quinta-feira, 7 de março de 2024

"O lugar de coração partido", o conto literário


   Zequinha mal esperou o apresentador do circo solicitar, ao microfone, duas crianças da plateia para participar de um número com o palhaço Pirlipimpim. Num repente, desgarrou-se dos braços da mãe e correu em direção ao tablado. O garoto de apenas sete anos era uma graça. Desinibido, era a atração nas festas de aniversário. Cantava, dançava, recitava, contava piadas e apresentava pequenos esquetes concebidos por ele, sem auxílio de quem mais experimentado na lida. Os versos e esquetes conseguia elaborar na forma de cordel, estilo que assimilara como que por osmose do pai. O velho José, desde sempre, entoava em seus ouvidos versos populares para embalá-lo no sono. 

   Dia sim e o outro também a molecada acorria à casa do menino prodígio, intimando-o para a pelada que invariavelmente iniciava às 16 para só findar no escuro, ao redor das 19 horas. Isso porque Maria Santa surgia do nada, varinha fina que garimpava no pé de amora determinando o término da brincadeira. Todavia, antes de se apresentar, a mãe permanecia escondida, encantada com os dribles ligeiros do filho, as arrancadas fulminantes, os passes precisos e os gols incrivelmente encantadores que colocavam os arqueiros prostrados no chão de terra batida.

   Como a pobreza do lugar era extrema, ainda no colo Zequinha seguia com os pais para a feira livre onde exploravam banca de frutas de época. Com nove meses já gritava “lalanja feguês por um leal a duza”. Dois anos e conseguia devolver o troco corretamente se o freguês pagasse com nota de um, dois, cinco ou dez reais. Com três anos de idade e já tomava conta da banca de frutas, sozinho, liberando os pais para uma outra barraca que a família montara para comercializar deliciosos pastéis de carne e queijo, estalados na hora.
   O velho José professava a fé espírita, Maria Santa a católica, e jamais se desentenderam com as diferenças religiosas. De modo que incutiram no filho uma fina percepção quanto ao ecumenismo; e que o respeito e a generosidade eram os ingredientes milagrosos capazes de unificar as pessoas. E assim ensinaram os benefícios da compreensão, da indulgência, da tolerância religiosa, condições indispensáveis para alcançar paz no seio dos indivíduos e dos povos.

- Religião, mulher e time de futebol cada um tem o seu e não se discute – pontificava compenetrado o pai.

- Devemos respeitar a escolha de cada um - complementava a mãe.

   A chegada da idade escolar foi encontrar a família apreensiva. Zequinha mais eufórico que alarmado. Ansiava, aluno, envergar o uniforme, possuir o próprio caderno de caligrafia, manusear seus livros de figuras engraçadas, cativar o estojo de lápis coloridos. Como ocorria com os meninos que adorava observar, vestidos de bermuda azul e camiseta branca com finas listras vermelhas dirigindo-se falantes ao educandário municipal.

   Porém, do alto de sua tenra idade observava também inúmeras outras crianças, muitas de seu tamanho e idade, que chamava pelo nome e sobrenome, vizinhos de rua, outrora de peladas, escravizados pelo crack, pelo oxi, pela lata de cola de sapateiro comprimida no nariz; passos, trejeitos e voz fadados à eterna embriaguês. A mãe orientava: “quem não vai pra escola se perde na cola e no solvente de tinta”. E que a vida, nas ruas, transformava os filhos em crianças-zumbis, despojados de vontade e alma, com o coração partido em pedaços. E repetia o mantra incansavelmente para alertar o filho.

- As ruas, meu filho, são fábricas de crianças-zumbis: meninos sem vontade, sem alma e com o coração partido em pedaços.

   No primeiro dia de aula o professor Jorge reuniu todos os alunos no terreno de terra vermelha situado ao lado da escola. Anunciou alto, certificando-se que nenhuma criança deixaria de escutar a preleção.

- Este ano só teremos atletismo, corrida de 100 e 200 metros. Só atletismo. Vou repetir mais uma vez: nas aulas de educação física, só exercitaremos a modalidade atletismo.

   Zequinha mais que depressa, levantou o dedo pedindo a palavra.

- Eu quero futebol, gosto de futebol; por que não fazemos futebol?


   E os pirralhos ali reunidos acompanharam-no de forma unânime, expressando numa só voz a preferência pelo futebol. O professor dissimulando a irritação tentava argumentar:

- Não faremos futebol porque não temos material esportivo. Não recebemos nada da Secretaria de Educação. Nem uma bolinha nós te...

