Charge "O Ímã" ilustra o poder do capital sobre os bens culturais |
Recente decisão por devolução dos Bronzes de Benim à Nigéria pela Alemanha traz à luz um debate antigo, geralmente relegado ao mundo dos museus: quem é o dono dos objetos de arte pilhados durante guerras e ocupações?
A
quem pertencem os bens culturais? A partir de quando se trata de arte saqueada,
e como no futuro os museus devem lidar com ela? Recentemente, essas questões
transpiraram do mundo museológico para a esfera pública, com a devolução à
Nigéria dos Bronzes de Benim, ao que a Alemanha se comprometeu até 2022.
O
episódio é uma conquista, já que há anos as exigências nesse sentido vinham
sendo rechaçadas – e isso apesar de cerca de 90% do patrimônio cultural da
África Subsaariana se encontrar em museus do Ocidente. E um duplo lançamento
literário recente mostra ser bem mais antiga a discussão sobre a aquisição e
propriedade legal de bens culturais.
Com
o sumário – porém marcante – título Beute (Butim), a publicação consiste de um
atlas ilustrado, mostrando a iconografia da pilhagem das peças, e uma
antologia, reunindo textos sobre saque de arte e patrimônio cultural. Fruto de
três anos de trabalho de equipe na Universidade Técnica de Berlim (TU Berlin),
os dois volumes partem do ano 600 antes de Cristo e vão até 2015.
Para
o ambicioso projeto, Isabelle Dolezalek, Merten Lagatz, Bénédicte Savoy,
Philippa Sissis e Robert Skwirblie colaboraram com mais de 80 autores
internacionais. Entre eles encontravam-se também 25 estudantes, os
"futuros funcionários de museus e pesquisadores", como define Sissis.
"Aqui
não só se difunde saber, mas ao mesmo tempo um monte de gente cresceu
junto." Ou seja, trabalhou-se no sentido de uma mudança de percepção, em
que os estudantes "formaram a própria opinião, e agora podem ir para o
mundo e dizer: 'É inquestionável que se reflita sobre onde é o lugar das
coisas.'"
Também uma questão de
linguagem
"O
lugar das coisas" é algo sobre que já pensavam autores da Antiguidade,
como Cícero ou Políbio. Mais tarde, a reflexão prosseguiu com escritores como
Friedrich Schiller, Johann Wolfgang von Goethe, Victor Hugo e Émile Zola. O
olhar sobre o passado literário mostra como até mesmo os apelos e as
formulações se repetem entre os textos.
"Nós
chamamos isso de 'narrativa do resgate', explica Robert Skwirblies. "Quer
dizer, existe o argumento: 'X diz que tomamos objetos de Y, senão eles seriam
quebrados'." Desse modo, sugeria-se que o ato do saque era altruísta,
visando proteger e preservar os objetos. A "narrativa do resgate"
ajudava a ocultar que, para tal, muitas vezes se empregava grande violência.
A
linguagem, ou melhor, as linguagens e idiomas desempenham um papel importante
na pesquisa da equipe. Na França, por exemplo, no debate sobre bens culturais
pilhados, fala-se até hoje de conquête artistique (conquista artística); na
Itália, em contrapartida, de furto.
"Cada
palavra encapsula em si uma perspectiva", explica a historiadora de arte
Bénédicte Savoy, uma das principais figuras do estudo da arte saqueada. Ela
contribuiu significativamente para dar partida ao atual debate sobre a
restituição: em 2018, o presidente francês, Emmanuel Macron, encarregou a ela e
ao economista senegalês Felwine Sarr um estudo aprofundado sobre a devolução de
patrimônio cultural africano.
A vida secreta dos
objetos
A
meta de Beute é iluminar a história dos bens culturais, não só no contexto de
sua criação ou apresentação, mas também considerando as relações de propriedade
cambiantes em que se encontraram e encontram. Para expressar essa complexidade,
a equipe da TU cunhou o termo "translocação".
"Com
esse conceito, dispomos de um instrumento que nos permite ter todas essas
perspectivas", explica Savoy. Por um lado, aqui se argumenta do ponto de
vista geográfico, observando o movimento de um lugar a outro, e do outro, em
termos de genética humana, a transformação de uma herança, nesse caso não de
indivíduos, mas no sentido de um patrimônio cultural.
"Os
objetos não permanecem enquanto o tempo passa: também eles mudam",
enfatiza Savoy, "e quando hoje se fala de restituição, trata-se da
devolução de um 'outro mesmo', por assim dizer."
Muitas
vezes as peças também passam por uma transformação bem específica, ao serem
subjetivadas: "Temos aqui ilustrações de objetos que choram, ou falam,
dizendo 'quero ir para casa', ou 'aqui me sinto mal', ou 'estou
mutilado'", prossegue a historiadora.
"Quando
se perde um bem cultural, perde-se uma parte da própria identidade, e isso
persiste por muito tempo", completa Isabelle Dolezalek. Desse modo, se
esvazia a argumentação usual de que, em épocas anteriores, regiam outras leis
ou costumes, os quais, por exemplo, legitimavam a retirada de arte do contexto
colonial, pois "não é fácil esquecer, quando se começa a arranhar a
identidade de uma sociedade, lhe tomando sua cultura".
"Museus não são
armazéns mortos"
A
hábil encenação das imagens de bens culturais pilhados é outro ponto central a
que Beute se dedica: que motivos são empregados, e como são interpretados?
Um
motivo recorrente é o triunfo, o sentimento despertado pelo saque da Grécia
antiga por Roma, as conquistas napoleônicas ou as campanhas de pilhagem
coloniais, a destruição pelos nacional-socialistas, ou pelo retorno de tesouros
de arte florentinos do Tirol do Sul.
"Outra
coisa importante é que, quando os objetos estão num local, há sempre a
possibilidade de processos de fertilização, ou de trabalhar neles",
acrescenta o historiador Merten Lagatz. Como exemplo, ele cita La Nature, uma
revista de ciência popular da época colonial, em que um cientista se encena
estudando objetos que acabam de chegar ao museu.
A
atividade de colecionar arte serve para explicitar a própria superioridade,
"mas para a sociedade de que as peças se originam, não há tais
atestados", frisa Lagatz. "Os objetos simplesmente não estão mais lá.
Mostrar essa lacuna nas imagens também é um resultado de nossa pesquisa."
Os
autores do atlas e da antologia definem como muito positivo o fato de, nos
últimos anos, ter havido movimento dentro da Europa na discussão sobre como
lidar com a arte em contextos ilícitos. "Estamos felizes de que os museus
não sejam um armazém morto de objetos, ou que sejam entendidos assim",
observa Robert Skwirblies.
Com
a publicação de Beute, os cinco editores querem mostrar que os debates sobre o
lugar verdadeiro de bens culturais sempre existiram, e que é importante
continuar travando-os.
Por Annabelle Steffes-Halmer, na Deutsche Welle
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