quarta-feira, 23 de maio de 2018

Como morre um museu


Os portões fechados e a faixa “vende-se” diante do casarão de número 561 da Rua Cosme Velho, na Zona Sul do Rio de Janeiro, não deixam dúvidas sobre a situação atual do Museu Internacional de Arte Naïf (Mian). As paredes em seu interior, contudo, continuam a exibir o painel Brasil, cinco séculos de luta, de Aparecida Azedo, com seus 24 metros de comprimento, e obras de nomes fundamentais da produção naïf, como os cariocas Heitor dos Prazeres e Lia Mittarakis, o português Cardosinho e o alagoano Miranda.

Filha do fundador do museu, o joalheiro francês radicado no Rio Lucien Finkelstein (1931-2008), a museóloga Jacqueline Finkelstein vai semanalmente ao casarão para resolver questões administrativas, receber pesquisadores e fazer o mínimo necessário para a manutenção das cerca de 6 mil obras do museu, feitas por artistas de 120 países, que o pai colecionou durante a vida — a maioria mantida na reserva técnica da instituição, abrigada em um cômodo anexo à sala reservada à administração.

De vez em quando, Finkelstein é surpreendida pelo interesse que o museu ainda desperta, mesmo depois de ter fechado as portas há mais de um ano. Recentemente, um pintor naïf croata enviou uma obra como doação ao Mian. “Nós avisamos a instituições de todo o mundo sobre o encerramento das atividades, mas muitos artistas não ficaram sabendo. Como o museu era uma referência internacional, eles continuam nos procurando, mas não temos o que fazer neste momento”, disse Finkelstein.

Mesmo fechado, o museu gera uma despesa mensal de cerca de R$ 6 mil à família, o que inclui gastos com segurança, luz, contabilidade, além das despesas com a auditoria da Fundação Lucien Finkelstein, criada pelo patriarca em 1985 já com vistas à abertura de um museu. Diante da falta de recursos para a contratação de técnicos em conservação, o trabalho de manutenção das obras se limita à retirada do pó, ao controle de pragas como traças e cupins e ao uso de um desumidificador. “É muito difícil manter uma coleção desse tamanho, ainda mais em uma cidade como o Rio, onde as obras sofrem com o calor e a umidade, além da poluição que vem da rua. Felizmente, a maioria dos trabalhos foi feita em eucatex e outros materiais mais resistentes. Se fossem só telas, seria mais complicado”, afirmou.

Após o fechamento, a família colocou à venda o casarão que sediava o museu por R$ 4 milhões, mas até agora não recebeu propostas nesse valor. A casa ao lado, comprada para um projeto que ampliaria a área expositiva e incluiria um bistrô e uma biblioteca — que não avançou por causa da avaliação da prefeitura de que seria um espaço comercial em uma região residencial — também está à venda, por R$ 2 milhões. Caso o imóvel do museu seja negociado, a coleção seria levada para outra propriedade da família.

A trajetória do Mian — que, antes de encerrar suas atividades em definitivo, já havia fechado entre 2007 e 2011 — é um exemplo do que pode acontecer a um museu quando se juntam fatores como cortes orçamentários nas pastas de Cultura, descontinuidade de projetos públicos, dificuldade de conseguir patrocínios privados e ausência de integração entre instituições. No caso do Rio, tudo pode piorar ainda mais por causa do aumento da violência, que afasta turistas mesmo numa das áreas mais visitadas da cidade, ao lado da estação do Trem do Corcovado.

Esse foi o mesmo destino de outras dez outras instituições cariocas desde 2015, ano em que o Museus BR, plataforma do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), começou a mapear os espaços. Dos 153 centros culturais da capital fluminense cadastrados atualmente no site, nove estão fechados e um foi extinto (Casa Daros, em Botafogo). Para o presidente do Ibram, Marcelo Araújo, a crise econômica que o país atravessou foi um dos fatores preponderantes para o fechamento do Mian e de outras instituições brasileiras. “A questão da sustentabilidade das instituições, principalmente as privadas, hoje em dia é um dos maiores desafios e deve ser pensada a médio e longo prazos, de maneira a buscar soluções que assegurem o funcionamento dessas organizações, mesmo em períodos de crise econômica, que invariavelmente determinam reduções de patrocínios e de orçamentos públicos”, disse Araújo.

No ano da morte de Lucien Finkelstein, em 2008, o Mian enfrentava a primeira de suas grandes crises. A instituição perdera, no ano anterior, um repasse anual da prefeitura que garantia uma média mensal de R$ 16 mil ao museu, o que não cobria todos os custos, mas possibilitava seu funcionamento. Sem esse valor, Jacqueline, então diretora do Mian, decidiu fechar as portas pela primeira vez. Em 2011, sua filha, Tatiana Levy, assumiu o museu com a proposta de modernizá-lo, investindo num programa educativo voltado a escolas públicas e privadas. Reaberto em 2012, o espaço viu seu público crescer. Até então, a visitação, que ficava entre 10 mil e 12 mil pessoas ao ano, chegou a mais de 21 mil em 2015. Em 2016, quando fechou as portas, recebeu quase 17 mil visitantes.

