Pintado em 2017, 'The Scream' passou a simbolizar indignação e luto após a descoberta de restos mortais de crianças indígenas em valas comuns no Canadá |
A pintura chocante e angustiante do artista canadense da etnia cree Kent Monkman, The Scream (2017), retrata uma cena caótica.
Mães são detidas pela Real Polícia Montada do Canadá
enquanto se jogam tentando pegar os filhos, que foram arrancados de seus braços
por freiras e padres católicos.
A cena sintetiza a angústia da história real da
política de assimilação cultural forçada que tirava crianças indígenas de suas
famílias e levava para internatos, onde uma série de outros abusos, físicos e
sexuais, aconteciam.
A prática vigorou de 1880 a 1990, liderada pela Igreja
Católica com a aprovação do governo canadense.
Em maio de 2021, foram descobertas valas comuns
contendo os restos mortais de 215 crianças em um antigo internato em Kamloops,
na Colúmbia Britânica.
Apenas algumas semanas depois, os restos mortais de
outros 751 corpos foram encontrados em um internato em Saskatchewan.
E, em 30 de junho, mais 182 sepulturas sem
identificação foram descobertas perto de um internato em outro local da
Colúmbia Britânica.
Desde a primeira descoberta em maio, a pintura de
Monkman foi amplamente compartilhada, em postagens que refletiam a raiva
coletiva, a dor e o senso de urgência da população do país.
Graças às redes sociais e à prática dos museus
colocarem suas coleções online durante a pandemia de covid-19, as imagens nunca
foram tão acessíveis ao público, a ponto de frequentemente se tornarem símbolos
da voz da indignação moral contra a atrocidade.
Foi enquanto olhava as pinturas do Velho Mundo no
Museu do Prado, em Madri, cerca dez anos atrás, que Monkman, um dos mais
estimados pintores contemporâneos do Canadá, começou a ver a força emocional
delas.
O artista propositalmente se apropriou das tradições
artísticas ocidentais de pinturas históricas (e cores vivas) para contar a
história de The Scream: uma história compartilhada, ele parecia estar dizendo.
(A pintura foi dedicada à avó de Monkman, que era uma
sobrevivente do sistema de internatos; a primeira vez que ela falou sobre a
experiência foi em seu leito de morte.)
Colocando em contexto
Essa informação sobre a pintura, como muitas outras,
incluindo seu contexto e escala (a pintura tem dois metros por três metros),
provavelmente se perde quando a mesma é visualizada no Facebook.
"Estavam mostrando essa imagem por toda a
internet e, em muitos lugares, nem sequer diziam que tinha sido feita por Kent
Monkman", afirma MaryLou Driedger, escritora e professora de Winnipeg, que
trabalhou como guia turística na Winnipeg Art Gallery quando a pintura estava
sendo exibida como parte da exposição Shame and Prejudice: A Story of
Resilience.
"Se você não sabe que essa pintura foi feita por
um artista cree que passou os primeiros cinco anos de sua vida em uma reserva,
você está perdendo muito da história. É importante saber disso. E que ele ouviu
cada um dos depoimentos da Comissão da Verdade e Reconciliação antes de fazer a
pintura. Acho que só 'bombar' essa foto na internet não oferece muito
contexto", diz ela à BBC Culture.
Mas The Scream é apenas um exemplo de como, ao longo
da história, as obras dos artistas foram usadas como ferramentas de mudança.
Em alguns casos, os artistas se tornaram participantes
proativos para realizar ações e mudanças sociais, até mesmo na esperança de
impulsionar decisões políticas.
Sua obra de arte se torna uma criação calculada, o
artista abandona a alegoria pelo ativismo. E espera um impacto visceral para
que a pintura desperte a consciência de uma injustiça.
Mas como as obras de arte servem para questionar uma
atrocidade ou um ato de guerra? O que acontece quando uma pintura passa de uma
imagem para um conceito?
E quando o artista pede ao espectador que não seja
apenas sua plateia, mas um mensageiro, para levar sua indignação para o resto
do mundo, o que isso faz com a relação tradicional entre artista e espectador?
Foi sugerida uma relação mais igualitária, ou pelo
menos colaborativa — parceiros em prol de uma causa — que reflita o poder do
povo quando associado a um artista.
"Como a fotografia é vista como realidade, as
imagens de violência são desconcertantes para o público", escreveu Cameron
Deuel em The Relationship Between Viewer and Fine Art, um artigo de 2013 para a
Western Washington University, nos EUA.
A arte pode ser útil ao abrir caminhos que a
fotografia, ou um texto, não conseguem.
Como Bracha L Ettinger, artista visual, filósofo,
psicanalista e escritor, disse em uma discussão de 2016 no jornal americano The
New York Times:
"A arte trabalha em direção a um espaço ético
onde podemos encontrar vestígios da dor dos outros por meio de formas que
inspiram nossos corações e mentes, sentimentos e conhecimento. Acrescenta uma
qualidade ética ao ato de testemunhar. Ao confiar na pintura como verdadeira,
você se torna uma testemunha dos efeitos de acontecimentos que não vivenciou
diretamente, toma consciência dos efeitos da violência contra outros, agora e
na história — uma testemunha de um acontecimento do qual não participou e uma proximidade
com aqueles que você nunca conheceu."
