Há muito
tempo, a floresta amazônica deixou de ser o lar de milhares de indígenas. A
escassez de alimentos, o desmatamento e o avanço das cidades sobre as matas são
alguns fatores que motivaram povos tradicionais a migrar para áreas urbanas. Em
Manaus, no Amazonas, eles podem ser encontrados em todas as regiões da cidade.
A Fundação Estadual do Índio estima que de 15 a 20 mil indígenas de diversas
etnias vivam em áreas urbanas amazonenses, como os sateré-mawé, apurinã,
kokama, miraña, dessana, tukano e piratapuia. “Acredito que 90% dos bairros de
Manaus tenham indígenas morando”, informou o presidente da Fundação Estadual do
Índio, Raimundo Atroari.
Apesar de
buscar melhores condições de vida na cidade, a maioria dos indígenas vive em
situação de pobreza, tem dificuldade de conseguir emprego e a principal renda
vem do artesanato. “Geralmente, as comunidades estão localizadas em área de
risco. Nunca é numa área boa. A gente sente muita essa dificuldade de viver na
cidade. A maioria dos Sateré daqui da aldeia está no trabalho informal, sem
carteira assinada. A maior parte fica dentro da aldeia trabalhando com
artesanato. A gente consegue gerar uma renda mais no mês de abril quando o
público procura. Fora isso a gente fica dependendo de doações”, contou o tuxaua
ou cacique Moisés Sateré, líder de uma comunidade no bairro da Paz, zona oeste
de Manaus, onde vivem 14 famílias.
A
antropóloga Lúcia Helena Rangel, da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, confirma que é comum os indígenas, mesmo em áreas urbanas, viverem em
comunidade. “Conforme vai passando o tempo, vem um, vem outro e mais outros, as
famílias acabam se juntando em determinado bairro, ou em uma periferia que
ninguém morava, e os indígenas foram morar. Você vai ver que nas grandes
cidades como Manaus, Campo Grande, Porto Alegre, têm bairros eminentemente
indígenas, ou segmentos de bairros, ressaltou a antropóloga.”
Saúde
Moisés
Sateré também reclama das dificuldades para acessar os serviços públicos de
saúde. “Às vezes a gente não consegue esse atendimento porque muitos
profissionais desconhecem a nossa realidade e acabam tendo preconceito com a
gente. Quando eles reconhecem que a gente pertence a algum povo, começam a
jogar dizendo que a gente precisa ir pra aldeia pra ser atendido ou procurar a
Casai [Casa de Saúde Indígena]. Então, fica empurrando”, disse a liderança
indígena.
De acordo
com o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) de Manaus,
Ronaldo Barros, da etnia maraguá, as políticas públicas de saúde são voltadas
aos indígenas nas aldeias. Aqueles que vivem nas cidades, enfrentam os mesmos
problemas que o restante da população. “Ele entra no mesmo processo de disputa
por vagas e atendimento da mesma forma que os não indígenas enfrentam nas áreas
urbanas.”
Ainda de
acordo com Raimundo Atroari, a Fundação Estadual do Índio está desenvolvendo
projetos para ajudar na geração de renda dos indígenas dentro das aldeias, como
uma alternativa para evitar a migração deles para os centros urbanos.
“A gente
está trabalhando para mudar essa história porque todas as áreas indígenas são
riquíssimas, tem um potencial econômico grande. O mercado consumidor tem uma
carência muito grande de tudo que tem na aldeia: alimentação, da matéria-prima,
daquilo que pode ser transformado em jóia, em remédio, em perfume, enfim. Tudo
que tem lá dá pra se transformar em moeda. E a Matriz Econômica Ambiental vem
justamente trazendo toda essa possibilidade de geração de renda lá no habitat
para os caboclos e indígenas”, explicou Raimundo.
A Matriz
Econômica Ambiental foi lançada pelo governo do Amazonas em fevereiro para
desenvolver, entre outros projetos, a economia do estado de forma sustentável,
com a colaboração dos povos tradicionais.
Preconceito
ainda é entrave
Morar em
centros urbanos sem ocultar a ancestralidade e as próprias referências é ainda
uma luta para mais de 315 mil indígenas, segundo dados do último censo do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número representa 49%
do total da população indígena do país.
“Há ainda
forte preconceito e discriminação. E os indígenas que moram nas cidades são
realmente os que enfrentam a situação assim no dia a dia, constantemente”,
conta o presidente da Organização dos Índios da Cidade, de Boa Vista, Eliandro
Pedro de Sousa, do povo Wapixana.
Em todo o
Brasil, São Paulo é a cidade com maior população indígena, com cerca de 12 mil
habitantes; seguida de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, com pouco mais de
11 mil e Salvador, com mais de 7,5 mil índios.
A
antropóloga Lúcia Helena Rangel, da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, destaca que desde a colonização, a presença indígena nas cidades é
constante, mas, em décadas passadas, a cidade era um espaço proibido.
“Eles iam
pras cidades e não diziam que eram indígenas. Ocultavam a origem e também
ocultavam as referências culturais, digamos assim”, explica. De acordo com ela,
o medo da discriminação e de represálias do antigo Serviço de Proteção ao Índio
impedia os indígenas de se apresentarem como tal.
Foi na
década de 50, com o desenvolvimento industrial, que o processo de migração para
as cidades se intensificou. Moradores do campo seguiam em busca de emprego nas
fábricas e, com os indígenas, não foi diferente, conta a professora.
A própria
Fundação Nacional do Índio (Funai), que tem como missão promover os direitos
dos povos indígenas no Brasil, sofre o preconceito e percebe a situação dos
indígenas que moram nas cidades. “Essa questão do preconceito é até com os
servidores [da Funai]. Se é com o servidor, imagine para o próprio indígena”,
indaga o coordenador regional da Funai em Roraima, Riley Mendes.
Resistência
O Padre
Robert Marie de Zalicourt, do Conselho Indigenista Missionário no Amazonas,
acredita que, para manter as próprias referências na cidade, os indígenas
precisam se unir. “Tem famílias indígenas em todos os bairros de Manaus, mas
não são reconhecidos. Então, eles têm tendência de perder a sua cultura. Eles
estão mantendo essa especificidade quando estão unidos e organizados.”
Por
Bianca Paiva e Maíra Heinen, da Agência Brasil
Para saber mais sobre o livro, clique aqui. |