Jacqueline calculou que seria necessário um orçamento de R$ 40 mil mensais para manter o museu funcionando, incluídos nesse montante custos com pessoal, segurança, manutenção e despesas operacionais. Entre 2012 e 2016, além dos projetos inscritos nas leis de incentivo, o Mian buscava arrecadação em múltiplas fontes, como os direitos de cessão de imagem, o arrendamento do espaço do café, as vendas da loja, a organização de eventos e a bilheteria, que respondia por 20% do faturamento.

Após encerrar em outubro a exposição Jogando com as cores naïf, que reuniu 160 obras de 30 artistas brasileiros, aproveitando o mote dos Jogos Olímpicos do Rio, não havia nenhuma perspectiva de um novo projeto capaz de manter a instituição funcionando. “Já contávamos com uma equipe enxuta, mas ainda assim não teríamos como fechar a folha de pagamento nos próximos meses”, comentou Jacqueline. “Trabalhávamos por projeto e, quando o anterior terminava, precisávamos começar tudo do zero no edital seguinte. A crise econômica e política atingiu diretamente o setor. Ainda pensei em manter o museu aberto até o início de 2017, para tentar novas possibilidades de patrocínio, mas meus filhos me convenceram de que não adiantava mais nadar contra a corrente. E foi a melhor coisa que eles fizeram, porque eu já estava criando dívidas para sustentar o museu. Seria um buraco sem fundo, que acabaria comprometendo o patrimônio da família.”

Fruto da paixão de Lucien Finkelstein, que viajava por todo o país e pelo exterior à procura de obras do gênero, o Museu Internacional de Arte Naïf foi inaugurado em 1995, um ano após o colecionador adquirir o casarão que viria a sediá-lo. A essa altura, a coleção já havia sido exposta em outras instituições, como o Paço Imperial, em 1988, e era considerada uma referência importante no estilo, comparada aos acervos de instituições como a alemã Charlotte Zander, em Bönnigheim; o Museu Croata de Arte Naïf, em Zagreb; e os franceses Museu Internacional de Arte Naïf Anatole Jakovsky, em Nice, o Museu de Arte Moderna de Lille (LAM) e o Musée d’Art Naïf et d’Arts Singuliers, em Laval, cidade natal de Henri Rousseau (1844-1910), considerado o pai do estilo.

A palavra naïf (ingênuo, em francês) passou a designar a produção espontânea de artistas geralmente de origem humilde e sem formação tradicional, que se expressam por meio de cores e formas que fogem aos padrões acadêmicos. Também eram chamados de primitivos, mas esse termo vem caindo em desuso diante da valorização de obras de nomes como Heitor dos Prazeres, José Antonio da Silva, Miranda e Maria Auxiliadora — a última atualmente com 70 obras expostas no Masp na retrospectiva Vida cotidiana e resistência, em cartaz até junho.

“Acredito que essa mudança de olhar sobre a obra dos naïfs seja uma tendência irreversível, sobretudo no Brasil, um país que tem uma produção incrível, com muitos nomes de peso”, ressaltou o franco-belga radicado no Brasil Jacques Ardies, que mantém em São Paulo há quase quatro décadas a galeria que leva seu nome, referência no estilo. “Os naïfs brasileiros são muito reconhecidos no exterior, muitas vezes até mais que em seu próprio país. É a arte que melhor expressa o sentimento de um povo, por isso atrai tanta atenção. Nesse sentido, o fechamento do Mian é uma enorme perda, um museu particular que tinha um custo muito baixo se comparado a outras instituições públicas. O Lucien poderia ter feito qualquer coisa na vida, mas achava que devia isso à cidade que o acolheu e investiu até o fim nesse sonho, que depois foi encampado pela filha e pela neta.”

Atualmente, Jacqueline tenta extinguir a Fundação Lucien Finkelstein, para depois decidir o destino das obras que estão em nome da instituição (entre 600 e 700) e as demais, que pertencem à coleção particular da família. “Estou há dois anos tentando encerrar a fundação, que também gera despesas. Tem de pagar auditor, prestar contas, é complicadíssimo. Depois, pretendo direcionar as obras que pertencem a ela, e são patrimônio público, a alguma instituição. Já estou conversando com alguns diretores de museu e com o Ibram”, contou Jacqueline. “Aí vejo o que fazer com as outras 5 mil e tantas obras da coleção da família. É difícil acomodar fora do museu porque o papai não comprava só arte naïf, ele colecionava tudo o que se pode imaginar, de arte romana a indígena.”

Enquanto circula pelos cômodos do antigo museu, Jacqueline sonha em manter juntas as principais obras da coleção, se possível no casarão comprado pelo pai. “Estou aberta a qualquer tipo de negociação. O ideal é que uma instituição demonstre interesse em manter o museu, aí eu poderia fechar um aluguel básico e ceder a coleção em comodato. Esse acervo é um patrimônio brasileiro, reconhecido em todo o mundo, seria uma pena se fosse desfeito.”
Por Nelson Gobbi, na revista Época

Teatro completo