quarta-feira, 11 de março de 2020

Vida sonora - o som ao redor



Com a popularização dos smartphones e das plataformas de streaming, o número de horas que as pessoas passam escutando música deu um salto — e isso tem impactos no funcionamento do cérebro

O instrumento musical mais antigo tem cerca de 40 mil anos, uma flauta feita de ossos encontrada na Europa. Levando-se em conta que provavelmente se cantava antes de alguém ter a ideia de fazer um instrumento, escutamos música há ainda mais tempo. Nessa longa história, houve vários pontos de inflexão, e o mais recente deles foi o provocado pela popularização de aplicativos. Pela primeira vez na história, hoje conseguimos escutar qualquer canção a qualquer hora — o que explica que nunca se tenha ouvido tanta música, uma mudança com efeitos em nosso dia a dia e também em nosso cérebro.

Primeiro, os números que comprovam que a música não sai de nossa cabeça: a quantidade de pessoas com smartphones em todo o mundo, pelas estimativas do Pew Research Center, é de 2,5 bilhões. A popularização desses aparelhos é muito maior que a de qualquer outro capaz de reproduzir as canções escolhidas por seus donos. Toca-discos, walkmans e tocadores de CD nunca foram tão disseminados. Isso explica o tempo cada vez maior que as pessoas de 21 países, o Brasil inclusive, têm dedicado a ouvir música. Pelo último levantamento da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, já são 18 horas por semana.

Como a música é intangível, toca no que é impalpável — está na fronteira entre o pensamento e os sentimentos. Já está provado que afeta a liberação de substâncias químicas cerebrais poderosas que podem regular o humor, reduzir a agressividade e a depressão e melhorar o sono. Basta lembrar que a musicoterapia é um tipo de tratamento muito usado em diversas doenças somáticas e psíquicas, como o Alzheimer. Um exemplo clássico e recorrente é o de pacientes em estágio avançado que se sentem estimulados ao ouvirem canções que relembram sua infância, ao mesmo tempo que não conseguem se lembrar dos próprios filhos. Isso acontece porque a região do cérebro em que se concentra a memória musical é uma das últimas a ser atingida pela doença.

Doutora em neurociência e especialista do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), centro de referência carioca na promoção do avanço científico e tecnológico na área de saúde, Julie Wein explica que o cérebro responde de forma bem global à escuta musical. Ou seja, várias regiões são ativadas ao mesmo tempo a cada som, tanto no hemisfério esquerdo quanto no direito. A atividade do córtex auditivo, por exemplo, codifica os sons que ouvimos, enquanto o lobo temporal processa as informações sonoras, como frequência e amplitude. Regiões envolvidas no processamento das emoções também são ativadas — por isso, temos o sentimento de prazer e, às vezes, chegamos a nos emocionar ou ficar arrepiados quando escutamos alguma música.

Uma pergunta ainda sem resposta é se a escuta musical tem efeitos positivos nas tarefas cognitivas — em outras palavras, se ficamos mais inteligentes com a música. Por anos, um experimento chamado de Efeito Mozart foi usado como referência. Publicado em 1991 pelo pesquisador francês Alfred A. Tomatis, o estudo ficou popularmente conhecido como o experimento que “provava” que crianças e até bebês que ouvissem músicas compostas pelo músico austríaco se tornariam adultos intelectualmente mais capacitados. A histeria coletiva foi tamanha que, em 1998, o então governador do estado americano da Georgia, Zell Miller, tentou aprovar um orçamento para que todos os recém-nascidos pudessem ganhar um CD de música clássica. O neuropsicólogo Sergio Della Sala, professor da Universidade de Edimburgo, chegou a presenciar em uma fazenda de muçarela na Itália búfalos que ouviam Mozart três vezes por dia. Segundo o fazendeiro, a intenção era ajudar os animais para que produzissem um leite melhor. Até hoje é possível encontrar na internet produtos — CDs, livros etc. — que ajudam na missão, prometendo usar o poder da música de Mozart para auxiliar a cognição e a inteligência em todas as idades.

Cientificamente, porém, o experimento é contestado e, hoje, quase folclórico. Não que Tomatis fosse um pesquisador fajuto ou algo assim. No estudo original, o termo “Efeito Mozart” nunca foi usado. E o teste não tinha usado nenhuma criança, sendo feito em 36 jovens estudantes de psicologia. Divididos em três grupos, eles recebiam uma série de tarefas mentais para solucionar. O primeiro grupo ficava em total silêncio por dez minutos antes do teste. O segundo ouvia uma gravação com instruções para relaxamento. O terceiro, dez minutos da “Sonata para dois pianos em ré maior”, de Mozart.

O grupo que ouviu Mozart se saiu melhor nas tarefas em que era preciso criar formas. Por um curto período de tempo, seus integrantes foram superiores em tarefas espaciais em que tiveram de olhar para pedaços de papel dobrados com cortes e prever como pareceriam quando desdobrados. Mas o próprio autor deixou claro à época que o efeito durava cerca de 15 minutos — bem diferente de uma vida mais inteligente, como viria a ser comercialmente divulgado anos depois. “Resultados parecidos foram encontrados com músicas que não eram de Mozart, nem clássicas e até com o que não era música. O grande achado, no fim das contas, era que a pessoa devia fazer algo que a deixasse relaxada, feliz, antes da tarefa”, explicou Wein. Isso foi provado em estudos posteriores, que usaram a música de Franz Schubert e até a audição de um trecho de um romance de Stephen King.

