quinta-feira, 3 de março de 2016

O conto dramático "Como se repudia o asco"


 Zeiri estava inquieto. Não parava um só segundo correndo de um lado para outro, descobrindo cada quadrante da nova casa em que a família acabara de se instalar, em Argel.

   A família se fizera em Constantina quando o pai, Deval, desiludiu-se da vida tortuosa e promíscua que levava na terra natal, Paris, e resolveu fazer a vida na África do Norte. Chegou pelo mediterrâneo e na primeira semana encontrou a mulher de sua vida, a bela, adorável e sensual Jamilat Síria com quem se casou e partiu em busca de uma boa cidade para morar. Passaram por Tizi-Uzu, Oran, Anaba, até se decidirem por Constantina, onde fixaram residência e viveram inesquecíveis dez anos de plena felicidade.


   A chegada do filho Zeiri Thiers e a preocupação com sua formação e futuro os levaram a mudar para a capital onde compraram um amplo sobrado, o mais imponente de Argel.

   Deval enriqueceu na África. Já era um homem importante nas rodas empresariais quando lidava com a produção de tabaco, algodão e vinhas. Mas se estabeleceu em definitivo no rol dos gigantescos empreendedores do continente quando se enveredou pela indústria da energia, a extração e comercialização do petróleo.

   Portanto, mudar-se para a capital era uma medida mais que necessária, era, também, uma diligência imposta pelas circunstâncias, pela dinâmica dos negócios, e pela expansão da economia. De início a belíssima Jamilat impôs resistência à proposta de mudança, mas, poço de compreensão e generosidade, logo estava ela atuando como fonte de estímulo, incentivando todos, inclusive o filho; e passaram a ver na transferência de cidade uma nova e promissora aventura.


   Deval deixou a mulher, o filho e os criados cuidando da organização da mudança e foi para a reunião com Ferhat Abbas, chefe do Governo Provisório da República Argelina.

   Era um entusiasta da libertação da Argélia. Manifestava-se publicamente em reuniões abertas e, sobretudo, através de artigos que publicava na imprensa internacional, o que acabou por indispô-lo de forma irreversível com o governo da França que passou a acusá-lo de alta traição.

   Sabia que a agressiva política colonialista que seu país impunha ao continente africano era inócua, dispendiosa, desumana, ineficaz, e apenas agravava a situação. Enquanto os europeus dominavam completamente a economia controlando o comércio, a produção primária e a indústria, quase dois milhões de beberes viviam na extrema pobreza. Com os franceses ocupando as melhores terras, os mais produtivos vales, a população local foi lançada ao desterro, ao êxodo rural, a um deslocamento interno sem precedentes, levando as cidades ao estrangulamento; a proliferação descontrolada da miséria, a prostituição, a criminalidade e a corrupção endêmica. A população sobrevivia de esmolas e da caridade.


   Estava ali formado o cenário, o caldo político para as ideologias redentoras, arrebatadoras, sebastianistas. Desigualdade extrema e miséria generalizada são os insumos de que se alimentam os extremistas de todos os matizes, os radicais de todas as religiões, os ortodoxos de todas as correntes, e os políticos de todas as facções ideológicas, independentemente do tempo, independentemente do espaço.

   Os atentados políticos perpetrados pelos inumeráveis grupos emancipacionistas se intensificaram tanto quanto a repressão encetada pelo exército francês de ocupação. Os dois lados disputavam qual dispunha de maior capacidade e engenhosidade para no outro infligir mais dor, revolta, suplício e tortura.

   Enquanto se dirigia ao local da reunião, Deval, pela janela do carro, via passar nas ruas cenas de explícita indigência, de brutal pobreza, de aguda miséria, do mais avassalador descaso governamental. Um povo abandonado à própria sorte, tangido para o pior dos mundos, estigmatizado pelo açoite da ignorância, do desprezo, do infortúnio e da desesperança.

   Chegou atrasado à reunião e lá já estavam mais de 50 pessoas. Ao adentrar o salão percebeu olhares de desdém e murmúrios de reprovação à sua presença. A nacionalidade francesa jamais o redimiria aos olhos dos argelinos. Afinal, era a França, seu berço natal, a responsável pela ocupação colonial que trazia dor e miséria aos povos árabe e berbere. E como francês vestia a roupagem natural do inimigo. - “É um espião, um quinta coluna”; comentavam todos à boca pequena.

   Por outro lado, ao abraçar a causa da independência argelina Deval atraiu a repulsa de seus conterrâneos e compatriotas franceses que queriam uma França imperialista, poderosa e temida, senhora do vasto continente africano.

   Quando se preparava para ocupar a cadeira reservada ao lado da ocupada pelo presidente Abbas, sentiu que Omar Muhayyad o puxava pelo braço. Muhayyad - feito general da recém-criada Organização do Exército Secreto, um grupo paramilitar que se caracterizava pela promoção dos mais brutais atos de terrorismo, estendendo suas ações de absoluta barbárie até mesmo ao território francês, à cidade de Paris - aproximou-se o mais que pode e, com voz grave, sussurrou ao seu ouvido.

