quinta-feira, 11 de março de 2021

Dove-OSCAR 17: O primeiro satélite verdadeiramente 100% brasileiro

Lançamento do foguete indiano PSLV-DL C51 levanto o Amazônia-1 – Créditos: ISRO

Satélite inteiramente projetado e construído por um paulista de Botucatu foi colocado em órbita em 1990 e transmitia mensagens de paz para a humanidade

 

No dia 28 de fevereiro foi lançado a partir do Centro Espacial de Satish Dhawan, na Índia, o satélite brasileiro Amazônia-1, que tem como principal função monitorar nossas florestas a partir do espaço. O Amazônia-1 é o mais moderno satélite do Brasil e certamente um grande feito da engenharia aeroespacial nacional. Mas você sabia que, ao contrário do que foi informado em grande parte da imprensa, ele não é o primeiro satélite 100% brasileiro?

Segundo o INPE, que desenvolveu o satélite, o Amazônia-1 é o primeiro satélite de observação da Terra completamente projetado, integrado, testado e operado pelo Brasil. Mas quando consideramos todas as outras categorias de satélites, o primeiro 100% nacional foi projetado e construído por um radioamador de Botucatu, no interior de São Paulo. Ele foi a única pessoa no mundo a ter um satélite só seu, mas que levou sua mensagem de paz ao redor do mundo.

 

Júnior Torres de Castro

Júnior Torres de Castro sempre foi uma pessoa acima da média. Graduou-se em Engenharia Civil, Física e Engenharia Elétrica. Fez uma série de outros cursos de pós-graduação no exterior, até atingir o nível de PhD. Viajava pelo mundo inteiro e falava várias línguas com fluência. Era também um empreendedor de sucesso, possuindo empresas na área de construção civil e mineração. Mas sua paixão era mesmo o radioamadorismo.

Seu interesse pelo rádio veio do berço. Seu pai era diretor dos Correios e Telégrafos numa época em que grande parte da comunicação de longa distância era feita através de rádios. Ainda criança ele ganhou de sua mãe o livro “Conheça seu Rádio” e, seguindo as instruções do livro, ele construiu seu primeiro rádio com 12 anos de idade.

Júnior tinha 24 anos e já era engenheiro formado quando, em 1957, captou os sinais transmitidos pelo Sputnik, o primeiro satélite artificial em órbita da Terra. Apesar do seu deslumbramento com o Sputnik, aqueles bips transmitidos pelo satélite intrigaram o jovem radioamador. O que seriam eles? Teriam algum significado?

Quando descobriu que os bips transmitiam informações de telemetria do satélite, Júnior Torres começou a planejar aquilo que se tornaria o sonho da sua vida: construir um satélite que se comunicasse com as pessoas aqui na Terra, utilizando transmissão de voz.

 

Empenho, dedicação e superação

Ele sabia que para realizar esse sonho precisaria de muito dinheiro e de muito conhecimento. Na época, era operador de telégrafo dos Correios de Botucatu, mas era do que ganhava perfurando poços artesianos que vinham grande parte dos recursos que ajudaram a realizar seu sonho. E graças a seu empenho e determinação, em pouco tempo ele estaria entre os mais importantes engenheiros de satélites da época.

Ele passou a frequentar os principais congressos internacionais da área. De início todos estranharam a presença do brasileiro. Afinal, era apenas um radioamador de um país sem tradição na pesquisa espacial. Mas como Júnior estava sempre lá, eles tiveram que se acostumar com a ideia, e com o tempo, ele passou a ser respeitado e admirado pelos cientistas.

 

O Little Brick (Tijolinho)

Até que em 1989, Junior Torres de Castro resolveu que era hora certa para realizar seu sonho. Ele já tinha uma boa reserva financeira e conhecimento mais que suficiente, além de ser amigo de todos os principais cientistas e construtores de satélites do planeta. Foi então que ele apresentou, em um congresso em Logan, nos Estados Unidos, um protótipo do seu satélite para um auditório lotado de cientistas do mundo inteiro.

Ele havia trabalhado no projeto e na construção desse protótipo nos últimos 5 anos. Tudo feito em sua casa, em São Paulo, utilizando peças compradas na Santa Ifigênia, uma importante rua de comércio de componentes eletrônicos da capital paulista. Naquele momento, em Logan, ele submetia o resultado desse trabalho aos maiores nomes da ciência aeroespacial da época.

Sobre a mesa, Júnior colocou seu pequeno satélite. Pequeno como uma cafeteira, mas que cabia o sonho de uma vida. Do fundo do auditório, ele acionou e comandou o equipamento através de um hand talk, e via rádio, recebia, diante de uma plateia admirada, a voz sintetizada trazendo as informações de telemetria do satélite.

Numa época em que os satélites chegavam a ter o tamanho de um caminhão, algo tão pequeno e funcional era revolucionário. Júnior introduziu então, o conceito de “microssatélites” e seu protótipo recebeu o apelido carinhoso de “Little-Brick”, que significa “Tijolinho”.

