Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press |
De janeiro a julho de 2021, 41.286 motoristas foram autuados por utilizar o celular enquanto dirigiam. A infração, considerada gravíssima está entre as três principais causas de acidentes de trânsito, ao lado do uso de álcool e do excesso de velocidade
O comportamento do motorista brasileiro mudou desde a chegada do telefone
celular, em meados dos anos de 1990, e, infelizmente, a transformação foi para
pior. Com a popularização dos smartphones e da internet móvel, os aparelhos
tornaram-se uma extensão do corpo humano, mas no trânsito, esse novo membro
pode custar a vida.
Dados do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) revelam
que só nos primeiros meses de 2021 — janeiro a julho, 41.286 condutores foram
flagrados utilizando o telefone enquanto dirigiam. O número corresponde a uma
média diária de 195 notificações, ou oito por hora. A “olhadinha” no aplicativo
de mensagens ou a ligação considerada inofensiva, já estão entre as três
principais causas de acidentes de trânsito, ao lado do uso de álcool e do
excesso de velocidade.
Especialistas consultados pelo Correio revelam que qualquer descuido pode
ser fatal. De acordo com o pesquisador e especialista em trânsito Artur Morais,
a cada segundo gasto para ler ou digitar uma mensagem, a uma velocidade de
60km/h, são percorridos seis metros sem que o motorista olhe para frente.
“Se ele gasta cinco segundos para ler uma mensagem, parece pouco. Mas ele
terá percorrido cerca de 80 metros sem olhar para o trânsito. Portanto, são 80
metros às cegas”, ressalta Morais.
Na avaliação do especialista, o uso do telefone está entre as principais
causas de acidentes nas vias no DF. “Houve, sim, uma piora na segurança do
trânsito, devido ao comportamento do motorista em utilizar o celular enquanto
dirige. Isso é muito perigoso. Temos, hoje, três fatores principais para
acidentes de trânsito: velocidade, à bebida e celular”, aponta.
Ainda de acordo com Artur Morais, pedestres e ciclistas são as principais
vítimas. “Em um atropelamento a 30 km/h, temos quase 100% de chance de a pessoa
sobreviver. Já a 70km/h, é quase impossível. Então, quando o motorista não
respeita o limite de velocidade da via, a faixa de pedestre, ele põe em risco o
pedestre e o ciclista”, explica. “Precisaríamos de mais campanhas de segurança
no trânsito: relativas à velocidade, bebida e ao uso do celular”, avalia.
A estudante Natalya Reis, 23 anos, é recorrente em infrações por uso
indevido do celular ao volante. Além das multas, a jovem admite ter se
envolvido em duas batidas e atropelado um cachorro. “Era noite, e eu tinha a mania
de ficar sempre monitorando meu celular. Na época, eu trabalhava com WhatsApp e
ficava verificando o telefone. Como estava muito escuro, não vi um cão
atravessar a rua. Rodei o carro na pista para não pegá-lo e fui parar em um
acostamento”, conta.
Natalya relata que o cachorro não morreu, mas afirma que o acidente a fez
mudar de comportamento. “Foi traumático. Eu cheguei em casa tremendo, nervosa e
chorei muito. Atualmente, tento não tocar meu celular enquanto estou dirigindo.
Eu perdi meus pais em um acidente de carro. Então, todo esse processo foi muito
difícil”, revela.
A advogada Ana Maria (nome fictício), 39 anos, viu de perto o perigo da
mistura celular e volante. Em 2006, quando ainda era estudante do curso de
direito em uma faculdade de Taguatinga, aguardava por uma colega que sempre
oferecia carona na volta para casa. Como a amiga não apareceu, decidiu voltar
de ônibus.
No trajeto, passou por um carro completamente destruído. Ao chegar mais
perto, constatou o pior: era o veículo da amiga da faculdade. A jovem fazia uso
do celular, ao passar por um cruzamento. A estudante, com apenas 22 anos, não
sobreviveu. “O momento que ela mais fez falta foi no convite de formatura, no
dia das fotos. Postamos um texto em homenagem a ela”, relembra. “Ela morreu
faltando pouco tempo mesmo para nos formarmos”, lamenta.
Para a advogada, o acidente deixou uma dolorosa lição, da qual se recorda
toda vez que pensa em pegar no celular enquanto dirige. “Sinto falta dela.
Sobretudo porque seríamos grandes amigas de profissão. Além de muito bom gosto,
ela tinha toda uma carreira pela frente. Era visionária, com ideias em nossa
área. Faria uma excelente prospecção de clientes, porque era muito comunicativa
e fazia amizades com muita facilidade”, recorda.
O que a
ciência diz
Para especialistas, o cérebro humano não consegue se concentrar em duas
atividades ao mesmo tempo, retirando o foco de uma ação e direcionando-o para
outra, que esteja em primeiro plano. É o que explica o neurologista Carlos
Uribe, do Hospital DF Star. “Temos uma capacidade limitada de prestar atenção e
filtrar as coisas que são importantes. Com isso, acabamos direcionando alguns
recursos de cognição para uma coisa de cada vez”, afirma.
