Maria Patrícia e João Siló comprimiam-se debaixo de uma árvore devorando-se
mutuamente. Eram duas horas da manhã e na solidão de um quadrante discreto da
Praça da Sé sentiam a excitação da liberdade para amar e entregarem-se um ao
outro.
Patrícia, 14 anos de plena juventude, dali a oito horas embarcaria no
ônibus que a levaria de regresso ao sertão do Piauí, de onde saiu com João
Siló, um ano atrás, para fazer a vida em São Paulo.
Saíram do sertão fugidos. Não havia na pequena cidade do interior do
Piauí quem cogitasse admitir o amor de Patrícia, a deusa adolescente, pelo
experimentado João Siló, 59 anos de idade. Fosse rico e tudo estaria acertado,
que a vida é farta de generosidade para com os que amealham riqueza e poder.
Mas João era um coitado, pobre de recursos e de instrução formal. Nem chegou a
completar o primeiro ano do ensino fundamental. Com meio século de existência seu
patrimônio pessoal se limitava a uma tapera que a custo mantinha-se empinada na
vertical. Casou sete vezes. Das cinco primeiras esposas despediu-se com
lágrimas, cuidando com zelo dos funerais, guardando luto clerical. A sexta,
Dolores, caiu quando o tino entrou em ebulição, fervendo a ponto de exalar
fumaça pelas orelhas, faíscas e pequenas labaredas pelo couro cabeludo. Dolores
consumia o que restava da vida enclausurada em um manicômio público, a cabeça
mergulhada em uma bacia com água e barras de gelo, que era para manter a
temperatura sob controle, evitando que a cabeça evaporasse. Por fim, a última
esposa, Josefa, o fez amargar a dor da traição. Incrédulo, viu quando a mulher
amada partiu seduzida pelo motorista do caminhão pipa que ostentava no corpo um
emaranhado de pulseiras e colares de latão batido que jurava ser ouro de puro
quilate extraído de serra pelada. Desde então o coração enrijeceu e se fechou
para o amor. Amargurado, João Siló vivia só como um ermitão, se ocupando do que
mais gostava, do que verdadeiramente dava prazer naquela vida tão sofrida e
arrastada, apresentar seu Mané Beiçudo, fazer seus bonecos endiabrados fartar o
povo de alegria e prazer.
Noivados e casamentos; comícios e reuniões políticas; inaugurações,
festejos cívicos e atos populares; aniversários; batizados; e nem mesmo o dia
reservado aos finados e os rituais fúnebres passavam ao largo da animança de
João Siló e seu teatro de bonecos salientes.
No funeral de Pedro Sarmento - o prefeito mais poderoso e popular do Nordeste
- foi contratado pela família para fazer o brinquedo no portão central do
Cemitério. O povo acorreu em massa para prestar os últimos sentimentos ao morto
e as condolências à numerosa família. Deitavam sobre o caixão coroas de flores
e lágrimas de despedida para depois seguirem, depressa, para a diversão, para o
fuzuê que João Siló aprontava com os bonecos malcriados. Eram criaturas inertes
que adquiriam vida própria, sem papas na língua, criticando os coronéis da
política local, sapecando couro nos poderosos, soltando cobras e lagartos na
polícia que reprimia e nas autoridades que corrompiam. Nem mesmo ao difundo,
ainda quente na cova oficial, dava tréguas.
Foi nessa apresentação que a vida de João Siló deu mais uma radical guinada,
uma virada de cento e oitenta graus. Enquanto apresentava-se, manipulando com
maestria os bonecos de luva, viu pelo ponto translúcido da empanada, de onde
acompanhava os movimentos da platéia, a mulher que de forma definitiva
arrebataria seu coração solitário e sofrido. Dentre os demais assistentes
ressaltava formosa a bela Maria Patrícia, uma garota com traços angelicais que,
compenetrada, divertia-se na primeira fila da plateia. Apesar de criança o
corpo já apresentava a sensualidade de mulher formada. Não menos de trezentas
pessoas firmavam pé se divertindo com as traquinagens dos bonecos. O
titeriteiro servia-se da fresta, por onde monitorava a platéia, para colar os
olhos na musa dos sonhos de todos os homens da região. E dedicando a ela se esmerou
numa apresentação de duas horas de duração. Jamais se apresentara por tanto
tempo e com tanto prazer e sucesso. A platéia aplaudiu em delírio minutos a
fio. Todos imaginaram que a ousadia criativa do arrojado bonequeiro se devia à
emoção da perda do perfeito-amigo, companheiro de todos. Mas o coração de João
Siló, tão somente ele, compreendia as razões e os motivos para performance tão
delicada e primorosa.