   Sem aguardar pela conclusão do professor, Zequinha interrompeu, imaginando ter a solução para o imbróglio.

-Agente faz uma bola de jornal amassado e recobre com meia, fica boa, redondinha, fica demais.

   E novamente as crianças apoiaram a proposição em festiva algazarra, falando todos ao mesmo tempo, numa toada que tornava impossível identificar quem falava e o quê.

- Fica bom.

- Eu também quero futebol.

- Só fala exercício se tiver uma bola na frente.

- Tenho duas bolas de meia lá em casa, é só buscar.

- Ninguém vai fazer esse negócio de atletismo.

   Já sem paciência, abruptamente o professor deu por encerrada a aula. (Para ler o conto completo, clique aqui).


Para saber mais, clique na figura

Dramaturgo, o autor transferiu para seus contos literários toda a criatividade, intensidade e dramaticidade intrínsecas à arte teatral. 

São vinte contos retratando temáticas históricas e contemporâneas que, permeando nosso imaginário e dia a dia, impactam a alma humana em sua inesgotável aspiração por guarida, conforto e respostas. 

Os contos: 
1. Tiradentes, o mazombo 
2. Nossa Senhora e seu dia de cão 
3. Sobre o olhar angelical – o dia em que Fidel fuzilou Guevara 
4. O lugar de coração partido 
5. O santo sudário 
6. Quando o homem engole a lua 
7. Anos de intensa dor e martírio 
8. Toshiko Shinai, a bela samurai nos quilombos do cerrado brasileiro 
9. O desterro, a conquista 
10. Como se repudia o asco 
11. O ladrão de sonhos alheios 
12. A máquina de moer carne 
13. O santuário dos skinheads 
14. A sorte lançada 
15. O mensageiro do diabo 
16. Michelle ou a Bomba F 
17. A dor que nem os espíritos suportam 
18. O estupro 
19. A hora 
20. As camas de cimento nu 

OUTRAS OBRAS DO AUTOR QUE O LEITOR ENCONTRA NAS LIVRARIAS amazon.com.br: 

A – LIVROS INFANTO-JUVENIS: 
Livro 1. As 100 mais belas fábulas da humanidade 

I – Coleção Educação, Teatro & Folclore (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. O coronel e o juízo final 
Livro 2. A noite do terror 
Livro 3. Lobisomem – O homem-lobo roqueiro  
Livro 4. Cobra Honorato 
Livro 5. A Mula sem cabeça 
Livro 6. Iara, a mãe d’água 
Livro 7. Caipora 
Livro 8. O Negrinho Pastoreiro 
Livro 9. Romãozinho, o fogo fátuo 
Livro 10. Saci Pererê 

II – Coleção Infantil (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. Não é melhor saber dividir 
Livro 2. Eu compro, tu compras, ele compra 
Livro 3. A cigarra e as formiguinhas 
Livro 4. A lebre e a tartaruga 
Livro 5. O galo e a raposa 
Livro 6. Todas as cores são legais 
Livro 7. Verde que te quero verde 
Livro 8. Como é bom ser diferente 
Livro 9. O bruxo Esculfield do castelo de Chamberleim 
Livro 10. Quem vai querer a nova escola 

III – Coleção Educação, Teatro & Democracia (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. A bruxa chegou... pequem a bruxa 
Livro 2. Carrossel azul 
Livro 3. Quem tenta agradar todo mundo não agrada ninguém 
Livro 4. O dia em que o mundo apagou 

IV – Coleção Educação, Teatro & História (peças teatrais juvenis): 
Livro 1. Todo dia é dia de independência 
Livro 2. Todo dia é dia de consciência negra 
Livro 3. Todo dia é dia de meio ambiente 
Livro 4. Todo dia é dia de índio 

V – Coleção Teatro Greco-romano (peças teatrais infanto-juvenis): 
Livro 1. O mito de Sísifo 
Livro 2. O mito de Midas 
Livro 3. A Caixa de Pandora 
Livro 4. O mito de Édipo. 

B - TEORIA TEATRAL, DRAMATURGIA E OUTROS
VI – ThM-Theater Movement: 
Livro 1. O teatro popular de bonecos Mané Beiçudo: 1.385 exercícios e laboratórios de teatro 
Livro 2. 555 exercícios, jogos e laboratórios para aprimorar a redação da peça teatral: a arte da dramaturgia 
Livro 3. Amor de elefante 
Livro 4. Gravata vermelha 
Livro 5. Santa Dica de Goiás 
Livro 6. Quando o homem engole a lua