O filme é inspirado na vida do magnata da imprensa William Randolph Hearst |
Cidadão Kane, o primeiro filme de Orson Welles, não foi, no entanto, bem recebido na época.
Mal conseguiu recuperar o orçamento gasto com sua
produção, e a publicidade negativa na imprensa, em decorrência de seu tema, o
acompanhou por anos como uma maldição.
E apesar das muitas indicações que recebeu, ganhou
apenas um Oscar na cerimônia de 1941: de melhor roteiro.
Agora, 80 anos depois, um novo filme inspirado
justamente no processo de escrita do roteiro de Cidadão Kane é um dos favoritos
desta temporada de premiações de Hollywood.
Dirigido por David Fincher para a Netflix, Mank conta
a batalha de Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman) contra o alcoolismo, problemas
de saúde e memória enquanto ele se isola em um rancho para terminar a obra de
sua vida, o filme que pouco a pouco, como ele vai descobrir, será o seu canto
do cisne, e também, aquele que vai render a ele um lugar na história.
Mank é acima de tudo uma homenagem a Mankiewicz, o
homem que muitas vezes foi deixado de lado nos livros de cinema em face da personalidade
e engenhosidade avassaladoras de Orson Welles.
Mas o que há de especial em Cidadão Kane? Por que o
filme não perdeu seu encanto, apesar dos anos que se passaram? Por que ainda é
cultuado em universidades, cinematecas e por cinéfilos de todo o mundo?
1 - O roteiro revolucionário de Mankiewicz
Uma das grandes questões da história do cinema é
quanto Mankiewicz teve a ver com a edição final de Cidadão Kane e quanto Welles
participou do roteiro original.
Qualquer que tenha sido a influência de um sobre o
outro, o filme propôs uma das mais revolucionárias — e ousadas — estruturas
dramáticas que a história do cinema havia visto até então.
Cidadão Kane se concentra na vida de Charles Foster
Kane (interpretado por Welles), um magnata da imprensa que tem uma enorme
fortuna e influência, mas que não alcança o cargo político tampouco o amor que
anseia.
É uma versão fictícia da figura do magnata da imprensa
William Randolph Hearst, que, aliás, desempenhou um papel essencial na
tentativa de fazer Cidadão Kane cair no esquecimento.
Mas, em vez de ser um filme biográfico convencional, a
obra de Welles e Mankiewicz é um quebra-cabeças que reúne vários narradores,
perspectivas e saltos no tempo.
Conta, também, com uma coleção de frases memoráveis por sua
sagacidade e oferece uma visão contundente do estilo e do mundo interior de seu
personagem principal.
Mas este não é um manual acadêmico de técnica e
estrutura: o roteiro de Cidadão Kane tem mais a oferecer como entretenimento do
que como um manual de estilo.
2 - A subversão dos gêneros cinematográficos
O filme apresentou um jogo com os gêneros
cinematográficos até então inédito — e que, ao longo dos anos, o tornou quase
inclassificável.
No início, alguns o definiram como um "drama de
mistério", mas agrupar todos os gêneros que ele engloba é complicado.
A trama começa com os acordes pessimistas de um tema
de Bernard Herrmann. Você pode ver a silhueta irregular de um castelo no topo
de uma colina com névoa. Estamos no território do terror gótico. O castelo poderia
muito bem ser propriedade do Conde Drácula.
Em seguida, deslizamos para o castelo por meio de uma
montagem estranha: uma tempestade de neve, uma bola de neve, até a boca de Kane
enquanto ele suspira sua última palavra: "Rosebud".
Dois minutos depois, a obra não é mais um filme de
terror, mas uma experiência surreal digna de Salvador Dalí e Luis Buñuel. Mas
não muito.
Poucos segundos depois, Cidadão Kane se transforma em
um noticiário que percorre a biografia de Kane e nos mostra Xanadu, sua
monumental propriedade na Flórida (nos moldes do castelo de Hearst em San
Simeon, na Califórnia).
