Para a elaboração do texto teatral há que se debruçar sobre uma questão primeira: qual será nossa idéia central, o temário que impulsionará nossa narrativa dramática?
A “questão central” será nosso objeto de estudo, o assunto que será eixo, estrutura, o tema central de nossa peça teatral. Como a proposta do teatro popular de bonecos Mané Beiçudo busca a interação entre o universo artístico e o que encerra as demandas da comunidade, a questão central será também o mote de nossa intervenção cidadã.
Por isto, devemos compatibilizar a questão central com as efetivas demandas da comunidade.
Discutir o sexo dos anjos cabe muito bem no teatro convencional. Diverte, entretém e isto é muito salutar para o espírito. Mas o teatro popular de bonecos Mané Beiçudo vai além. Está umbilicalmente vinculado à diversão e ao entretenimento, mas dá um passo à frente na medida em que busca estabelecer uma sinergia com a comunidade. Está na essência da tecnologia buscar algum tipo de transformação, alguma intervenção no tecido social que leve à participação cidadã, aquela que consegue identificar os problemas, hierarquizá-los, estabelecer relações de causa e efeito e promover mobilizações para superá-los.
Não é objetivo da educação fazer com que as pessoas, de posse do conhecimento, o processem para promover alterações que elevem a qualidade de vida? O teatro Mané Beiçudo atua exatamente neste contexto, criando um caldo cultural onde se sobressaem a arte popular, a educação e o planejamento.
Para a elaboração do texto teatral dentro desta dinâmica, deveremos primeiramente definir nosso foco. A estratégia inicial é selecionar cerca de dez lideranças locais, as mais expressivas e atuantes, abrindo o leque de modo que representem o maior universo possível: uma para representar os comerciantes, uma para os professores, uma para as mulheres, uma para os trabalhadores, uma para a juventude, outra para a terceira idade, e assim por diante.
O os artistas, estudantes, professores, cada integrante do grupo receberá a incumbência de entrevistar uma liderança comunitária. E nada de complicações, será mais uma enquete, tudo bem simples:
1. Cite os cinco principais problemas de nossa comunidade.
2. Dentre eles, qual é o mais grave?
3. Em sua opinião, qual o principal responsável pela existência deste problema?
4. Qual a pessoa, autoridade ou instituição que você considera o principal responsável pela solução do problema?
5. Como resolvê-lo?De posse das respostas – e conduzida por elas – serão promovidas discussões internas quando então é dada a formatação final ao questionário que será submetido à comunidade.
Vejamos o exemplo aplicado na periferia da cidade de Marília, em São Paulo:
Dentre os problemas apresentados abaixo, assinale cinco que, em sua opinião, seriam os mais graves:
1. ( ) Transporte coletivo inoperante
2. ( ) Posto de saúde inexistente
3. ( ) Ruas sem asfalto
4. ( ) Bairro sem arborização
5. ( ) Inexistência de iluminação pública
6. ( ) Falta de empregos
7. ( ) Bairro inseguro
8. ( ) Escola necessitando de reforma
9. ( ) Ensino sem qualidade
10. ( ) inexistência de equipamentos comunitários de lazer e cultura.
Quando tabulamos os dados chegamos ao verdadeiro sentimento da comunidade, aos verdadeiros problemas que – na visão dela – interferem negativamente na qualidade de vida das pessoas que habitam no bairro, na região e na cidade.
Via de regra, trabalharemos com uma mostra de 10% da população total de nosso espaço-objeto. Definido o estrato, o questionário é reproduzido na quantidade necessária e aplicado.
Naturalmente, a questão central a ser trabalhada será a que receber a maioria simples dos votos da comunidade.
Definido foco, a questão central, o Grupo parte para a coleta de dados e informações complementares, objetivando enriquecer e alargar a visão sobre o assunto, procurando entender todas as suas nuances e facetas.
Nesta etapa do processo identificamos, no plano da realidade:
• o conflito principal e os secundários
• o personagem principal e os secundários
• a trama principal e as tramas secundárias
• as relações de causa e efeito
• as responsabilidades
• as possíveis soluções
• a estratégia da mobilização comunitária.Neste ponto já estaremos habilitados para estruturar a coluna vertebral do espetáculo. É aqui que rebatemos o plano real no plano da ficção, utilizando do imaginário popular para reforçar a compreensão coletiva sobre a realidade que nos cerca.
Da realidade objetiva criamos então a ficção teatral que nada mais é que a realidade problematizada; que a realidade desvelada; que a discussão estratégica sobre como intervir e modificar a realidade objetiva; tudo isso sem perder de vista o onírico, o lúdico, o substrato do entretenimento, da diversão e do lazer.
Devemos manter longa distância da linguagem e abordagem fácil, simplista e efêmera do panfletário. O teatro popular de bonecos Mané Beiçudo é um teatro pujante, vigoroso, plástico, lúdico, vinculado às raízes culturais da comunidade, que adentra profundo no imaginário comunitário para dele extrair seus principais problemas, expectativas e ansiedades. É um teatro renovador, transformador, mas jamais panfletário porque quando enfoca determinada questão:
• o faz à luz da reflexão crítica;
• não impõe problemas (de forma autoritária) e sim os extrai da comunidade;
• trata o processo de forma aberta;
• não impõe caminhos e soluções e sim trata de radicalizar as discussões e a participação cidadã para que a própria comunidade defina seus caminhos e escolha suas soluções.
Desta interação dos planos Concreto X Imaginário, da Realidade X Ficção emerge a coluna central de nossa peça de teatro:
• Tramas definidos
• Conflito central consolidado
• Perfis psicológicos das personagens central e secundárias traçados
• Cenários desenhados
• Cenas e passagens alinhavadas
• Adereços definidos
Agora, basta dar a versão escrita ao enredo criando o texto dramático – sua coluna central. Na seqüência, cuidar da reprodução e providenciar a distribuição para que os atores.
Nesta etapa nosso processo deverá assumir duas vertentes. Na primeira é estruturado o Espetáculo-mestre, uma grande marcha carnavalesca, uma grande passeata épica, com a presença de bonecos gigantes, de enormes adereços – o teatro de rua. Na segunda vertente, ocorrem as apresentações de inúmeros espetáculos de bonecos de luva, os Espetáculos-satélites. No decorrer da marcha épico-carnavalesca do teatro de rua, alguns momentos e locais chaves são pré-definidos, quando então se desenvolvem os espetáculos pontuais, os Espetáculos-satélites.
Um movimento cultural resultante da intensa participação da comunidade, em todos os momentos do processo.
Antônio Carlos dos Santos - criador da metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de Teatro Popular de Bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br