo ele chama Mateus e no Teatro João Redondo recebe o nome de Arrelinquim. Essa estrutura básica eu recheei com elementos da nossa cultura regional, elementos das cavalhadas, da congada, da catira. Qual foi o resultado? Deu num formato de teatro de bonecos que denominei "Mane Beiçudo". Neste formato de teatro, a platéia é convidada a estender sua participação, passando do espetáculo teatral para o espetáculo real. Nos anos 70 eu era um sonhador inveterado, um idealista juramentado. Queria mudar o mundo, derrotar a ditadura, levar justiça e felicidade aos excluídos com meu teatro. Saía ministrando cursos de teatro nos bairros, na periferia, nas escolas. Pegava minha empanada, meus bonecos e apresentava nos terminais rodoviários, nas feiras livres, nas escolas, onde conseguisse reunir pessoas. Devido à irreverência de meus bonecos, nos anos de chumbo corri da polícia em Araguaína, Gurupi, Dourados, Cuiabá... Ensinava as comunidades a fazer os bonecos, a manipular, a estruturar grupos... Foi muito bom.

E a censura?

Na época os grupos e os artistas só podiam se apresentar se portassem o Alvará de Liberação do Serviço de Censura do DPF, o Departamento de Polícia Federal. Vejam que coisa. A Polícia Federal, a mesma que tem a atribuição de combater o contrabando, o tráfico de entorpecentes, recebeu também a missão de "zelar" pela cultura. Ela tinha o poder de permitir ou não as apresentações teatrais. Teve um ano em que tive quatro peças teatrais integralmente vetadas. Então passamos a apresentar às escondidas. Veja se pode?! Fizemos muito isso nas feiras livres. A gente chegava de mansinho, como quem não queria nada, armava a empanada no meio do povo, das bancas de verdura, e fazíamos a apresentação. Mal terminava, a gente fazia a praça, recolhia o dinheiro da platéia, e rapidamente, nos dispersávamos no meio do povo. Eram tempos difíceis.

Por que o Teatro de Bonecos, muitas vezes, é visto e tratado como uma "arte menor" restrita ao público infantil?

Os mamulengueiros chamam os bonecos de brinquedos. Quando vão se apresentar, dizem que vão fazer uma brincadeira. Décadas atrás, havia no Nordeste apresentações que duravam até sete, oito horas ininterruptas, com o mestre se revezando com o contramestre. Quando as horas avançavam e as crianças e as mulheres se recolhiam para dormir, aí o pau cantava. Era só sacanagem. Quem nunca viu, não consegue imaginar o quão engraçado é um boneco fazendo besteira e dizendo sacanagem. Dependendo da hora, o teatro mamulengo pode ser destinado às crianças ou aos adultos. Portanto essa "restrição ao público infantil" existe apenas parcialmente no teatro popular de bonecos. Já no teatro que se faz por aqui, atualmente, talvez isto decorra de, na maior parte das vezes, o teatro de bonecos estar confinado ao universo infantil. E nossa sociedade tende a menosprezar o que é infantil, desdenhar a riqueza que emerge desse mundo peculiar. Como a infância é uma fase transitória de nossa existência, parte-se do pressuposto de que o que é transitório é efêmero, apenas uma passagem, uma ponte. Isto tem um impacto negativo profundo na própria educação de nossas crianças. O teatro de bonecos feito por e para adultos encontra este tipo de incompreensão. Mas aqui talvez o fato determinante seja a vinculação umbilical com a cultura popular. E as elites têm a tendência de vincular o popular ao que é folclore, ao que é tradição; e se é folclórico e tradicional, se lembra o Zé povinho, então deve merecer o visceral combate. Infelizmente é assim que pensam.

Como os bonecos são feitos?

O boneco mamulengo é feito artesanalmente, quase sempre de madeira. Utilizam muito o mulungu, a umburana e a carrapateira. Vez por outra aparece algum boneco de pano, de cabaça, e mesmo de papier-mâché. No meu teatro de bonecos, o "Mane Beiçudo", utilizo todas as técnicas construtivas, mas principalmente a sucata. Foi uma forma de aproveitar um tipo de material que se encontra aos montes. Solicitava que as pessoas trouxessem o que quisessem, e nas oficinas montávamos os bonecos de luva e de vareta.

Como é que nasce um espetáculo?

Depende muito da proposta de trabalho. Mas invariavelmente, um espetáculo teatral nasce da observação e re-elaboração de um conflito social. O conflito é a alma, a espinha dorsal do teatro, de uma apresentação, de um espetáculo teatral. Ainda que não esteja aparente, é o conflito que dá liga e formato ao teatro.

E cada espetáculo é um processo diferente ou é sempre mais ou menos o mesmo?

