Garimpeiros invadiram aldeia na TI Munduruku e queimaram casas de indígenas contra o garimpo no local, em 26 de maio. — Foto: Coletivo de audiovisual do povo Munduruku |
Apenas na terra Munduruku há 442 garimpos ativos, segundo entidades. Desgoverno transformou território em Jacareacanga em exemplo do que pode dar errado na gestão de terras e povos protegidos.
A Terra Indígena (TI) Munduruku, no Pará, sofre desde
março com invasões, incêndios e ataques praticados por garimpeiros armados. A
exploração mineral nessas áreas é crime, mas prospera sem reação efetiva de
autoridades, tanto que a tomada de ações contra as ilegalidades precisou ser
determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) mais de uma vez somente neste
ano.
1.
Devastação cresce sem operações efetivas contra o garimpo
A Terra Indígena (TI) Munduruku tem 2,3 milhões de
hectares protegidos e homologados por lei. O garimpo não é recente na região,
vem de 1970, mas especialistas e o próprio Ministério Público Federal (MPF)
alertam os órgãos responsáveis para uma explosão da atividade ilegal seguida
por violência desde 2019.
Em maio, a Polícia Federal realizou a Operação
Mundurukânia em Jacareacanga para conter o garimpo na terra indígena. Os
manifestantes pró-garimpo entraram em conflito com os agentes federais, tentaram
invadir a base e depredar patrimônio da União, aeronaves e equipamentos
policiais. As aldeias foram cercadas e uma estrada foi interditada, impedindo o
andamento da operação, que durou apenas dois dias.
“A PF ficou só dois dias, 24 e 25, depois não apareceu
mais, infelizmente, deixando uma cidade sem lei, do jeito que é [Jacareacanga],
cheio de pariwat [não indígenas] levando droga, levando bebida, levando
prostituição para dentro da área (...) Eles [grupo pró-garimpo] têm armas, têm
carros, têm helicóptero, tem toda uma estrutura”, denunciou em um vídeo
Alessandra Korap, uma das lideranças dos Munduruku que vem sofrendo ameaças.
No mesmo dia em que os policiais federais
interromperam a operação, os garimpeiros invadiram e incendiaram uma aldeia.
“A gente foi
surpreendido, a gente não esperava que fosse acontecer por conta daquela
operação (Mundurukânia). A gente pensava que teria mais segurança. As
autoridades já estavam cientes de que a gente estava sendo ameaçados”, disse
Maria Leusa, principal liderança Munduruku contra o garimpo. Ela e a família
tiveram que sair da TI e buscar abrigo em um lugar não divulgado por segurança.
Em 1º de junho, o STF determinou que a PF adotasse
imediatamente todas as medidas necessárias para garantir a vida e segurança das
pessoas dentro da terra indígena e deu 48 horas para que a PF no Pará prestasse
informações sobre a operação.
Procurada pelo G1, a PF não quis comentar e disse que
dará entrevista sobre a operação Mundurukânia 1 e 2 em momento oportuno.
Até o momento, nenhuma proteção prevista na
Constituição foi o bastante para evitar que território Munduruku concentrasse
atualmente 442 pontos de garimpo ativos e mais 31 requerimentos de exploração
minerária, segundo dados de maio da Rede Amazônica de Informação Socioambiental
Georreferenciada (Raisg) e do Sistema de Informação Geográfica de Mineração.
Entre janeiro de 2019 e maio de 2021, a área devastada
pelo garimpo na TI Munduruku aumentou 363% em relação a 2018, segundo o
Instituto Socioambiental (ISA). Uma verdadeira explosão da garimpagem em uma
única terra indígena.
"Somente em maio, foram registrados 362 hectares
em alertas de garimpo dentro da TI Munduruku. Isso equivale a 362 estádios do
Maracanã. Se pensar em dia, foram 10 estádios de futebol destruídos pelo
garimpo a cada 24 horas”, diz Antonio Oviedo, cientista ambiental coordenador
de monitoramento do ISA.
