Bombeiro participa da desinfecção de um asilo geriátrico na província espanhola de Teruel.ANTONIO GARCIA / EFE |
Provas do contágio através de superfícies e a utilidade das nebulizações estão sendo questionadas, mas muitos recursos ainda são gastos em medidas que oferecem uma falsa sensação de segurança
O Governo dos Estados Unidos decidiu fumigar a Casa
Branca depois da saída de Donald Trump. Assim, horas antes de Joe Biden entrar
na residência presidencial, uma equipe de funcionários se dedicou a aspergir
desinfetante em todos os cômodos. Na semana passada, os britânicos viram seu
primeiro-ministro, Boris Johnson, empenhar-se a fundo em limpar o assento de
uma cadeira. Um ano depois de um novo coronavírus deixar o mundo de joelhos,
muitas são as medidas tomadas só para agradar à plateia. É o “teatro da
pandemia”, como definiu em abril de 2020 a pesquisadora Zeynep Tufekci num
artigo em que criticava ações inúteis e até contraproducentes, como fechar
parques.
Naquelas primeiras semanas de crise sanitária, as
provas científicas ainda estavam começando a ser reunidas. Algumas eram
contraditórias. Escandalizavam as fotos de famílias em jardins e passeios, os
lugares mais seguros. Circulavam pelos celulares tabelas detalhando quanto
tempo o coronavírus seria capaz de aguentar em determinadas superfícies.
Recomendava-se limpar os sapatos, as compras e inclusive a roupa ao voltar da
rua. Mas já faz meses que sabemos que não é necessário tanto esforço. “Eu
deixei de ver evidências convincentes faz muito tempo, e deixei de fazer isso”,
conta a virologista Margarita del Val sobre o empenho em esfregar tudo que vem
da rua. As possibilidades de contágio por superfícies ―ou fômites, no jargão
médico― são escassas. O Centro Europeu de Controle de Doenças (ECDC, na sigla
em inglês), faz o seguinte esclarecimento: “Considera-se possível ―embora até o
momento não tenha sido documentada― a transmissão através de fômites”. Os CDCs,
seu equivalente norte-americano, informam que “não se acredita que a propagação
através do contato com superfícies poluídas seja uma forma comum de propagação
da covid-19”.
Mais de 100 milhões de contágios depois, não há como
provar que alguém tenha sido infectado ao tocar uma superfície contaminada.
“Depois de um ano de pandemia, as provas atualmente são claras. O coronavírus
SARS-CoV-2 se transmite predominantemente através do ar, por pessoas que falam
e exalam gotas grandes e pequenas partículas chamadas aerossóis”, concluiu a
revista científica Nature em um editorial. O mesmo texto lamentava que algumas
autoridades insistam na desinfecção permanente de superfícies: “O resultado é
uma mensagem pública confusa, quando é necessário um guia claro sobre como
priorizar os esforços para prevenir a propagação do vírus”. Isso não significa
que deixaremos de lavar as mãos e usar álcool em gel nas lojas, porque o
contato direto é uma via possível de contágio. Mas não é necessário concentrar
esforços em desinfetar embalagens de leite ou paredes de edifícios que ninguém
tocará.
Del Val, diretora da plataforma do CSIC (agência
científica espanhola) para a covid-19, se concentra na vertente psicológica do
problema: “Muita gente tem como seguir no máximo duas medidas em seu cotidiano,
sendo que uma é usar máscara, e a outra é limpar tudo ou manter distância, e
não nos cabe ventilar mais do que isso”. Elvis García, sanitarista da
Universidade Harvard, considera que o problema com o “teatro da higiene” é que
“é fácil de entender, intuitivo e fácil de atacar”. E acrescenta: “A questão das
partículas e das máscaras é mais difícil de entender”.
Já em suas recomendações de março de 2020, o ECDC só
aconselhava limpar pontos especialmente manuseados, como maçanetas,
interruptores, corrimãos e botões de elevador, enquanto nas ruas da Espanha o
Exército já fumigava bancos e calçadas ao ar livre. A cientista Teresa Moreno,
do IDAEA (Instituto de Avaliação Ambiental e Pesquisa Hídrica, na sigla em
inglês, um órgão do CSIC espanhol), analisou a presença do coronavírus nas
barras e botões do metrô e dos ônibus de Barcelona nos meses de maio e junho.
