As mudanças climáticas irão remodelar fundamentalmente a vida na Terra nas próximas décadas mesmo se a humanidade conseguir conter as emissões de gases estufa que esquentam o planeta, segundo o esboço de um relatório histórico do painel de climatologistas da ONU, ao qual a AFP teve acesso.
Extinção de espécies, uma disseminação maior de
doenças, calor insustentável à vida, colapso dos ecossistemas, cidades
ameaçadas pelo aumento do nível do mar - estes e outros impactos climáticos
devastadores estão se acelerando e devem se tornar dolorosamente reais antes de
que uma criança nascida hoje complete 30 anos.
As escolhas que as sociedades fazem hoje irão
determinar se nossa espécie conseguirá prosperar ou apenas sobreviver ao longo
do século 21, adverte o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas
(IPCC).
Mas limiares perigosos estão mais perto do que se
pensava e consequências extremas resultantes de décadas de emissões
desenfreadas de carbono são inevitáveis no curto prazo.
Muitas delas já estão sobre nós.
"O pior ainda está por vir e afetará as vidas dos
nossos filhos e netos muito mais do que as nossas", diz o relatório.
De longe o catálogo mais abrangente já feito sobre
como as mudanças climáticas estão interferindo no nosso mundo, o relatório é na
verdade uma denúncia de 4.000 páginas da gestão que a humanidade tem feito do
planeta.
Mas o documento, concebido para influenciar decisões
políticas críticas, só deve ser publicado em 2022 - tarde demais para as
decisivas conferências da ONU deste ano sobre o clima, a biodiversidade e os
sistemas alimentares, afirmam alguns cientistas.
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Transformando aliados em inimigos -
O esboço do relatório vem a público em um momento de
"eco-despertar" e serve como um choque de realidade ante as
excessivamente imprecisas promessas de zerar as emissões de carbono feitas por
governos e corporações em todo o mundo.
Os desafios que ele destaca são sistêmicos,
interconectados ao próprio tecido da vida cotidiana.
Também são profundamente injustos: os menos
responsáveis pelo aquecimento global sofrerão desproporcionalmente, esclarece o
IPCC.
Mesmo despejando quantidades recorde de gases de efeito
estufa na atmosfera, nós estamos minando a capacidade das florestas e dos
oceanos de absorvê-los, transformando nossos maiores aliados naturais no
combate ao aquecimento global em inimigos.
O relatório alerta que os grandes impactos climáticos
anteriores alteraram o meio ambiente por milhões de anos, extinguindo a maioria
das espécies, trazendo o questionamento sobre se a humanidade estaria plantando
as sementes de sua própria extinção.
"A vida na Terra pode se recuperar de uma
drástica mudança climática evoluindo para novas espécies e criando novos
ecossistemas", destaca.
"Os seres humanos não podem".
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'Consequências irreversíveis' -
Há pelo menos quatro lições principais no esboço do
relatório, submetido a uma ampla revisão e é improvável que seja alterado antes
de sua publicação.
A primeira é que com um aquecimento de 1,1º C em curso
o clima já está mudando.
Uma década atrás, os cientistas acreditavam que
limitar o aquecimento global em 2 graus Celsius com base nos níveis de meados
do século 19 seria suficiente para salvaguardar o nosso futuro.
A meta é contemplada no Acordo de Paris, de 2015,
adotado por cerca de 200 países que prometeram coletivamente a conter o
aquecimento "muito abaixo" de 2ºC - e 1,5ºC se possível.
Na tendência atual, estamos nos encaminhando para um
aquecimento de 3ºC na melhor das hipóteses.
Modelos anteriores previram que provavelmente nós não
veríamos uma mudança climática suficiente para alterar a Terra antes de 2100.
Mas no esboço de seu relatório, o IPCC diz que um
aquecimento prolongado acima de 1,5º C terá "consequências
progressivamente sérias, com duração de séculos e, em alguns casos,
irreversíveis".
No mês passado, a Organização Meteorológica Mundial
projetou uma probabilidade 40% maior de a Terra superar o limiar de 1,5º C por
pelo menos um ano até 2026.
Para algumas plantas e animais, provavelmente já seria
tarde demais.
"Mesmo com um aquecimento de 1,5º C, as condições
vão mudar além da habilidade de muitos organismos de se adaptar", destaca
o relatório.
Os recifes de coral - ecossistemas dos quais depende
meio bilhão de pessoas - são um exemplo.
Os povos originários do Ártico enfrentam um risco de
extinção cultural enquanto o ambiente no qual construíram seus modos de vida e
sua história derreter debaixo de suas botas para neve.