Apenas em Jacareacanga, cidade que tem 98% do
território sobreposto ao da TI, o aumento foi de 269% de áreas degradadas pelo
garimpo desde janeiro de 2019. O mais impressionante é que, até 2016, o
município não tinha desmatamento, como mostram as imagens de satélite abaixo.
O G1 questionou o Ministério do Meio Ambiente sobre o
aumento do garimpo na TI Munduruku desde 2019 e sobre as ações do STF
determinando que o governo tomasse medidas imediatas para conter a garimpagem e
a violência na região. A pasta não comentou as questões.
Destruição
causada pelo garimpo avança pela Amazônia
O problema não ocorre apenas na Munduruku. Na
sexta-feira (18), o STF determinou:
- a proteção dos povos indígenas tanto na TI paraense
quanto na TI Yanomami, em Roraima, que também passa por conflitos,
- a retirada urgente dos invasores, e
- a garantia da integridade física das pessoas
ameaçadas nesses locais.
"Outras regiões que tinham garimpo em proporções
muito pequenas comparadas com as terras dos Munduruku e dos Yanomami também têm
percebido um aumento do garimpo. É o caso das TIs de Rondônia, como a Igarapé
Lourdes e Sete de Setembro, e as do Maranhão, como a Awá, que até bem pouco
tempo não tinha garimpeiros", alerta Antonio Oviedo, do ISA.
O desmatamento causado pela mineração, tanto a legal
quanto o garimpo, registrou recordes ao longo de 2019 e 2020, além de avançar
sobre áreas de conservação na Amazônia. A série histórica do Instituto de
Pesquisas Espaciais (Inpe) aponta que o mês com a maior devastação já
registrado pelo Deter/Inpe foi maio de 2019, com 34,47 km² desmatados, seguido
por julho de 2019, com 23,98 km². Já 2020 teve os piores junho (21,85 km²),
agosto (15,93 km²) e setembro (7,2 km²) da história.
2.
Organizações criminosas tornam o garimpo uma atividade empresarial
Em março, um documento do MPF que pedia atuação
urgente de forças federais para conter o avanço da invasão de garimpeiros no igarapé
Baunilha, em Jacareacanga, dentro do território Munduruku, fala em crime
organizado. Segundo o órgão, os garimpeiros estavam fortemente armados e fotos
indicavam a entrada de grande número de pás carregadeiras.
"O movimento dos garimpeiros está sendo
monitorado por helicópteros e indica uma ação orquestrada de grupos criminosos
em associação com a pequena parcela de indígenas que atuam a favor do
garimpo", disse o MPF na ocasião.
O Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à
Mineração, um órgão composto por pesquisadores de universidades federais e
estaduais de todo o país, publicou em abril o levantamento "O cerco do
ouro: garimpo ilegal, destruição e luta em terras Munduruku".
O documento aponta que um dos garimpos mais antigos na
TI Munduruku está em funcionamento desde 1990. Mas a “profissionalização” do
crime de garimpo é uma marca sobretudo nos anos recentes, agora apoiada por uma
rede de empresários com expressivo poder aquisitivo e influência política.
"De empresários locais a deputados federais e
senadores, esses atores vêm ganhando espaço na agenda do primeiro escalão do
Executivo e do Legislativo federal desde 2019", destaca o documento.
Na semana passada, a Justiça Federal expediu mandado
de prisão preventiva para o vice-prefeito de Jacareacanga, suspeito de dar
apoio ao garimpo ilegal nas terras indígenas da região. Ele está foragido.
Em dezembro, um delegado da própria Polícia Federal
foi preso temporariamente por suspeita de vender informações a donos de
garimpos no Rio Tapajós. De acordo com a PF, um servidor público federal teria
recebido ao menos R$ 150 mil de garimpeiros da região de Itaituba, como forma
de "blindá-los" de eventuais ações policiais.