Os espetáculos são mais ou menos como as pessoas. Não poderia ser de outra forma, já que o teatro é uma das mais profundas manifestações da humanidade. Somos milhões no mundo. E cada pessoa que chega, cada um que nasce é um ser único, exclusivo, singular. É um sujeito plenamente identificável. Isso apesar das inúmeras características físicas e psico-sociais que a humanidade mantém em comum. Também um espetáculo é assim. Dez grupos diferentes montarão um mesmo texto de dez formas diferentes. Por que são diferentes as leituras, são diferentes as visões, são diferentes as abordagens, são diferentes os valores individuais e coletivos, são diferentes e em variados graus os conflitos enfocados. A não ser que tenhamos a cópia pela cópia, a cópia servil que não leva a nada, que nada constrói e que por isso, nada tem a ver com teatro, pelo menos com o Teatro Mané Beiçudo.

Quais os tipos e bonecos existentes no Teatro brasileiro?

O teatro de bonecos é uma linguagem universal. Os existentes no Brasil são os mesmos existentes em todas as partes do planeta. Diferenciam os contextos, é claro. É como a linguagem oral ou a linguagem escrita. Cada povo tem um conjunto específico de símbolos e sinais, mas todos têm os seus. Existem os bonecos de luva, de vara, as marionetes, fantoches, ventríloquos, o teatro de bonecos de sombras, o teatro negro ... Quanto à estrutura de construção temos os de madeira, de massa de papel, de pano, de isopor, de sucata, de cabaça ...Uma infinidade indescritível de formatos e materiais. Uma vez, numa oficina que ministrava em São Paulo, coloquei os alunos para construir bonecos utilizando tão somente tinta e tampas de panela. Foi ótimo. Para um bonequeiro, um titeriteiro-construtor, o céu é o limite.

O público no teatro pode influenciar na interpretação do titeriteiro?

Cada caso é um caso. Existem propostas que praticamente ignoram o público. O público é computado como um número no borderô. As pessoas são contabilizadas como meras compradoras de ingresso. Já outras propostas, a maioria delas derivadas do teatro popular de bonecos, têm na interação com a platéia a coluna de sustentação do espetáculo, a coluna dorsal, a coluna mestra. A apresentação será tão mais exitosa quanto maior for a participação do público. Por isso, nesse tipo de proposta, o boneco provoca, atiça, estimula a platéia a participar do espetáculo.

Quais são seus atuais projetos no teatro?

Avalio estar vivendo um período importante de meu trabalho. Acabo de sistematizar tudo o que ensinei e aprendi nesses anos todos, e formatei tudo isso no teatro que denominei Mané Beiçudo. A primeira etapa deste trabalho ocorreu com o lançamento de minha coleção de teatro, em 37 volumes. São sete volumes com teoria, exercícios e laboratórios teatrais e mais 30 volumes de dramaturgia. São trinta e uma peças teatrais, sendo que dez delas abordam 19 lendas do folclore regional, indígena e brasileiro. Depois lancei o trabalho “Educação, Teatro & Folclore”, em que mergulho no universo do nosso patrimônio imaterial, interagindo esses valores com o teatro. Neste instante, fecho a trilogia com o lançamento do “Teatro de Bonecos Mane Beiçudo”, coroando todo este processo. Agora é intensificar as palestras, cursos, oficinas e apresentações, divulgando a tecnologia e o arranjo produtivo.

Fale um pouco mais sobre o Teatro Mané Beiçudo.

É uma proposta de teatro, só isso. Nada que seja ou pareça pretensioso, mas uma proposta que procura estabelecer uma estreita sintonia, uma interação aguda entre teatro, educação e cidadania. O que não é nada demais porque isso já é da essência do teatro. Mas digamos que eu esteja fazendo uma nova leitura, colocando esses paradigmas sob um novo contexto. Parto da premissa que o teatro pode ser feito por todos. Isso significa disponibilizar um referencial teórico que torne o exercício teatral uma realidade para estudantes, trabalhadores, donas de casa, camponeses, crianças e juventude... Quero disponibilizar as ferramentas, as técnicas, as metodologias, mas de tal forma que o contexto, a inserção e a reflexão social estejam presentes. Isso ajudará a agregar qualidade às produções, mas não é só isso. Trata-se também de estabelecer uma linguagem que tenha a ver conosco, com a nossa alma, com a nossa identidade. Algo que nos ancore em nossa localidade, em nossa cultura, sem naturalmente romper os vínculos com o planeta, com o mundo globalizado.

Estar sintonizado com a rua, com o bairro e ao mesmo tempo com Moscou e Paris, é isso?