Um mundo em aquecimento também aumentou a extensão das
temporadas de incêndios, dobrou as áreas passíveis de queimar, e contribuiu
para perdas nos sistemas alimentares.
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Preparação -
O mundo precisa enfrentar esta realidade e se preparar
para seus impactos - a segunda grande lição do relatório.
"Os níveis atuais de adaptação serão inadequados
para responder aos riscos climáticos futuros", alerta.
As projeções para meados do século - mesmo com um
cenário otimista de um aquecimento de 2º C - fazem disso um eufemismo.
Dezenas de milhões de pessoas a mais podem enfrentar
fome crônica até 2050 e 130 milhões a mais poderão experimentar a pobreza
extrema em uma década se permitirmos o aprofundamento da desigualdade.
Em 2050, as cidades costeiras na "linha de
frente" da crise climática terão centenas de milhões de pessoas expostas
ao risco de tempestades cada vez mais frequentes, mais mortais devido à
elevação do nível dos mares.
Cerca de 350 milhões mais pessoas morando em áreas
urbanas serão expostas à escassez de água devido a secas severas com um
aquecimento de 1,5º C, e 410 milhões com um aquecimento de 2º C.
Esse meio grau a mais na temperatura também
significará mais 420 milhões de pessoas expostas a ondas de calor extremas e
potencialmente letais.
"O aumento dos custos da adaptação para a África
são estimados em dezenas de bilhões de dólares ao ano com um aquecimento
superior a 2ºC", adverte o relatório, sem menções de onde o dinheiro
viria.
- Ponto
de não retorno -
Em terceiro lugar, o relatório delineia o perigo dos
impactos complexos e em cascata, juntamente com os limites do ponto de não
retorno no sistema climático, conhecidos como pontos de virada, que os
cientistas apenas começaram a compreender.
Foram identificados uma dúzia de cenários no sistema
climático de mudanças irreversíveis e potencialmente catastróficas.
Pesquisas recentes mostraram que um aquecimento de 2º
C poderia levar o gelo derretido no topo da Groenlândia e no oeste da Antártica
- com água congelada suficiente para elevar os oceanos em 13 metros - a passar
do ponto de não retorno.
Outros pontos de virada poderiam levar a bacia
amazônica a mudar de floresta tropical para savana e bilhões de toneladas de
carbono se liberarem do permafrost siberiano, produzindo mais aquecimento.
No futuro mais imediato, algumas regiões - leste do
Brasil, sudeste da Ásia, o Mediterrâneo, centro da China - e as zonas costeiras
em quase toda a parte serão atingidas por três, quatro ou mais calamidades de
uma vez: seca, ondas de calor, ciclones, incêndios florestais, inundações.
Mas os impactos do aquecimento global também são
amplificados por todas as outras formas com as quais a humanidade destruiu o
equilíbrio terrestre.
Estes incluem "perdas de hábitat e resiliência,
superexploração, extração de água, poluição, espécies invasivas não nativas, e
dispersão de pragas e doenças", enumera o informe.
Não há solução fácil para esta emaranhado de
problemas, admite Nicholas Stern, ex-economista-chefe do Banco Mundial, autor
do emblemático "Relatório Stern" (Stern Review on the Economics of
Climate Change, no original em inglês).
"O mundo está confrontado com um conjunto
complexo de desafios entrelaçados", diz Stern, que não contribuiu com o
relatório. "A menos que você os enfrente juntos, não vai se sair muito bem
em nenhum deles".
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'Mudança transformadora' -
Há muito poucas notícias positivas nas 4.000 páginas
do relatório, mas o IPCC destaca que muito pode ser feito para evitar os piores
cenários e nos prepararmos para os impactos que não podem mais ser evitados -
esta é a lição final.
A preservação e a restauração dos chamados
ecossistemas de carbono azul (que sequestram carbono), tais como florestas de
algas e manguezais, por exemplo, aumentam o armazenamento de carbono e protegem
contra tempestades, assim como fornecem hábitats para a vida selvagem, sustento
para comunidades costeiras e segurança alimentar.
A transição para dietas mais baseadas em plantas
também poderia reduzir as emissões relacionadas a alimentos em até 70% até
2050.
Mas simplesmente trocar um carro a gasolina por um
modelo elétrico ou plantar bilhões de árvores para compensar o
'business-as-usual' não irá resolver o problema, adverte o IPCC.
"Nós precisamos de uma mudança transformadora em
processos e comportamentos em todos os níveis: individual, comunitário, nos
negócios, instituições e governos", exorta o informe.
"Nós precisamos redefinir nosso estilo de vida e
consumo".
Por Marlowe Hood com Patrick Galey e Kelly Macnamara, AFP
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