Segundo Antonio Oviedo, cientista ambiental do ISA, os
grupos por trás do garimpo estão cada vez mais organizados.
"Tudo indica que estão sendo financiados por
organizações poderosas. Não é fácil garimpar nas regiões remotas da Amazônia.
Precisa de toda uma logística para levar barco, combustível e alimento para
dentro da floresta. Tem garimpos com internet, antena parabólica, rádio. O
garimpo de agora não é mais de pá e enxada, é com retroescavadeiras, maquinário
caríssimo", diz Oviedo.
3.
Comércio do ouro ilegal alimenta exploração em terras indígenas
Em 8 de junho, o MPF emitiu uma recomendação à Agência
Nacional de Mineração (ANM) alertando sobre a escalada do garimpo na Amazônia
desde 2019 e o “esquentamento” deste ouro ilegal nos mercados nacional e
internacional, prática que acoberta o ouro extraído ilegalmente e o
comercializa como produto legal.
O documento afirma que, entre 2019 e 2020, 49
toneladas de ouro ilegal foram retiradas da Amazônia, “esquentadas” e
comercializadas dentro e fora do país.
Os dados citados pelo MPF são de um levantamento da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que também revelou que o garimpo
ilegal na Amazônia desmatou 21 mil hectares de floresta e gerou um prejuízo
socioambiental de R$ 9,8 bilhões para a região entre 2019 e 2020.
Enquanto isso, na outra ponta do processo, garimpeiros
revelaram em uma audiência pública na Câmara dos Deputados em setembro de 2019
que os garimpos na Amazônia lucram de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões por ano. Na
ocasião, políticos e garimpeiros defenderam transformar a atividade ilegal do
ouro na região em empresas legalizadas.
"O comércio do ouro ilegal no Brasil é uma cadeia
da qual o país não tem controle", diz Luisa Molina, pesquisadora do Comitê
Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração.
Um parecer do MPF de 2020 mostra que, para cada quilo
de ouro extraído do bioma amazônico, os prejuízos socioambientais podem variar
de R$ 1,7 milhão a R$ 3 milhões. O parecer recomendou a urgência da demarcação
das terras indígenas - há mais de 300 terras sem homologação - e da
digitalização da compra do ouro.
"Vimos que os garimpeiros envolvidos na
exploração do ouro dentro das áreas protegidas também têm requerimentos
minerários no entorno destas áreas. Envolve terra indígena, floresta nacional e
seus entornos. Estamos falando de um cerco", diz Luisa Molina.
4.
Atuação de líderes políticos ou órgãos de governo gera incentivo direto ou
indireto
Especialistas no tema apontam que é preciso frear o
incentivo direto ou indireto de líderes ou órgãos de governo. Eles apontam como
exemplo um projeto de lei assinado em fevereiro do ano passado pelo presidente
Jair Bolsonaro, o PL 191/2020, que regulamenta a mineração e a geração de
energia elétrica em terras indígenas. O texto ainda precisa ser analisado pelo
Congresso Nacional.
De acordo com o atual regime normativo sobre o
garimpo, a atividade mineradora nestas áreas não apenas é ilegal, mas configura
crime contra o meio ambiente e a ordem econômica, além de ser inconstitucional,
já que a Constituição Federal protege especialmente as terras indígenas.
Outro exemplo de ameaça apontada pelos ambientalistas
e indigenistas foi a medida publicada em abril de 2020 justamente pela Fundação
Nacional do Índio (Funai) que permite a invasão, exploração e até
comercialização de terras indígenas ainda não homologadas pelo presidente da
República.
Questionada sobre a explosão do garimpo na TI
Munduruku apontada pelo ISA e pela apuração do G1, a Funai informou que
"desconhece a metodologia utilizada no levantamento e que não comenta
dados extraoficiais".
