Não conheci
pessoalmente o poeta Ferreira Gullar. Mas sempre nutri por seu trabalho e por
suas posições, firmes e claras, forte admiração. Estive, há muitos anos, no
lançamento de uma coletânea de seus textos, reunidos sob o título Toda poesia.
Fiquei de longe. Havia muita gente na ocasião e resolvi ser um a menos a
perturbá- lo com tietagens e não pedi autógrafo. Não me arrependo.
A mim, Gullar
sempre pareceu ser confiável. Percebi, desde logo, que havia em seus múltiplos
trabalhos como escritor e crítico uma coerência linear, que faz com que você
conheça na intimidade o verdadeiro criador. É raro encontrar no vasto mundo das
artes talentos que possuam a coragem genuína de expor com franqueza e sem
enfeites sua personalidade. O que se vê com frequência são artistas
deslumbrados com o próprio umbigo, vaidosos e cheios de estereótipos sobre o
mundo ao redor.
À guisa de
explicação, é preciso deixar esclarecido que tomar o autor pelo trabalho
exposto é uma das grandes ilusões das plateias mundo afora, principalmente
quando se descobre que autor e obra são dois seres antípodas. A desilusão é
ainda maior quando se descobre que, por trás de uma obra-prima qualquer, pode
estar um ser mesquinho e cheios das mais baixas veleidades humanas. Ou mesmo o
oposto: obras cáusticas com um ser angelical a compondo. Muitos chegam a
duvidar que determinada obra seja de um autor, tal a discrepância entre ambos.
A filosofia
distingue bem ética de estética. Neste sentido, é possível entender por que
alguns grandes artistas, criadores de verdadeiras obras-primas, sejam, na
intimidade, seres humanos desprezíveis, capazes de atitudes e baixezas
impensáveis. A prudência ensina a não confundir criador e criatura.
Ferreira Gullar
tinha esse quê raro de sinceridade. Seus textos e sua pessoa estavam ali,
derramados em tinta preta sobre a folha branca. Talvez venha daí a sua enorme
aceitação pública. Quando ainda havia a esquerda, como matiz ideológico e
pessoal, Gullar se posicionou, não como defensor cego das orientações do
Partidão, mas no sentido de que acreditava, com sinceridade, na redenção do ser
humano e sua libertação do capitalismo selvagem e predador.
Por sua vivência e
liberdade de pensar, desde logo identificou nos governos petistas uma fantasia
que levaria o país à ruína moral e econômica. No poema 'Não há vagas', de 1963,
Ferreira Gullar traz para o lirismo dos versos, a realidade do brasileiro comum
desde sempre:
'O preço do
feijão/não cabe no poema. O preço do arroz/não cabe no poema./Não cabem no
poema o gás, a luz o telefone, a sonegação, do leite, da carne, do açúcar, do
pão./O funcionário público/não cabe no poema/com seu salário de fome/sua vida
fechada/em arquivos./Como não cabe no poema o operário/ que esmerila seu dia de
aço/e carvão/nas oficinas escuras/– porque o poema, senhores,/está
fechado:/'não há vagas'/Só cabe no poema/ o homem sem estômago/ a mulher de
nuvens/ a fruta sem preço/ O poema,/senhores,/ não fede/nem cheira.'
A franqueza de sua
prosa afastou-o da maioria dos políticos atuais, principalmente os populistas e
demagogos. Talvez tenha sido essa a razão por que muitos deles preferiram ir
assistir aos funerais do ditador Castro, na longínqua Cuba — um homem a quem é
debitado milhares de mortes — do que ver descer a terra um dos maiores poetas
da atualidade. Melhor assim para a biografia de Gullar.
A frase que foi
pronunciada
'A arte existe
porque a vida não basta.' Ferreira Gullar
Ari Cunha, no
Correio Braziliense
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O livro contém o texto original de Nicolai Gogol, a peça teatral “O inspetor Geral”. E mais um ensaio e 20 artigos discorrendo sobre a realidade brasileira à luz da magnífica obra literária do grande escritor russo. Dessa forma, a Constituição brasileira, os princípios da administração, as referências conceituais da accountability pública, da fiscalização e do controle - conteúdos que embasam a política e o exercício da cidadania – atuam como substrato para o defrontar entre o Brasil atual e a Rússia dos idos de 1.800.