Além do efeito da pandemia sobre o trabalho e a renda, especialistas apontam o desmonte da rede de proteção à população
Pode parecer estranho que mais da metade da população brasileira não saiba
se vai ter o que comer no dia seguinte. E que o país, reconhecido como
importante celeiro do mundo, tenha voltado ao Mapa Mundial da Fome, de onde
havia orgulhosamente saído em 2014. Com seus efeitos perversos, a pandemia
contribuiu para aumentar o grau de incerteza da população de exercer o direito
constitucional de se alimentar: elevou ainda mais a taxa de desemprego,
pressionou a renda familiar para baixo e a inflação para o alto, afetando
especialmente o preço dos alimentos. Não é, porém, segundo especialistas no
tema, o fim da pandemia que resolverá o problema da fome no país.
“Houve um desmonte da rede de proteção à população brasileira contra a fome”,
afirma Walter Belik, professor do Instituto de Economia da Unicamp e consultor
em sistemas alimentares da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e
Alimentação (FAO).
Além de reconstituir essas políticas públicas, a solução também passa pela
mudança gradual do sistema produtivo brasileiro, “hoje orientado exclusivamente
para exportação de commodities” agrícolas, diz José Graziano da Silva,
ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome,
ex-diretor-geral da FAO e atual diretor do Instituto Fome Zero. Redirecionar
subsídios agrícolas das commodities para alimentos saudáveis e fortalecer o
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são algumas das medidas
defendidas por Belik e Graziano para aumentar a segurança alimentar dos
brasileiros.
De acordo com Nilson Maciel de Paula, professor da Universidade Federal do
Paraná (UFPR) e pesquisador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e
Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), a construção de um modelo
econômico excludente, que apostou no mercado para resolver questões sociais,
está na base da questão. É da Rede Penssan a pesquisa que mostra uma imensa
redução da segurança alimentar em todo o país, provocada, segundo ele, pela
combinação das crises econômica, política e sanitária.
Realizada nos três últimos meses do ano passado, em 2.180 domicílios, como
parte do Projeto VigiSan, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no
Contexto da Pandemia da Covid-19 mostra que, no período da pesquisa, 55,2% -
116,8 milhões - de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a
alimentos. Destes, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos
em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1
milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave).
“Os números são mais que o dobro dos observados em 2009”, diz Maciel de Paula.
Em 2004, 2009 e 2013, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do
IBGE revelou importante redução da insegurança alimentar em todo o país em
2013, a parcela da população em situação de fome havia caído para seu nível
mais baixo (4,2%). Entre 2013 e 2018, conforme dados da Pnad e da Pesquisa de
Orçamentos Familiares (POF), a insegurança alimentar grave cresceu 8% ao ano. A
POF 2017-2018 mostrou que 36,7% (25,3 milhões) dos domicílios (84,9 milhões de
pessoas)apresentavam algum grau de insegurança alimentar e que 4,6% (10,3
milhões de pessoas) sofriam com insegurança alimentar grave.
“A partir daí, a aceleração foi ainda mais intensa”, observa o pesquisador. De
2018 a 2020, como mostra a pesquisa Vigisan, o número de pessoas em situação de
insegurança alimentar grave saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões. Dados de
outro estudo, feito pela Universidade Livre de Berlim, em colaboração com a
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UNB),
também no fim de 2020, mostram que a insegurança alimentar atingia 59% dos
domicílios brasileiros. Do total de domicílios pesquisados, revela o estudo,
85% enfrentaram redução no consumo de alimentos saudáveis.
Na América latina e no Caribe, conforme Graziano, a situação da insegurança
alimentar brasileira é pior que a da Venezuela, país que tem índices parecidos
com os do Haiti, tradicional referência de fome na região. “Uma pesquisa do
Programa Mundial de Alimentos (PMA) revelou que em 2018/2019 a Venezuela chegou
a ter um terço da população em situação de insegurança alimentar. No Brasil,
não fossem a ação do setor privado, das organizações e da sociedade civil e a
estrutura montada ao longo dos anos 2000, o país estaria numa situação pior que
a da Venezuela”, afirma.
Na história recente da segurança alimentar, Graziano destaca três períodos. O
primeiro no fim dos anos 1990, quando a fome foi tratada como problema não
existente e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea),
criado em 1993, foi extinto. A segunda etapa aconteceu no início dos anos 2000
com a implantação do projeto Fome Zero e a recriação do Consea, que passou a
ser o principal órgão do sistema alimentar, de articulação política entre as
estruturas de governo e as da sociedade civil e do setor privado.
“A terceira fase começou com a deposição da presidente Dilma, quando os
programas de combate à fome deixaram de ser políticas públicas e passaram a ser
desmontados gradativamente, com cortes de dotações orçamentárias - situação que
persiste na gestão atual”, afirma ele. “Como primeiro ato depois da posse,
Bolsonaro extinguiu o Consea, desmontando todas as políticas de Estado”,
acrescenta.
Criado em 2003, para promover acesso à alimentação saudável e estimulara
agricultura familiar, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi um dos
mais afetados. “Foi minguando até chegar ao limite de se pensar na privatização
da entidade que exercia a compra, a Conab”, diz Graziano. “O PAA, que chegou a
ter perto de R$ 1 bilhão de recursos, hoje está zerado”, diz Belik. Também o
Programa Nacional de Alimentação Escolar, que promove o acesso de 43 milhões de
crianças à alimentação saudável, não evolui, conforme o professor. “Os recursos
destinados pelo Estado ao programa não têm mais reajuste por criança desde
2016.”
Para os especialistas, a grande causa do avanço da insegurança alimentar da
população é falta de renda. “O Bolsa Família ficou com valores congelados e,
para o Auxílio Emergencial, o governo não usou o cadastro único - que é
rigoroso em medira pobreza das famílias e só transfere renda com condicionantes,
como a obrigação de manter crianças na escola. Preferiu um aplicativo da Caixa
Econômica Federal, que acabou beneficiando também quem não precisava”, comenta
Belik.
O Ministério da Cidadania, que coordena as políticas nacionais de promoção de segurança
alimentar e nutricional, informa que em 2020 foram investidos mais de R$ 365
bilhões em políticas socioassistenciais. O Bolsa Família tem atendido mais de
14 milhões de pessoas e, além dos R$ 295,09 bilhões investidos em Auxílio
Emergencial no ano passado e dos R$ 26,47 bilhões repassados neste ano, haverá
aporte de mais R$ 20,2 bilhões para o pagamento de mais três parcelas. O
programa Brasil Fraterno distribuiu neste ano quase dois milhões de cestas para
mais de 850 mil famílias. O PAA, segundo o ministério, contou com R$ 247,6
milhões, repassados a mais de 54 mil famílias.
Para Belik, não faltam políticas nem alimentos. O desafio é dar prioridade e
aumentar recursos dos programas existentes e transformar a abundância da
produção de alimentos em comida no prato. “O Estado precisa ter estoques
reguladores para baixar o preço quando necessário e restituir a rede de
proteção social à família, bem como criar um colchão monetário para que a
pessoa não caia no abismo.” Também é importante que o agronegócio veja com
carinho o mercado interno, que é enorme e diversificado, acrescenta. “A alta
das commodities favorece o país, mas não combate a fome”, afirma.
Por Marlene Jaggi, Revista Valor Setorial
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