É isso. O Teatro Mané Beiçudo é um teatro que diverte, fundamentalmente. Um teatro que faz rir, que dá prazer, que entretém. Mas também que convida à reflexão, que leva o espectador a estabelecer relações de causa e efeito. Um teatro simples, singelo, lúdico e onírico, mas contundente e que pode cortar como navalha afiada. Outro aspecto importante é que o Teatro Mane Beiçudo interage de uma maneira especial com o público, faz com que a platéia se sinta protagonista da estória. E a leva a refletir sobre a importância de também se posicionar como protagonista da história.

E qual a razão deste nome, Mane Beiçudo?

Mane Beiçudo é um boneco que criei no final dos anos 60, e que caiu nas graças do povo. Tem a aparência diferente, com um beiço enorme, desproporcional. A questão da aparência nos faz refletir sobre o que vemos no plano externo, sobre o que é considerado belo e perfeito, e o que a sociedade convenciona como feio e repulsivo. Nos faz refletir sobre a importância das diferenças, que todos devem ser respeitados e ter o seu espaço, que é exatamente a diversidade que torna a sociedade interessante, rica, heterogeniamente produtiva. O que separa o feio do bonito, o perfeito do imperfeito, o correto do incorreto é uma linha tênue. Galileu Galilei quase foi parar na fogueira do Santo Ofício por defender a teoria correta. Os Beatles receberam um categórico “não” do primeiro produtor. Albert Einstain foi recriminado por seu professor de matemática, que chegou a afirmar que não alcançaria nada na vida. Raul Seixas teve que gravar seu primeiro disco escondido de seu chefe, e por isto foi sumariamente demitido da gravadora em que trabalhava. O Mane Beiçudo, com sua aparência fora do normal questiona tudo isso. É também um boneco negro, cabelo de bombril, uma homenagem que faço às nossas origens africanas. E também um ato de solidariedade às vitimas de preconceito racial. Mas o boneco é, sobretudo, valente e destemido, alto astral, positivo, tipo aquele sujeito que, recebendo o limão, o transforma numa saborosa limonada, entede? Por isto encanta tanto a platéia. Este boneco, mais que qualquer outro signo ou referência, expressa a filosofia de minha escola de teatro. Daí o nome.

Quantas peças o senhor já escreveu?

Centenas. Escrevo para teatro desde a adolescência. Existem peças minhas que já foram montadas por grupos de todas as regiões do Brasil. Nos anos 70, adquiri o hábito de publicar peças em pequenos livretos. Saia vendendo Brasil afora, sobretudo nas Mostras e Festivais nacionais de teatro. Acabou dando certo. Interrompi por alguns anos esse processo de publicação. Estou retomando agora a publicação de minhas obras.

Na sua metodologia, o senhor explora o conceito de que o teatro é a confluência das demais manifestações artísticas.

O teatro é o espaço onde todas as manifestações artísticas se encontram: a pintura, a escultura, as artes plásticas e a arquitetura através da cenografia, a música, a dança... A literatura chega ao teatro através da dramaturgia. No teatro utilizamos a língua falada, que surgiu muito antes da língua escrita. Apesar de todo o aperfeiçoamento verificado ao longo da história da humanidade, a língua escrita jamais conseguirá se apropriar de todas as variações da entonação, por exemplo. Ou das alterações que um gesto ensaiado pode emprestar a uma palavra. Um olhar mais intenso, um gesto com as mãos, a linguagem corporal de um ator experiente, tudo isso pode expressar significados que a língua escrita jamais alcançará. Por isso traduzir todo esse universo confinando-o num texto é um desafio que exige habilidade e um conjunto de técnicas apropriadas. Um bom texto sempre possibilitará que o ator se expresse com maior intensidade. Tem que ser assim porque o ator é na realidade o nosso emissor. Ao dramaturgo cabe estabelecer códigos que possibilitem que a mensagem chegue cristalina à platéia, ao receptor.

É possível viver de teatro fora do eixo Rio - São Paulo?

Mesmo no eixão está quase impossível viver de teatro. Os artistas acabam tendo que se envolver em outros ramos de atividade para assegurar a sobrevivência. Todos nós tínhamos grande expectativa quanto às realizações de apoio cultural de um governo inovador, como o que se propôs na campanha eleitoral o governo Lula. Mas até agora, as coisas ainda não aconteceram. Em nível das localidades, o que tem ocorrido em termos de políticas públicas de fomento à cultura beira à mediocridade. A não ser Curitiba, que com seu festival nacional tem feito a diferença.

Como terminaria essa entrevista?

Talvez enfatizando que o teatro deva dar prazer. Em A Megera Domada, Shakespeare escreve: "onde não há prazer, não há proveito". Concluiria também convidando o leitor a saborear o Teatro de Bonecos mané Beiçudo.