-O senso comum perpetua uma imagem negativa acerca de pessoas negras, processo ligado ao período de escravização no Brasil e que se adapta, de tempos e tempos, a novos formatos, como o “negro militante” e a “negra raivosa”
-Confira a sétima e última matéria da série “O mito da
abolição”, que toma como ponto de partida o 13 de maio para refletir sobre as
práticas racistas que perduram na nossa sociedade e demonstram a importância de
olhar para o hoje desmistificando mentiras contadas no passado
A desumanização sofrida pela população negra ao longo
da história do Brasil serviu de base para a construção de estereótipos que
marcam as vidas de homens e mulheres. A reprodução desses padrões de
pensamento, que têm origem ainda no período escravocrata, perpetuam
preconceitos e injustiças a exemplo do senso comum de que homens negros e mulheres
negras possuem mais força para desempenhar trabalhos braçais.
De acordo com a definição antropológica de
estereótipo, o termo se refere a uma imagem criada a partir do senso comum. Em
um país racista, esse senso reproduz imagens que nem sempre correspondem à
realidade e ainda desumaniza indivíduos, como aponta a antropóloga Marivânia
Conceição Araújo. "A quem interessa a objetificação da mulher negra, a
desvalorização das lutas políticas e a disseminação sistemática que tira a
humanidade da população negra?", introduz a pesquisadora do Núcleo de
Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros da Universidade Estadual de Maringá
(UEM).
Entre as principais consequências geradas pela
reprodução constante de estereótipos sobre pessoas negras está a falta de
empatia. "A gente vive uma violência simbólica que diz que algumas vidas
são mais importantes que outras, que algumas mortes doem mais. O imaginário
social da sociedade brasileira concebe o branco de uma forma que está sempre
atrelada à superioridade”, pontua Daniara Thomaz, pesquisadora e também
antropóloga.
Para a estudiosa, a reprodução de estereótipos define
limites para a subjetividade das pessoas negras. “Quando alguém diz que um
negro tem fenótipo de bandido, a gente transforma os elementos socioculturais
em características biológicas. A gente limita aquela pessoa e todo o grupo
social que ela pertence”, exemplifica.
Os estereótipos racistas fazem parte da formação do
Brasil e estão vinculados ao processo de escravidão vivida pela população negra
por mais de 400 anos. De acordo com Daniara, atribuir a pessoa negra um viés
mais agressivo e selvagem é uma das consequências do passado escravagista, que
ainda se faz presente.
Grande
mídia ajuda a difundir estereótipos
O homem negro visto como malandro, a mulher negra
hipersexualizada ou barraqueira são alguns exemplos clássicos de estereótipos
racistas presentes na mídia. A escritora Lavínia Rocha observa que os
personagens da dramaturgia são apresentados de forma estereotipada.
"Descrever a cor de uma pessoa negra como comida,
a comparando com chocolate, café ou até a animalização dos personagens são
situações comuns e super nocivas. São resquícios escravocratas nas
histórias", analisa.
Lavínia escreve contos infanto-juvenis e classifica o
papel da arte, principalmente da literatura, como de extrema importância na
desconstrução de estereótipos. "É uma forma de mostrar que a gente pode
ser o que quiser. Quanto mais a gente conseguir trazer isso, mais os
estereótipos podem ser desconstruídos, principalmente para crianças",
avalia.
Segundo a escritora, é importante diferenciar
representação e representatividade. Representação está ligada à tentativa de
cumprimento de uma regra, como uma cota para que existam personagens negros em
uma história. Já a representatividade é a forma como o personagem é
apresentado, suas características e espaço que ocupa na história. “Não resume
sua narrativa à questão racial”, descreve Lavínia.
O ator Kauê William já enfrentou dificuldades para
encontrar papéis representativos na sua carreira. “É uma dificuldade muito
grande encontrar personagens que fogem do estereótipo do negro no lugar de
subalternidade”, relata o artista.
Ao longo dos anos, os estereótipos racistas difundidos
pela mídia também têm se transformado. Os mais comuns como o da mulher negra
sempre na posição de empregada doméstica, nas novelas, aos poucos deixa de ser
tão comum, dando lugar a outros. “Não dá pra deixar passar o elenco do BBB 21,
que reforçou os estereótipos do negro militante pedante, arrogante e a mulher
negra raivosa. São formas mais refinadas de um sistema que se adapta”, reforça
a antropóloga Daniara.
Dá para
desconstruir esses estereótipos?
A resposta é sim. Entre as alternativas para combater
a propagação de estereótipos e os efeitos negativos sob pessoas negras, a
pesquisadora Marivânia aponta o diálogo. “É preciso que a gente seja visto como
gente. Parece simples, mas não é”, explica a intelectual, que analisa o caminho
para a desconstrução da imagem pré-concebida da população negra como árduo e
longo. “É um exercício de várias frentes e por isso é tão difícil”,
complementa.
A antropóloga Daniara relembra que os estereótipos
“limitam a percepção acerca das pessoas” e isso se perpetua também a partir dos
hábitos de consumo da população. No mundo ocidental e no Brasil, especialmente,
a população tende a consumir filmes e séries americanas. Um dos caminhos é
consumir artes fora do padrão branco e americanizado e fortalecer produções de
valorização das características e cultura negras.
Por
Roberta Camargo, na Alma Preta/Yahoo notícias
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