Só que o Little-Brick infelizmente não poderia ser colocado em órbita. Ele foi construído com peças que não aguentariam as condições extremas do espaço. Para ser enviado ao espaço, seu satélite precisaria ser construído com peças desenvolvidas especificamente para o ambiente espacial, que operassem no vácuo e que suportassem as enormes variações de temperatura e o bombardeio de raios cósmicos. E essas peças especiais, além de extremamente caras, eram de uso restrito, tendo o comércio controlado pelo governo e vetada a exportação para outros países.

 

A materialização de um sonho

Mas graças ao sucesso daquela apresentação no congresso e aos inúmeros amigos que Júnior fez naquele meio, ele conseguiu convencer as autoridades americanas a autorizar a venda das peças que precisaria. Convenceu, mas nem tanto. Para montar seu satélite, ele precisou se mudar para os Estados Unidos. As peças só seriam entregues lá e ele só poderia trabalhar com elas sob a supervisão do governo americano. Parece chato, mas Júnior não exitou. Mudou-se para lá e iniciou a montagem.

Júnior Torres amava tudo o que fazia e por isso, sempre fazia com excelência. Era uma pessoa cativante. Sempre muito atencioso e prestativo. Durante suas viagens pelo mundo, em meio à Guerra Fria, ele entrevistou e gravou cerca de 3 mil crianças, mandando mensagens de paz para a humanidade. Júnior queria que essas mensagens fossem transmitidas para todo o planeta a partir do seu satélite. Convencidos da importância daquele projeto, os fabricantes de componentes resolveram contribuir com sua realização. Alguns doaram os componentes, outros venderam a preço de custo.

Com todo o apoio que recebeu, Júnior conseguiu montar seu satélite em apenas 11 meses, e gastando “apenas” US$ 225 mil, o que era uma pequena fortuna na época, mas bem menos que os US$ 4 milhões que ele esperava gastar. Júnior tinha em mãos o satélite que ele havia idealizado 33 anos antes, quando ouviu os bips do Sputnik através do seu rádio. Faltava apenas lançá-lo ao espaço.

 

This is DOVE in space

Mas Júnior era tão bem relacionado e tão respeitado no meio que não foi difícil conseguir um foguete. Oficialmente chamado de DOVE-OSCAR 17, o satélite pegou carona no foguete Ariane 40 H10, lançado do Centro Espacial de Kourou, na Guiana Francesa, e foi colocado em órbita em 20 de janeiro de 1990. Tudo isso acompanhado de perto pelo irradiante Júnior Torres, que pulava e gritava, comemorando a realização de seu sonho.

O DOVE era um cubo com 23 cm de lado e 12,92 Kg. Possuía 16 painéis solares que alimentavam suas baterias, o que lhe dava a capacidade de operar por até 6 anos. Quem sintonizasse o DOVE, na frequência 145.825 MHz, invés de bips, receberia a voz sintetizada do satélite. Ele se apresentava dizendo “this is DOVE in space” (esse é DOVE no espaço) e informava 59 parâmetros de telemetria em voz e também codificados. Além disso, transmitia as mensagens de paz nas vozes de 3 mil crianças de todo mundo, e as coordenadas geográficas de sua posição no espaço. Isso tinha uma finalidade educacional. Júnior distribuiu em escolas do Brasil e do mundo, milhares de rádios capazes de sintonizar o satélite e também mapas onde as crianças poderiam localizar onde estava o DOVE a partir das coordenadas enviadas.

O nome do satélite, DOVE, era um acrônimo para “Digital Orbiting Voice Encoder”, mas também era uma referência à palavra em inglês “dove” que significa pomba, o pássaro símbolo da paz. Outro apelido que o satélite ganhou na época foi de “Peace Talker” que significa “aquele que fala da paz”. “OSCAR” é a designação dada para os satélites de radioamadores, e o DOVE era o 17° dessa categoria.

 

Um exemplo de vida

A realização de seu sonho, seu sucesso profissional e a proximidade que tinha dos principais cientistas da época não afastaram Júnior de suas origens. Através de seu rádio e utilizando a identificação PY2BJO, ele conversava diariamente com seus amigos radioamadores do Brasil e do mundo, mas também com seus amigos cientistas e com astronautas em órbita da Terra. Durante vários anos Júnior visitou, nos meses de agosto, o Centro Espacial da Guiana Francesa, onde trabalhava voluntariamente em retribuição pelo lançamento do seu satélite feito gratuitamente pela Arianespace.

Por oito anos (dois além do previsto), o DOVE levou sua mensagem de paz para o mundo. Em março de 1998, devido a uma falha nas baterias, ele deixou de enviar seu sinal. Entretanto, o satélite ainda está em órbita e, dependendo do alinhamento de seus painéis solares, eles podem fornecer energia suficiente para que ele transmita, até hoje, seus dados de telemetria.

Júnior faleceu em 2018 deixando esposa, filhos, netos, e um satélite, que ainda vai orbitar nosso planeta por muitos anos. O DOVE-OSCAR 17, mais do que o primeiro satélite 100% brasileiro é prova do imenso legado de dedicação à ciência e à paz de Júnior Torres de Castro, o brasileiro que realizou o que poucas pessoas no mundo ousariam sonhar.

Por Marcelo Zurita, no Olhar Digital, com contribuições de Sebastião A. Silva (PY2KEY). 


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