E apesar das limitações da rede social, geralmente há
um impacto maior quando uma obra é vista fora de seu habitat mais tradicional,
a galeria ou museu.
Acaba com o elitismo percebido ou real da arte, empoderando
ainda mais o espectador.
Um projeto de pesquisa do Museu Reina Sofia, em Madri,
analisa o impacto do que um de seus colaboradores, o marchand Tony Shafrazi,
chamou de "a maior pintura de guerra do mundo": Guernica, de Pablo
Picasso.
O projeto, Rethinking Guernica, contém mais de 2 mil
documentos, ensaios e entrevistas. Não é de se admirar que a maneira pela qual
a arte pode servir para contar uma atrocidade seja chamada de "Efeito
Guernica".
Em 1937, durante a Guerra Civil Espanhola, Franco
convidou a Legião Condor nazista para lançar bombas sobre uma pequena cidade,
Guernica, que era símbolo da independência basca.
Na impactante pintura a óleo sobre tela de Picasso
sobre as consequências do bombardeio, civis gritam em agonia; membros estão
espalhados por toda parte. Violência e dor gritam por meio da tela.
Enquanto os críticos de arte se esforçavam para
desvendar o significado de cada figura representada na obra, é possível
argumentar que isso era irrelevante.
Como Picasso queria, essa pintura foi além da
discussão padrão de análise de arte, que engloba estética, técnica e estilo.
Embora tenha sido retratada no estilo cubista, como
diz Shafri, "está além do Cubismo". Picasso chamou Guernica de
"propriedade do povo".
O artista, que pintou a obra logo após o evento para
aproveitar a cobertura da imprensa, procurou usar a pintura para influenciar
mudanças na política nacional, para galvanizar a opinião pública mundial e
incentivar os espectadores a serem participantes proativos da indignação.
Picasso fez uma turnê com Guernica no Reino Unido e
nos EUA, como um esforço de arrecadação de fundos em prol da cidade de Guernica
em 1938.
Quando ainda estava no exílio na França, Picasso
chegou a usar a pintura como moeda de troca pela democracia.
Anos depois, os seguidores de Franco queriam a pintura
na Espanha (talvez devido à sua celebridade), mas Picasso decretou que só
permitiria que ela fosse exibida no país depois que a democracia fosse
estabelecida.
A arte da guerra
Essa ideia de como a arte na hora certa pode moldar a
narrativa social da guerra foi explorada por Nicole Dean, oficial do Exército
dos EUA especializada em arte saqueada. Em um artigo de 2020, Dean propôs que
Guernica poderia ser usada como uma ferramenta para o desenvolvimento de
liderança:
"Esta criação calculada de uma obra-prima
poderosa deve ser examinada e apreciada como parte de uma narrativa maior de
tempo de guerra."
Ela sugere até que a arte poderia ser usada como um
guia para a arte da guerra.
"O estudo da arte de tempos de guerra pode ser um
acréscimo valioso ao desenvolvimento profissional de líderes militares, gerando
opções para o diálogo profissional sobre como as sociedades veem os vencedores,
os derrotados e o valor dos conflitos pelas lentes dos artistas e do patrimônio
cultural."
Antes de Picasso, o mestre da pintura espanhol
Francisco Goya foi uma testemunha ocular das atrocidades de sua época — e sua
pintura Três de Maio de 1808 em Madri (em exposição no Museu do Prado, na
capital espanhola) continua a chocar quase dois séculos após sua morte, como
uma obra-prima de arte inovadora — e uma ferramenta política.
O quadro 'Três de Maio de 1808 em Madri', de Goya, criou uma imagem atemporal de violência a partir de eventos específicos |
O pintor foi profundamente afetado pela desilusão que viu durante a invasão napoleônica da Espanha em maio de 1808, pela fome generalizada entre os civis e por sua resistência — foi a primeira vez que o termo "luta de guerrilha" foi usado — assim como sua posterior execução nas mãos das tropas de Napoleão.
Mas foi a maneira como Goya abordou a pintura que
sugeriu que o pintor estava se concentrando em uma mensagem universal e
atemporal.
As tropas, com armas apontadas diretamente para o
povo, não têm rosto. Muitos dos civis cobrem o rosto. Eles podem pertencer a
qualquer país e a qualquer época.
(O anonimato era radicalmente vanguardista, rejeitando
todas as convenções usuais da pintura de história barroca e neoclássica de sua
época).
E, de fato, transcendeu o tempo e o espaço.