O que se sabe é que aprender a tocar um instrumento musical pode, sim, trazer um efeito benéfico ao cérebro. É o que promete um estudo da cientista cognitiva Jessica Grahn, da Universidade de Western Ontario, no Canadá. Segundo ela, um ano de aulas de piano combinadas com prática regular pode aumentar o Q.I. em até 3 pontos. Nem todo mundo, porém, tem tempo ou recursos para aprender piano. Então, afinal, ouvir música no trabalho pode atrapalhar seu rendimento? Se você optar por ouvir canções com letras enquanto estiver realizando tarefas, seu cérebro vai competir pela informação e, em algum momento, você vai querer prestar atenção no verso, mesmo que seja numa língua que não domina. Para casos de pessoas que perdem o foco com distrações, a música instrumental é mais recomendada, podendo trazer uma sensação de calma e relaxamento. Existem, inclusive, experimentos digitais atuais. Um deles é o site Focus at Will, que conta também com um aplicativo para smartphone. A ideia é desenvolver playlists personalizadas, criadas a partir de um quiz, que prometem potencializar em até quatro vezes a produtividade dos usuários. Os sons e melodias usados buscam maximizar o estado de foco duradouro por meio de um contraste entre distração e abstração (uma música sempre é seguida por outra que não é tão igual nem tão diferente da anterior).

Mais populares e acessíveis, porém, são as rádios do YouTube que prometem fazer o mesmo usando, basicamente, batidas espaçadas, sintetizadores, uma ou outra voz sampleada em um loop aparentemente eterno, adornados com imagens de anime de uma garotinha estudando enquanto seu gato descansa na janela. Com essa fórmula simples, o canal ChilledCow, criado no fim de 2015, virou um fenômeno na plataforma de vídeos, tendo hoje 4,29 milhões de inscritos, e a partir dela gerou-se um mercado com diversos outros canais.

Os nomes das rádios são objetivos. A mais famosa se chama “lofi hip hop radio — beats to relax/study to” (em tradução livre, rádio de “hip-hop caseiro — batidas para relaxar/estudar”) e nunca tem menos de 20 mil pessoas ouvindo ao vivo. Na mesma onda, o DJ americano Ryan Celsius, de Washington, também alimenta seu canal, com 450 mil inscritos, que conta ainda com rádio para trabalho.

Celsius explica que o tal gênero “lofi hip hop” nada mais é do que produções de hip-hop mais relaxadas, minimalistas, tipo música ambiente. Ele tem grande apelo como música de fundo quando abafa os vocais em volumes abaixo das melodias suaves, de samples nostálgicos e distorções analógicas — como aquelas que remetem a sons de vinis e de fitas cassete. Além disso, traz um som de bateria padrão bastante direto que permite que o ouvinte faça a audição passivamente e ainda assim desfrute dela. “Definitivamente, é um tipo de música que pode ser usado como pano de fundo para executar tarefas ativamente. No entanto, devido à sutileza da produção, quando alguém decide fazer uma pausa e se concentrar um pouco na música, essa experiência também pode ser recompensadora”, tentou destrinchar Celsius.

Essa nova onda de popularização da música tem uma pegada solitária. O streaming diminuiu a sensação de que a audição musical possa ser uma experiência coletiva. Nada de chamar os amigos para ouvir um LP novo, como já foi comum no passado. “Hoje em dia, as listas de melhores discos do ano, por exemplo, tornaram-se ainda mais pessoais do que eram. Não tem mais aquela coisa de todo mundo estar escutando os mesmos sons ao mesmo tempo”, argumentou o jornalista e curador musical Carlos Albuquerque, autor de livros como O eterno verão do reggae e Rio Fanzine: 18 anos de cultura alternativa. “Fico pensando em um disco como Fa-tal, da Gal Costa (1971). Ele foi um grande sucesso porque todo mundo estava falando sobre ele, era papo de bar. O mesmo vale para um Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles (1967). Hoje teríamos essa relação com algum grande disco? De vivenciar, conversar sobre ele? É difícil imaginar.”

Nem mesmo dentro de casas onde moram adolescentes é tão comum ouvir músicas altas como no passado. Perto de cada smartphone costuma haver um par de fones de ouvido. Agora é a vez daqueles pluges sem fio, chamados de “air pods”. Mas isso é saudável? Segundo o otorrinolaringologista Edson Mitre, presidente da Sociedade Brasileira de Otologia, tudo depende do volume em que a música é escutada. Afinal, nossos ouvidos têm alguns mecanismos de proteção contra sons mais altos, mas eles só funcionam quando expostos até mais ou menos 80 decibéis. Qualquer intensidade maior do que essa, independentemente do tempo de exposição a ela, pode causar perdas até irreversíveis de audição. “Infelizmente, eu e vários outros colegas temos recebido adolescentes e até crianças de 10, 12 anos, já com perdas irreversíveis por causa do uso de fones de ouvido. Não totais, claro, mas índices de perda altos”, revelou Mitre.
Por Luccas Oliveira, na Revista Época




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