"A Funai informa ainda que acompanha a situação
de conflito junto à comunidade indígena Munduruku, em Jacareacanga (PA), e que
tem atuado em parceria às forças de segurança pública no local", disse o
órgão em nota.
As críticas à atuação de órgãos de governo ou líderes
também incluem ao ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, exonerado do
cargo na quarta-feira (22).
No ano passado, em meio a uma megaoperação para barrar
o avanço do garimpo em terras indígenas, Salles exonerou o diretor de Proteção
Ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo. A operação coordenada por Azevedo
conseguiu, na época, paralisar todas as operações de garimpo e exploração
ilegal de madeira em três terras indígenas no Pará.
Desde 2019, o MPF tem atuado em ações que envolvem
diretamente a ação do estado em incentivos ao garimpo na TI Munduruku. A mais
recente delas envolve Salles: em agosto, o MPF questionou o comando da
Aeronáutica sobre um voo realizado pela FAB no dia 6 daquele mês para
transportar garimpeiros de Jacareacanga para uma reunião com Salles, em
Brasília.
alles esteve em Jacareacanga um dia antes do episódio
para acompanhar uma operação do Ibama contra o garimpo. Lá, ele se encontrou
com os alvos da operação e foi cercado por um grupo pró-garimpo. O ministro,
então, conversou com o grupo e chegou a defender a extração ilegal em terra
indígena.
Depois da conversa do ex-ministro com os garimpeiros,
o Ministério da Defesa suspendeu a operação de fiscalização de combate a
garimpos ilegais na terra indígena Munduruku.
O Ministério do Meio Ambiente disse na época, em nota,
que não houve “nenhuma reunião com garimpeiros, mas protesto dos indígenas
inconformados com a fiscalização sobre o garimpo que eles mesmos realizam.”
A
escalada da violência dos garimpeiros contra indígenas
Pelo menos quatro famílias deixaram as aldeias
próximas ao município de Jacareacanga após terem suas casas incendiadas em uma
invasão ocorrida em maio. Uma aldeia composta por oito casas foi quase que
totalmente destruída por garimpeiros na ocasião.
“Chegaram com combustível, atirando, com criança, as
crianças que estavam com nós (...) recebemos muito áudio dizendo que tinham que
nos matar", relata a coordenadora da Associação das Mulheres Wakoborũn,
Maria Leusa Kabá, que teve a casa e todos os pertences incendiados em 26 de
maio.
Os ataques não pararam por aí. Em março, garimpeiros
já haviam destruído a sede Associação das Mulheres Wakoborũn. Em 9 de junho, um
ônibus que levava lideranças e caciques até Brasília para protestar contra
projeto que dificulta demarcação de terras foi atacado por garimpeiros. O grupo
seguiu viagem dias depois, com escolta policial. No dia 14, a aldeia de Maria
Leusa foi novamente atacada e animais que eram criados pelos indígenas foram
mortos.
No último dia 15, a Justiça Federal determinou o
retorno de agentes federais para Jacareacanga para conter os ataques
criminosos. O órgão salientou que aquele era o segundo pedido restabelecimento
da ordem na região e que o primeiro, do dia 29 de maio, foi desobedecida pelo
governo federal, como entendeu a Justiça.
“Verifico que a ausência do Estado na região dá espaço
ao fortalecimento vertiginoso da violência e sensação de impunidade pelo grupo
que atua na região explorando de forma ilícita o minério de ouro em terra
indígena, mediante ameaça a integridade física das lideranças indígenas”, disse
a decisão Justiça Federal.
Localizada no alto curso do rio Tapajós, a TI
Munduruku é habitada tanto por aldeias como por indígenas em isolamento
voluntário.
De acordo com o atual regime normativo sobre o
garimpo, a atividade não apenas é ilegal, mas configura crime contra o meio
ambiente e a ordem econômica, além de ser inconstitucional, já que a
Constituição Federal protege especialmente as terras indígenas.
Por
Laís Modelli, G1
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