Nas palavras do crítico de arte Robert Hughes, autor
de uma biografia sobre Goya de 2003, o quadro Três de Maio de 1808 em Madri é
"verdadeiramente moderno... o quadro contra o qual todas as futuras
pinturas de violência trágica teriam que se comparar... Ele nos fala com a
urgência que nenhum artista de nosso tempo consegue reunir. Vemos seu rosto, há
muito morto, pressionado contra o vidro do nosso terrível século, Goya olhando
para uma época pior que a dele."
Mais tarde, o pintor francês Edouard Manet ecoou o
Três de Maio de 1808 em Madri em termos de tom e composição com sua obra A
Execução de Maximiliano (1868-69).
A Morte de Marat (1793), do artista francês
Jacques-Louis David, pode ter sido a primeira pintura a mudar a opinião pública
em tempo real, ou mais próximo do tempo real que era possível na época.
A pintura retrata o assassinato do líder
revolucionário e jornalista Jean-Paul Marat, que foi esfaqueado na banheira.
David, um dos pintores mais proeminentes de sua época,
concluiu a obra apenas alguns meses após o assassinato de Marat. Adotando
técnicas acadêmicas da época, é quase fotográfico em sua simplicidade.
O historiador da arte TJ Clark chamou a obra de
primeira pintura modernista, "pela maneira como tomou as coisas da
política como seu material, e não as transmutou".
Isso foi calculado. David era um artista oficial dos
jacobinos e foi convidado a fazer de Marat um mártir pela causa. A Morte de
Marat foi uma das três "pinturas de propaganda" que David pintou.
Significativamente, também se transformou em uma
gravura que foi amplamente divulgada entre o público.
(Sua popularidade só diminuiu durante o chamado
período do terror, mas voltou à glória na década de 1820 com a ajuda de um
ensaio lisonjeiro de Baudelaire: "Esta pintura é a obra-prima de David e
uma das grandes curiosidades da arte moderna porque, por um estranho feito, não
tem nada de trivial ou vil… ").
Hoje, a pintura é frequentemente usada como um meme em
resposta a conflitos contemporâneos, com um policial lançando spray de pimenta,
por exemplo, ao lado do sujeito assassinado na banheira.
A artista alemã Käthe Kollwitz queria que seu quadro
Guerra (Krieg), de 1923, fosse visto por meio de impressões que foram
distribuídas, ou compartilhadas, como panfletos.
A artista buscou uma resposta adequada aos "anos
indescritivelmente difíceis" da Primeira Guerra Mundial, em que seu filho
soldado, Peter, morreu — uma perda que ela nunca superou.
Ela começou a trabalhar em Guerra em 1919, e acabou
descobrindo que a xilogravura era o meio certo para dar expressão às
atrocidades que presenciou.
A obra finalizada é composta por sete xilogravuras de
pura angústia — em uma delas, uma mãe oferece seu filho bebê em sacrifício à
causa; em outra, uma viúva está deitada em agonia, quase morta.
"Tentei várias vezes representar a guerra. Nunca
consegui capturá-la... Essas impressões devem ser enviadas para todo o mundo e
mostrar a todos a essência de como era", escreveu Kollwitz em uma carta a
Romain Rolland em 1922.
Talvez não haja melhor exemplo atual de um artista
dando voz a um espectador do que a imagem "Les Mis", de 2016, do
grafiteiro Banksy, parte de uma série de trabalhos que criticam o uso de gás
lacrimogêneo no campo de refugiados de Calais, na França.
O grafite — representando Cosette, a jovem heroína do
romance Les Misérables, com lágrimas nos olhos do gás lacrimogêneo usado em
campos de refugiados — apareceu da noite para o dia em frente à Embaixada da
França em Londres.
A arte era interativa. Embaixo da imagem havia um QR
Code, aquele código "quadrado" legível pela câmera do celular, que
remetia os espectadores a um vídeo online de uma batida policial no campo de
refugiados.
Apareceram ainda dois outros trabalhos de Banksy sobre
o tema, inclusive em Calais.
Eles foram extremamente bem recebidos (e até
abraçados) pelas autoridades políticas, incluindo a prefeita de Calais — que
não era conhecida por sua leniência em relação aos migrantes ou aqueles que
queriam ajudá-los.
Talvez da mesma maneira que Franco na Espanha, ela
estava respondendo ao prestígio e ao potencial turístico de ter
"Bansky" na sua cidade; ela prometeu preservar o grafite sob um
vidro, ao mesmo tempo que prometeu encobrir ou apagar obras de grafiteiros
menos conhecidos.
Ela até incluiu a obra como parte das visitas guiadas
pela cidade. (Assim como acontece com movimentos políticos, a arte política
também tem o potencial de ser sequestrada.)
A pergunta "o que é arte?" certamente não é
apenas uma questão de estética e técnica.
Ao dar forma à indignação, a arte encontra outro
propósito. Mas ainda tem outro: de cura.
Como Ettinger disse na discussão do New York Times:
"Quando a violência mata a confiança, a arte é o espaço em que a confiança
no outro e, por tabela, do próprio ser no mundo, pode ressurgir."
Karen Burshtein, BBC Culture
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