-Volte agora para casa. Agora.

   Deval percebeu na voz e na expressão de Muhayyad o mundo desabar sobre os seus ombros. Sequer pensou em replicar, reagir. Desculpou-se com o presidente por não poder permanecer e tomou o caminho de volta. Antes de sair do auditório virou-se mais uma vez e viu a satisfação perversa estampada no sorriso ignóbil do general tuaregue.

   Ao motorista ordenou que tomasse a direção de casa na máxima velocidade possível, emprestando à limusine Renault a performance de uma aeronave a jato.


   Enquanto seguia tentava dar aos pensamentos o mínimo de ordenamento e racionalidade. Mas as imagens e pressentimentos de iminente tragédia irrompiam aos borbotões, tornando seus olhos uma tela panorâmica em 3D onde se projetavam os piores filmes, as piores angústias. Não conseguia esboçar reação que não fosse exigir do motorista Felipe maior presteza e velocidade. (Para ler o conto completo, clique aqui).


Para saber mais, clique na figura

Dramaturgo, o autor transferiu para seus contos literários toda a criatividade, intensidade e dramaticidade intrínsecas à arte teatral. 

São vinte contos retratando temáticas históricas e contemporâneas que, permeando nosso imaginário e dia a dia, impactam a alma humana em sua inesgotável aspiração por guarida, conforto e respostas. 

Os contos: 
1. Tiradentes, o mazombo 
2. Nossa Senhora e seu dia de cão 
3. Sobre o olhar angelical – o dia em que Fidel fuzilou Guevara 
4. O lugar de coração partido 
5. O santo sudário 
6. Quando o homem engole a lua 
7. Anos de intensa dor e martírio 
8. Toshiko Shinai, a bela samurai nos quilombos do cerrado brasileiro 
9. O desterro, a conquista 
10. Como se repudia o asco 
11. O ladrão de sonhos alheios 
12. A máquina de moer carne 
13. O santuário dos skinheads 
14. A sorte lançada 
15. O mensageiro do diabo 
16. Michelle ou a Bomba F 
17. A dor que nem os espíritos suportam 
18. O estupro 
19. A hora 
20. As camas de cimento nu 

OUTRAS OBRAS DO AUTOR QUE O LEITOR ENCONTRA NAS LIVRARIAS amazon.com.br: 

A – LIVROS INFANTO-JUVENIS: 
Livro 1. As 100 mais belas fábulas da humanidade 

I – Coleção Educação, Teatro & Folclore (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. O coronel e o juízo final 
Livro 2. A noite do terror 
Livro 3. Lobisomem – O homem-lobo roqueiro  
Livro 4. Cobra Honorato 
Livro 5. A Mula sem cabeça 
Livro 6. Iara, a mãe d’água 
Livro 7. Caipora 
Livro 8. O Negrinho Pastoreiro 
Livro 9. Romãozinho, o fogo fátuo 
Livro 10. Saci Pererê 

II – Coleção Infantil (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. Não é melhor saber dividir 
Livro 2. Eu compro, tu compras, ele compra 
Livro 3. A cigarra e as formiguinhas 
Livro 4. A lebre e a tartaruga 
Livro 5. O galo e a raposa 
Livro 6. Todas as cores são legais 
Livro 7. Verde que te quero verde 
Livro 8. Como é bom ser diferente 
Livro 9. O bruxo Esculfield do castelo de Chamberleim 
Livro 10. Quem vai querer a nova escola 

III – Coleção Educação, Teatro & Democracia (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. A bruxa chegou... pequem a bruxa 
Livro 2. Carrossel azul 
Livro 3. Quem tenta agradar todo mundo não agrada ninguém 
Livro 4. O dia em que o mundo apagou 

IV – Coleção Educação, Teatro & História (peças teatrais juvenis): 
Livro 1. Todo dia é dia de independência 
Livro 2. Todo dia é dia de consciência negra 
Livro 3. Todo dia é dia de meio ambiente 
Livro 4. Todo dia é dia de índio 

V – Coleção Teatro Greco-romano (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. O mito de Sísifo 
Livro 2. O mito de Midas 
Livro 3. A Caixa de Pandora 
Livro 4. O mito de Édipo. 

B - TEORIA TEATRAL, DRAMATURGIA E OUTROS
VI – ThM-Theater Movement: 
Livro 1. O teatro popular de bonecos Mané Beiçudo: 1.385 exercícios e laboratórios de teatro 
Livro 2. 555 exercícios, jogos e laboratórios para aprimorar a redação da peça teatral: a arte da dramaturgia 
Livro 3. Amor de elefante 
Livro 4. Gravata vermelha 
Livro 5. Santa Dica de Goiás 
Livro 6. Quando o homem engole a lua