quarta-feira, 27 de novembro de 2024

"O desterro, a conquista", o conto literário.


   Bezerra da Silva já não suportava o mormaço e a visão de sempre, a mesma paisagem amorfa e insossa das paredes encardidas do quarto insalubre em Tijuana. Estava ali havia uma semana, recluso, prisioneiro de seus projetos e aspirações. Sete dias sem arredar pé, sem sair do quarto sequer para uma ligeira refeição. Nem a janela permitiram abrir, de modo que o sol virou efemeridade e o ar, recluso como ele, sem fresta para renovar, se tornara viciado, intragável, doentio.

   No cortiço em que se empilhavam dezenas de minúsculos quartos mal cabia a cama de solteiro. Nos cubículos se amontoavam pelo menos outros cem brasileiros, todos aguardando dia e hora em que seriam levados à tão sonhada fronteira.


   Enquanto o comando não era dado os dias transcorriam modorrentos. Nada oprimia mais que a infindável espera. Nada a fazer senão aguardar, esperar; aguardar e esperar, cadenciando a respiração para que a aflição e o desespero não resvalassem para a loucura. Às vezes o ímpeto era arrombar a porta e sair rua afora, correndo, se embebedando da mais inebriante liberdade, se embriagando com os raios do sol e as rajadas de brisa fresca. Mas a lembrança de tudo o que ficou para trás os recompunham aos olhos da sensatez e da prudência. Diziam da polícia e dos traficantes mexicanos horrores maiores que os que pairavam sobre a guarda de fronteira norte-americana. Então, o bom senso recomendava quietude, determinava a paciência ilimitada dos monges tibetanos. 

- Vó, vou fazer um pedido que envergonha, mas tenho que fazer – falou Bezerra da Silva num só fôlego para não perder a coragem, e completou antes que a última poção de ar lhe escapasse do pulmão. – Preciso que a vó venda o lote pra passagem, tenho que comprar a de ida e a de volta, é assim que funciona.


   Desde a decisão de partir para os Estados Unidos, Bezerra da Silva iniciara uma obstinada poupança de recursos. Economizava tudo o que fosse possível guardando até mesmo as ninharias e menores moedas. Rompeu o namoro com Brigit, a francesinha que sequestrara seu coração; afastou-se dos amigos e de tudo que gerasse gasto, qualquer despesa. Passou a viver como um urso hibernando, economizando todos os centavos, toda a energia. Fazia até oito biscates por dia, e três horas por noite era o máximo que se permitia dormir. Trabalhou de garçom, segurança de boate, porteiro de hotéis baratos, guarda noite de espeluncas, lavador de pratos, personal trainer, guia de cegos, malabarista de sinaleiro, fazendo o que de honesto lhe rendesse alguns trocados. Vendeu sua coleção de gibis, depois a de CD’s e finalmente a de 387 DVD’s. Por fim vendeu a guitarra Fender, o único patrimônio que restara e que de fato importava.

   Da mãe solicitou que vendesse a aliança de diamantes, presente dos trinta anos de casamento. Do pai obteve o dinheiro da venda de um relógio Tissot, herança que nas sucessivas gerações passava de pai para filho. Até que reuniu forças para incomodar a avó, sempre solidária, sempre atenciosa. Chorou antes, no instante, e após solicitar que vendesse o único patrimônio herdado do avô Ciríaco. A idosa matriarca, sem dizer palavra, foi até o quarto e de lá veio com a escritura do terreno.

- Enxugue essas lágrimas, Bezerrinha; estava mesmo guardando esse lote para você – disse, acossada pela idade, mas satisfeita por poder ser útil e auxiliar o amado neto na materialização dos sonhos.


   O primeiro contato com o coiote se revestiu das piores impressões. O mexicano compunha a perfeita caricatura do bandido dos velhos filmes de faroeste. Franzino, sem os dentes da boca, perneta, e uma enorme cicatriz acima do supercílio direito. Ostentava na cabeça um lenço de pirata com a imagem de Che Guevara. Sem abrir a porta do quarto, falou do lado de fora. – Prepare-se que chegou a hora, e não esqueça que minha obrigação é só impedir que se percam no deserto – então deu o comando tão ansiosamente esperado. – Vamos embora.

   Bezerra da Silva e quatro outros brasileiros desconhecidos foram embarcados numa Pajero preta e rumaram rápida e discretamente para a fronteira. O silêncio imposto permitia escutar a cadência acelerada de cada um dos corações ali expostos. Todos pura aflição. A ansiedade teria sido melhor tolerada se o coiote tivesse permitido que conversassem entre si, que trocassem impressões, compartilhassem os sonhos e expectativas, que desabafassem sobre a nova vida em que se aventuravam. Mas só permitiram respirar. E se tivessem encontrado forma de mantê-los vivos independentes do oxigênio, teriam exigido que também parassem de respirar. O silêncio foi quebrado pelo coiote que mais uma vez lançou mão de um portunhol quase indecifrável.

- Quem parar de caminhar fica para trás - e prosseguiu após uma pausa que pareceu eterna. - Se a polícia aparecer eu desapareço como um gavião e vocês vão direto para a cadeia.