No entanto, quando estamos nos adaptando ao falso
documentário, o filme muda novamente
Tem um flashback dickensiano da infância rural de Kane
em 1871. E, na sequência, passamos para uma comédia de costumes enquanto Kane
assume o controle do jornal New York Inquirer. Mais tarde, o filme se
transforma em um drama político, depois em uma farsa de bastidores, e
finalmente em um melodrama sombrio...
E, ligando os diversos gêneros, há uma história de
detetive sobre um repórter investigativo tentando descobrir o que Rosebud
poderia significar.
Nunca antes na história do cinema se havia visto
tamanha complexidade narrativa.
3 - Uma revolução na técnica do cinema
Em 1946, um historiador do cinema francês, Georges
Sadoul, classificou Cidadão Kane como "uma enciclopédia de técnicas
antigas" e, embora tenha tentado minimizar a importância do filme, ele
identificou um dos segredos que permitiram à obra transcender no tempo.
É que a façanha de contar uma história tão complexa
foi acompanhada de um propósito igualmente desproporcional: brincar com as
câmeras, as luzes, as abordagens, enfim com as regras que haviam ditado as
rígidas leis cinematográficas de Hollywood até então.
O filme é uma enciclopédia de técnicas: uma escola de
cinema de 114 minutos que oferece várias aulas sobre profundidade de campo e
retroprojeção, closes extremos e diálogos sobrepostos.
Não é de se admirar que os estudantes de cinema amem Cidadão
Kane. Assistir ao filme é como fazer um semestre inteiro de cinema em uma única
tarde.
Isso também fez com que o filme não fosse recebido da
mesma forma pelo público em geral, que às vezes pode achar que é muito
pretensioso.
4 - O gênio criativo e a juventude de Orson Welles
Talvez uma das razões pelas quais o filme seja tão
vibrante se deva ao fato de que seu próprio diretor também estava aprendendo a
fazer cinema.
Seu primeiro filme foi uma tentativa de revolucionar a
direção, da mesma forma que já havia tentado fazer no rádio durante sua estadia
em Nova York, sobretudo com a adaptação de A Guerra dos Mundos, em 1938.
Mas se já era uma estrela do teatro e do rádio, Welles
não tinha muita noção das técnicas cinematográficas.
Dizem que uma assistente chamada Miriam Geiger teve
que fazer um manual das diferentes lentes e tomadas que ele poderia
experimentar.
Welles chegou a Hollywood com a promessa de poder
fazer o filme que quisesse, sem interferências, algo que hoje seria impensável.
No entanto, foi logo fisgado pelas possibilidades que
o cinema oferecia como meio e usou todas em Cidadão Kane. Um estúdio de cinema,
ele brincou, era "o maior trem elétrico que uma criança já teve".
Welles foi capaz de imprimir no seu primeiro filme um
dinamismo e uma vitalidade que não conseguiu repetir depois e que, talvez, não
tenha voltado a se repetir na história do cinema.
Nenhuma outra reflexão sobre o fracasso, o
arrependimento e a crueldade da passagem do tempo jamais teve uma exuberância
tão juvenil como a de Cidadão Kane.
Surpreendentemente, Welles tinha apenas 25 anos quando
seu primeiro filme foi lançado nos cinemas.
Em artigo na revista The New Yorker sobre Cidadão
Kane, Pauline Kael afirma que o sucesso do filme é "o resultado da
descoberta e do deleite da diversão de fazer filmes de Welles".
Sua verdadeira magia, no entanto, está na maneira como
esse deleite vai e vem entre o cineasta e seu tema.
Grande parte de Cidadão Kane fala de um gênio que se
vangloria de seu poder e confiança, e é feito por um gênio que também se
orgulha de seu poder e confiança.
Hoje em dia, nenhum diretor novato na casa dos vinte
anos teria o controle total de um grande projeto. E nenhum diretor novato
poderia chegar a Hollywood com a ignorância ingênua e a arrogância de Welles.
Em 1941, Welles era um principiante e especialista,
graduado e professor. E, se ele nunca mais teve a liberdade e energia
ilimitadas para fazer outro filme como Cidadão Kane, ninguém tampouco teve.
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