“Existe uma definição de atenção dividida, na qual, em teoria, você
conseguiria fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Mas, na verdade, o que
fazemos é pular de um para outro tão rapidamente que parece que estamos
prestando atenção nos dois”, ressalta.
O especialista aponta que o risco é ainda maior quando são atividades que
envolvem a visão e aparelhos telefônicos. “Muitas vezes, você vê coisas que são
mais chamativas, que precisam de mais concentração. Parece algo rápido, que vai
levar apenas um segundo. Mas, na verdade, ficamos mais tempo concentrados nessa
outra atividade e, nesses segundos, podem acontecer os acidentes. O celular é
feito para isso. Para ‘roubar’ a nossa atenção”, explica.
Para a pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Transportes da
Universidade de Brasília Zuleide Feitosa, o principal problema na legislação
brasileira é não vetar, de forma ostensiva, o uso do celular ao volante, como
acontece em outros países. Nos Estados Unidos, em 24 estados é proibido
utilizar o celular enquanto dirige. “A medida mais adequada seria punir o
condutor que coloca em risco sua vida e a de outras pessoas enquanto dirige.
Mas, mesmo assim, decide falar ao celular”, diz.
Por duas vezes, a pesquisadora sentiu na pele os efeitos da negligência de
motoristas ao celular. Em 2017, um condutor distraído com o telefone não
percebeu que ela diminuiu a velocidade ao passar por um quebra-molas. O
resultado: bateu na traseira do carro de Zuleide.
O segundo acidente, em 2019, quase terminou em tragédia. “O motorista do
carro que estava na minha frente não estava prestando atenção na via e não
percebeu que uma criança atravessava a faixa de pedestres. Ele freou
bruscamente para não atropelar a criança. Com isso, o meu carro entrou embaixo
do carro dele. Como eu estava em baixa velocidade, não houve dano físico, só
material”, relembra.
Penalidades
Considerada uma infração gravíssima, o uso do celular, seja para ligações
seja para enviar mensagens, acarreta em multa de R$ 293,47 e sete pontos na
carteira. A infração para quem usa fones de ouvido conectados ao celular é
classificada como média, com a soma de quatro pontos na CNH e multa de R$
130,06. A transgressão não consta no rol de crimes de trânsito, previstos no
Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Para a advogada criminalista Hanna Gomes, quem utiliza o celular enquanto
dirige assume o risco de se envolver em acidentes. Ocorrências com vítimas
podem ser classificadas como lesão corporal, com pena de seis meses a dois anos
de prisão. “Para ser enquadrado como crime de trânsito, é preciso verificar se
o acidente se deu em razão das dinâmicas do próprio tráfego e por negligência,
imprudência ou imperícia do responsável pelo acidente. Por isso, os crimes de
trânsito, por mais graves que sejam, são considerados culposos e têm pena bem
menor que os crimes comuns”, explica.
Já os casos de morte por atropelamento podem ser classificados como
homicídio doloso (quando há intenção de matar) ou culposo (quando não há), a
depender das circunstâncias apuradas pela perícia. As penas podem variar de
dois a quatro anos de detenção, além da suspensão ou cassação da carteira de
motorista.
Ainda de acordo com a advogada, as penalidades não estão restritas aos
humanos. Acidentes envolvendo animais poderão ser tipificados como crime, a
depender da postura do motorista. “O condutor poderá ser enquadrado por crime
de maus-tratos, caso não preste socorro. Se apresentar a assistência
necessária, mesmo assim, poderá ser processado na esfera cível, devendo reparar
os danos morais e materiais ao tutor do animal, ou mesmo à coletividade, a
depender da vítima”, diz.
Ações do Detran-DF
O diretor de Educação de Trânsito do Detran-DF, Marcelo Granja, afirma que
o órgão realiza ações contínuas de conscientização e prevenção aos acidentes de
trânsito. Em parceria com a Secretaria de Educação do Distrito Federal, são
desenvolvidas atividades lúdicas, como contação de história e peças teatrais.
As ações também compreendem palestras dirigidas aos alunos da Educação de
Jovens e Adultos (EJA), que possuem carteira de habilitação.
“O fato de a pessoa não só falar ao celular, mas, também, digitar, a torna
completamente cega. Ele vai andar alguns metros sem enxergar, como se fechasse
os olhos”, ressalta. Com o retorno das aulas presenciais na rede pública, o
gestor reforça a importância de mais atenção por parte de condutores e
pedestres, a fim de evitar acidentes como atropelamentos.
Ainda de acordo com o gestor, as campanhas também são realizadas nas ruas
e nos bares. As apresentações abordam as três principais situações de risco no
trânsito, que são o uso de celular, o álcool e o excesso de velocidade. O órgão
também realiza abordagens diretas com os condutores, com o objetivo de
conscientizar sobre os riscos da prática.
Correio
Braziliense
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