Sem entender as razões e o instante, Maria Patrícia também foi se
apaixonando por aquele invisível condutor de bonecos; se encantando pelo rosto
que desconhecia; pelo corpo que a empanada, em clara cumplicidade, escondia.
Mas a voz que fluía dos bonecos buliçosos era suficiente para entender que
estava diante da alma gêmea, a que atravessaria a existência em sua companhia.
De modo que quando, ao final do espetáculo, o homem emergiu suado por detrás da
empanada, Patrícia não se espantou com seus cabelos grisalhos e nem com aquele
corpo forte e calejado pela labuta e desatinos. Ao contrário, teve a certeza de
que seus sonhos e premonições continuavam confiáveis. Por muitos minutos ficaram inertes, pupilas
cruzadas, palavra ou reação alguma a se interpor entre os dois. Sabiam um do
outro e nada que dissessem ou fizessem seria mais forte que a comunicação única
que ali se estabeleceu.
Foi necessário que dona Santica saísse aos impropérios arrastando a
filha de volta para casa. Mas foi o tempo de ajeitar na mala a barraca e os
bonecos e lá foi o apaixonado bater à porta da casa dos Raimundo Nonato, à
porta do castelo de seu amor platônico. Quando falou ao pai de Maria Patrícia
do amor que explodira em ambos percebeu que teria pela frente uma disputa
desigual. O velho Raimundo Nonato custou a acreditar no que ouvia. Imaginou ser
mais uma lorota do filho mais velho, acossado pelo autismo que degenerava. Dando
aos sobrolhos expressão de gravidade - por dentro irrompia em gargalhadas - por
educação despachou a mulher para o quarto em busca da filha.
- Filhinha, o mestre do cassimiro
coco afirma que se apaixonou por você e você por ele - disse o pai com
dificuldades para segurar o riso que irrompia pelos poros da pele.
Ávido por uma palavra da filha que tudo esclarecesse, e que reduzisse a
cena às traquinagens do primogênito da cabeça perdida, o velho Raimundo Nonato
percebeu a inesperada surpresa no ar. Sem esperar que o atencioso pai
terminasse a frase e a menina Maria já estava com as pernas cruzadas nas
cadeiras do titeriteiro, irradiando felicidade, cobrindo-o de beijos e
carícias. Comportavam-se como conhecidos de décadas, assumindo na frente de
todos uma intimidade só permitida aos oficialmente casados, aos abençoados pela
santa madre igreja com papéis oficializados pelo cartório público. (Para completar a leitura do conto, clique aqui).
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Dramaturgo, o autor transferiu para seus contos literários toda a criatividade, intensidade e dramaticidade intrínsecas à arte teatral.
São vinte contos retratando temáticas históricas e contemporâneas que, permeando nosso imaginário e dia a dia, impactam a alma humana em sua inesgotável aspiração por guarida, conforto e respostas.
Os contos:
1. Tiradentes, o mazombo
2. Nossa Senhora e seu dia de cão
3. Sobre o olhar angelical – o dia em que Fidel fuzilou Guevara
4. O lugar de coração partido
5. O santo sudário
6. Quando o homem engole a lua
7. Anos de intensa dor e martírio
8. Toshiko Shinai, a bela samurai nos quilombos do cerrado brasileiro
9. O desterro, a conquista
10. Como se repudia o asco
11. O ladrão de sonhos alheios
12. A máquina de moer carne
13. O santuário dos skinheads
14. A sorte lançada
15. O mensageiro do diabo
16. Michelle ou a Bomba F
17. A dor que nem os espíritos suportam
18. O estupro
19. A hora
20. As camas de cimento nu
OUTRAS OBRAS DO AUTOR QUE O LEITOR ENCONTRA NAS LIVRARIAS amazon.com.br:
São vinte contos retratando temáticas históricas e contemporâneas que, permeando nosso imaginário e dia a dia, impactam a alma humana em sua inesgotável aspiração por guarida, conforto e respostas.
