O livro que deu origem à história: "Wir Kinder vom Bahnhof Zoo"
Drama real de adolescente alemã que se prostituiu para alimentar vício em heroína tornou-se best-seller nos anos 1970 e virou filme na década seguinte, com trilha de David Bowie. Agora, Amazon Prime revisita a história.
No
final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o drama de uma adolescente
identificada como Christiane F. ganhou as manchetes na Alemanha, deixando o
país em estado de choque. O livro autobiográfico de 1978 Wir Kinder vom Bahnhof
Zoo (traduzido no Brasil para Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída)
foi considerado escandaloso, mas chamou a atenção sobre como a sociedade alemã
estava falhando com suas crianças.
Embora
o livro tenha sido realmente escrito por dois jornalistas da revista alemã
Stern, com base em dias de entrevistas com a protagonista Christiane
Felscherinow, a narrativa em primeira pessoa se revelou um relato perturbador
da realidade do uso de drogas e suas consequências.
Uma vida devastada
Com
a atenção desviada pela Guerra Fria e pelo terrorismo de extrema esquerda, a
sociedade alemã dos fins dos anos 1970 ficou bastante abalada ao saber da
existência de crianças como Christiane F.: aos 12 anos de idade, já fumava
haxixe. Aos 13 anos, injetou pela primeira vez heroína. Aos 14, prostituía-se
para financiar o vício.
Aos
6 anos de idade, Christiane mudou-se do norte da Alemanha para Berlim, onde
morava em Gropiusstadt, colosso habitacional proletário de 18,5 mil moradias no
bairro de Neukölln. Com a separação dos pais, sua segunda casa logo se tornou a
Bahnhof Zoo, ou estação ferroviária do Jardim Zoológico, lugar de encontro de
traficantes e adolescentes que se prostituíam para financiar o vício. Além de
haxixe e LSD, a heroína era a droga do momento.
Christiane
tinha somente 15 anos ao ser entrevistada pelos repórteres, mas também tinha
muita coisa para contar, e o fez minuciosamente. Traduzido para 15 línguas, o
livro virou best-seller em mais de 30 países. Em abril de 1981, estreava o
filme homônimo dirigido por Ulrich Edel, estrelado por Natja Brunckhorst no
papel de Christiane e com a participação de David Bowie. Sua música Heroes
tornou-se, praticamente, a canção-tema do filme.
Tanto
o livro quanto o filme levantaram questões sobre como uma próspera sociedade
alemã-ocidental poderia permitir que seus jovens caíssem em tal estado de
desespero e miséria.
Algumas
pessoas acusaram os produtores da versão cinematográfica de glamourizar esse
estilo de vida nas telas de cinema, simplesmente reduzindo-o a uma espécie de
conto de transição para a vida adulta.
Mesmo
assim, o livro ficou 95 semanas no topo das listas de mais vendidos da
Alemanha, e o filme foi um dos maiores sucessos internacionais da história do
cinema alemão. Mas a vida continuou difícil para Christiane Felscherinow nas
décadas seguintes. Ela chegou a lançar outro livro suas experiências posteriores,
no qual descreve que nunca de fato se livrou completamente do vício.
Adaptação da Amazon Prime
O
serviço de streaming Amazon Prime revisita a história mundialmente famosa de
Christiane F. por meio de uma minissérie com oito episódios, disponibilizada
nesta sexta-feira (19/02).
A
atriz austro-australiana Jana McKinnon interpreta o papel principal. O produtor
de cinema Oliver Berben, filho da famosa atriz alemã Iris Berben, não poupou
custos ao retratar os altos e baixos do uso de drogas ao longo da série que se
estende por sete horas.
Mas
será que a geração do streaming ainda pode ficar chocada, comovida ou até mesmo
seduzida pela história de Christiane F. - ou o público viu coisas piores nos 40
anos desde o lançamento do livro?
Um conto moral alemão
Na
Alemanha, Christiane Felscherinow se tornou uma celebridade relutante depois de
compartilhar sua história em 1978. Kai Hermann, um dos dois jornalistas da
Stern que registrou o testemunho de Christiane, disse que essa era uma
"história da qual você simplesmente não podia escapar. É algo que sempre
volta assombrar (o leitor)."
De
certa forma, a triste realidade de Christiane também refletia a vida dentro dos
limites do Muro de Berlim à época: suas tentativas de escapar das limitações da
sua própria existência foram encaradas como um reflexo das pessoas presas na
cidade isolada do resto da Alemanha Ocidental.
Mas
muita coisa mudou desde então: o Muro de Berlim caiu há muito tempo, a Alemanha
assumiu um papel mais importante no cenário global - e o livro de Christiane F.
tornou-se material de leitura obrigatória em muitas escolas alemãs, como um
conto moral de advertência sobre o risco de consumir drogas.
Nas
últimas décadas, temas como abuso de drogas também se tornaram comuns na
televisão e no cinema com obras como o filme Trainspotting, de Danny Boyle, e
Réquiem para um Sonho, de Darren Aronofsky.
Sexo, drogas e rock'n'roll?
O
filme original de Uli Edel também foi aclamado internacionalmente por aspectos
artísticos, como ao mostrar David Bowie dando um show em Berlim. A participação
do cantor ajudou a atrair o público. Na vida real, o próprio Bowie lutou contra
o vício em drogas por anos.
Em
uma entrevista de 2013 para a Vice, Christiane Felscherinow apontou que sentiu
uma ambivalência com essas manobras de marketing: "Você é admirado, mesmo
que use drogas, contanto que seja especial - um músico ou um pintor. Mas se
você for um simples usuário de drogas e não tiver nenhum desses talentos, é
considerado inútil pela sociedade."
Vício
A
versão da Amazon Prime da biografia de Christiane F. depende mais do
"efeito binge" das séries contemporâneas. A série aprofunda as
questões levantadas pela história, explora as relações entre os personagens e
lança a pergunta incômoda: "Onde tudo deu errado?"
Paradoxalmente,
a série aborda a questão do vício, tornando o público viciado na própria
história de Christiane F.. Há cortes rápidos, transições bruscas para imitar a
experiência de estar sob o efeito de drogas psicoativas, mas a obra evita fazer
proselitismo sobre os males causados por essas substâncias.
Em
vez disso, a série retrata o contraste entre o tédio que acometia a jovem - que
ela apontou como a causa que a levou às drogas - e a fuga que essas substâncias
ilegais lhe proporcionaram. A série deixa espaço para que os espectadores tirem
suas próprias conclusões.
Christiane
também disse na entrevista da Vice de 2013 que as drogas simplesmente deram a
ela uma válvula de escape para sua educação disfuncional: "Eu era tão
solitária quando criança. Eu só queria ter a sensação de pertencimento; estava
lutando com o mundo."
E
essa luta é algo com que qualquer pessoa - jovem ou velha - provavelmente pode
ter empatia. O produtor Oliver Berben disse que a história é sobre "como
os jovens tentam encontrar seu lugar neste mundo".
"E
este é um mundo difícil e brutal."
Por
Sertan Sanderson, na Deutsche Welle
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