“Naquele momento, as pessoas achavam que o contágio se dava mais por
superfícies”, recorda. O mesmo trabalho também colheu amostras do ar, o que é a
sua especialidade. Os pesquisadores encontraram traços do vírus em ambos os
elementos, mas se tratava de fragmentos sem capacidade de contágio. “No ar
encontramos níveis baixos, e era de quando as pessoas não usavam máscara, por
isso não parece um foco de infecção; eu uso o transporte público e não sinto
que esteja em um lugar perigoso”, observa Moreno.
O mais interessante é que havia veículos que a empresa
pública de transportes de Barcelona limpava com água sanitária, enquanto outros
eram fumigados com ozônio. Os desinfetados com um pano e água sanitária ficavam
livres de rastros do vírus, o que não era o caso dos ônibus vaporizados. “Vimos
que com os canhões de ozônio era muito difícil que se espalhasse por todo o
veículo. Em concentrações baixas, o ozônio não faz nada, continuávamos
encontrando traços. E em concentrações altíssimas ele não é viável, porque é
muito tóxico”, diz a cientista. “Estou preocupada com os artefatos que estão
sendo oferecidos agora, porque são muito tóxicos, reagem com os materiais e
prejudicam a saúde”, adverte. Del Val aponta: “Não está nada claro que
funcionem, e em todo caso é preciso ventilar ao acabar, pela toxicidade para as
mucosas: então ventile bem e já está tudo certo”.
As autoridades sanitárias são claras nesse aspecto. O
ECDC assinala que “a pulverização [também denominada fumigação] de
desinfetantes ao ar livre ou em grandes superfícies interiores (auditórios,
salas de aula e edifícios), assim como o uso de radiação de luz ultravioleta,
não é recomendada para a população devido à falta de eficácia, possíveis danos
ambientais e a possível exposição dos seres humanos a produtos químicos
irritantes”. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também se opõe claramente ao
uso de sprays, por serem inúteis e perigosos, em ambientes e também em pessoas
―como nos túneis de lavagem que nebulizam produtos antes do acesso a
determinados ambientes.
Em um site dedicado a desmentir mitos da pandemia, a
OMS também esclarece que as possibilidades de contágio pelos sapatos é “muito
baixa” e que o uso de termômetros rápidos não servem para detectar doentes de
covid-19, porque muitos não apresentam febre e mesmo assim são contagiosos. “A
pistola para medir a temperatura não faz muito sentido. No ebola sim, porque
você só contagia se tiver febre, mas neste caso a relação custo-benefício é só
para a plateia”, afirma García. E reclama: “O importante não é ter termômetros
para os viajantes, e sim uma quarentena de 10 dias”. Além disso, o ECDC
desaconselha o uso de luvas porque “não conferem um benefício adicional e podem
provocar uma higiene de mãos inadequada e uma maior contaminação das
superfícies”.
De novo, são decisões teatrais que podem dar uma falsa
sensação de segurança para quem entra num edifício com capachos, arcos
pulverizadores e assistentes com termômetros. O epidemiologista Miguel Hernán, de
Harvard, critica outros “teatros pandêmicos” que continuam sendo representados,
como “o teatro de impor distância de segurança, que não é controlada, em bares
mal ventilados, como se não existisse contágio por aerossóis quando se fala em
voz alta, porque a música impede de ser ouvido”. Ou o “teatro de recomendar
teletrabalho em vez de regulá-lo por lei para todos os postos em que for
possível”.
García aponta outras questões que também lhe parecem
representações sem substância: “Há medidas importantes que não quiseram tomar e
se inventaram coisas em troca, como os hospitais de pandemias, os fechamentos
perimetrais quando a incidência está igualmente disparada em todos os bairros,
as discussões sobre o toque de recolher em estabelecimentos que teriam que ser
fechados, vestir trabalhadores como astronautas para alguma coisa”. “São coisas
intuitivas, embora não façam sentido”, diz. E aponta um último aspecto que tem
grande impacto visual e psicológico: as ondas de contágios. “É uma construção
que torna as pessoas predispostas a que o vírus venha. Para os governos é bom,
porque assumimos que é algo inevitável que simplesmente acontece. Quando
enfrentamos uma epidemia, é preciso ir a fundo para acabar com ela, não usar
essa linguagem teatral das ondas”, critica.
No El
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