Os contos:
1. Tiradentes, o mazombo
2. Nossa Senhora e seu dia de cão
3. Sobre o olhar angelical – o dia em que Fidel fuzilou Guevara
4. O lugar de coração partido
5. O santo sudário
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11. O ladrão de sonhos alheios
12. A máquina de moer carne
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15. O mensageiro do diabo
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18. O estupro
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A – LIVROS INFANTO-JUVENIS:
Livro 1. As 100 mais belas fábulas da humanidade
I – Coleção Educação, Teatro & Folclore (peças teatrais infanto-juvenis):
Livro 1. O coronel e o juízo final
Livro 2. A noite do terror
Livro 3. Lobisomem – O homem-lobo roqueiro
Livro 4. Cobra Honorato
Livro 5. A Mula sem cabeça
Livro 6. Iara, a mãe d’água
Livro 7. Caipora
Livro 8. O Negrinho Pastoreiro
Livro 9. Romãozinho, o fogo fátuo
Livro 10. Saci Pererê
II – Coleção Infantil (peças teatrais infanto-juvenis):
Livro 1. Não é melhor saber dividir
Livro 2. Eu compro, tu compras, ele compra
Livro 3. A cigarra e as formiguinhas
Livro 4. A lebre e a tartaruga
Livro 5. O galo e a raposa
Livro 6. Todas as cores são legais
Livro 7. Verde que te quero verde
Livro 8. Como é bom ser diferente
Livro 9. O bruxo Esculfield do castelo de Chamberleim
Livro 10. Quem vai querer a nova escola
III – Coleção Educação, Teatro & Democracia (peças teatrais infanto-juvenis):
Livro 1. A bruxa chegou... pequem a bruxa
Livro 2. Carrossel azul
Livro 3. Quem tenta agradar todo mundo não agrada ninguém
Livro 4. O dia em que o mundo apagou
IV – Coleção Educação, Teatro & História (peças teatrais juvenis):
Livro 1. Todo dia é dia de independência
Livro 2. Todo dia é dia de consciência negra
Livro 3. Todo dia é dia de meio ambiente
Livro 4. Todo dia é dia de índio
V – Coleção Teatro Greco-romano (peças teatrais infanto-juvenis):
Livro 1. O mito de Sísifo
Livro 2. O mito de Midas
Livro 3. A Caixa de Pandora
Livro 4. O mito de Édipo.
B - TEORIA TEATRAL, DRAMATURGIA E OUTROS
VI – ThM-Theater Movement:
Livro 1. O teatro popular de bonecos Mané Beiçudo: 1.385 exercícios e laboratórios de teatro
Livro 2. 555 exercícios, jogos e laboratórios para aprimorar a redação da peça teatral: a arte da dramaturgia
Livro 3. Amor de elefante
Livro 4. Gravata vermelha
Livro 5. Santa Dica de Goiás
Livro 6. Quando o homem engole a lua
Livro 1. As 100 mais belas fábulas da humanidade
I – Coleção Educação, Teatro & Folclore (peças teatrais infanto-juvenis):
Livro 1. O coronel e o juízo final
Livro 2. A noite do terror
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Livro 4. Cobra Honorato
Livro 5. A Mula sem cabeça
Livro 6. Iara, a mãe d’água
Livro 7. Caipora
Livro 8. O Negrinho Pastoreiro
Livro 9. Romãozinho, o fogo fátuo
Livro 10. Saci Pererê
II – Coleção Infantil (peças teatrais infanto-juvenis):
Livro 1. Não é melhor saber dividir
Livro 2. Eu compro, tu compras, ele compra
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Livro 4. A lebre e a tartaruga
Livro 5. O galo e a raposa
Livro 6. Todas as cores são legais
Livro 7. Verde que te quero verde
Livro 8. Como é bom ser diferente
Livro 9. O bruxo Esculfield do castelo de Chamberleim
Livro 10. Quem vai querer a nova escola
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Livro 1. A bruxa chegou... pequem a bruxa
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Livro 3. Quem tenta agradar todo mundo não agrada ninguém
Livro 4. O dia em que o mundo apagou
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Livro 1. Todo dia é dia de independência
Livro 2. Todo dia é dia de consciência negra
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Livro 1. O mito de Sísifo
Livro 2. O mito de Midas
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Livro 4. O mito de Édipo.
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Livro 4. Gravata vermelha
Livro 5. Santa Dica de Goiás
Livro 6. Quando o homem engole a lua