   Bezerra fizera todo o segundo grau na melhor e mais cara escola do Recife. O pai, economista há seis anos desempregado, vivia de bicos e biscates, movendo mundos e fundos para assegurar que as prestações da escola do filho permanecessem em dia. A mãe batia perna pelas repartições públicas vendendo, aos servidores, empréstimos consignados em folha de pagamento. De modo que quando bombou no primeiro exame vestibular para medicina os nervos caíram em polvorosa, crise aguda, e foi parar na Santa Casa de Misericórdia.         

   Na semana em que permaneceu internado, dividiu o quarto com Freitas Nobre, outro pernambucano que acabara de retornar dos Estados Unidos. Nobre caiu com doze outros durante a travessia do deserto e permaneceu por três anos preso em Boston. Deportado, saiu da cadeia para o aeroporto onde embarcou para a viagem - sem escalas - de retorno ao Brasil.


   Foi na semana em que se recuperava do retumbante fracasso no vestibular que Silva incutiu na cabeça que deveria fazer a vida nas terras do tio San. E nos dois anos seguintes passou como um ermitão, isolado de todos, com a única preocupação de poupar e angariar o dinheiro que materializaria o sonho. (Para ler o conto completo, clique aqui).


Para saber mais, clique na figura

Dramaturgo, o autor transferiu para seus contos literários toda a criatividade, intensidade e dramaticidade intrínsecas à arte teatral. 

São vinte contos retratando temáticas históricas e contemporâneas que, permeando nosso imaginário e dia a dia, impactam a alma humana em sua inesgotável aspiração por guarida, conforto e respostas. 

Os contos: 
1. Tiradentes, o mazombo 
2. Nossa Senhora e seu dia de cão 
3. Sobre o olhar angelical – o dia em que Fidel fuzilou Guevara 
4. O lugar de coração partido 
5. O santo sudário 
6. Quando o homem engole a lua 
7. Anos de intensa dor e martírio 
8. Toshiko Shinai, a bela samurai nos quilombos do cerrado brasileiro 
9. O desterro, a conquista 
10. Como se repudia o asco 
11. O ladrão de sonhos alheios 
12. A máquina de moer carne 
13. O santuário dos skinheads 
14. A sorte lançada 
15. O mensageiro do diabo 
16. Michelle ou a Bomba F 
17. A dor que nem os espíritos suportam 
18. O estupro 
19. A hora 
20. As camas de cimento nu 

OUTRAS OBRAS DO AUTOR QUE O LEITOR ENCONTRA NAS LIVRARIAS amazon.com.br: 

A – LIVROS INFANTO-JUVENIS: 
Livro 1. As 100 mais belas fábulas da humanidade 

I – Coleção Educação, Teatro & Folclore (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. O coronel e o juízo final 
Livro 2. A noite do terror 
Livro 3. Lobisomem – O homem-lobo roqueiro  
Livro 4. Cobra Honorato 
Livro 5. A Mula sem cabeça 
Livro 6. Iara, a mãe d’água 
Livro 7. Caipora 
Livro 8. O Negrinho Pastoreiro 
Livro 9. Romãozinho, o fogo fátuo 
Livro 10. Saci Pererê 

II – Coleção Infantil (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. Não é melhor saber dividir 
Livro 2. Eu compro, tu compras, ele compra 
Livro 3. A cigarra e as formiguinhas 
Livro 4. A lebre e a tartaruga 
Livro 5. O galo e a raposa 
Livro 6. Todas as cores são legais 
Livro 7. Verde que te quero verde 
Livro 8. Como é bom ser diferente 
Livro 9. O bruxo Esculfield do castelo de Chamberleim 
Livro 10. Quem vai querer a nova escola 

III – Coleção Educação, Teatro & Democracia (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. A bruxa chegou... pequem a bruxa 
Livro 2. Carrossel azul 
Livro 3. Quem tenta agradar todo mundo não agrada ninguém 
Livro 4. O dia em que o mundo apagou 

IV – Coleção Educação, Teatro & História (peças teatrais juvenis): 
Livro 1. Todo dia é dia de independência 
Livro 2. Todo dia é dia de consciência negra 
Livro 3. Todo dia é dia de meio ambiente 
Livro 4. Todo dia é dia de índio 

V – Coleção Teatro Greco-romano (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. O mito de Sísifo 
Livro 2. O mito de Midas 
Livro 3. A Caixa de Pandora 
Livro 4. O mito de Édipo. 

B - TEORIA TEATRAL, DRAMATURGIA E OUTROS
VI – ThM-Theater Movement: 
Livro 1. O teatro popular de bonecos Mané Beiçudo: 1.385 exercícios e laboratórios de teatro 
Livro 2. 555 exercícios, jogos e laboratórios para aprimorar a redação da peça teatral: a arte da dramaturgia 
Livro 3. Amor de elefante 
Livro 4. Gravata vermelha 
Livro 5. Santa Dica de Goiás 
Livro 6. Quando o homem engole a lua