Uma série de povoados na Amazônia já estava sofrendo redução populacional antes da chegada de europeus à região, revela um estudo sobre registros fósseis de pólen na floresta. O trabalho sugere que, além do genocídio promovido por europeus na região, outros fatores já estavam dificultando a presença indígena em alguns locais.
A descoberta está descrita em artigo publicado nesta
sexta-feira (30) na revista "Science". O estudo foi liderado pelos
cientistas Mark Bush, do Instituto de Tecnologia da Flórida, e Crystal
McMichael, da Universidade de Amsterdã, e teve participação da paleoecóloga
brasileira Majoi Nascimento, também da instituição holandesa.
A conclusão sobre a redução precoce de populações
indígenas surgiu de um mapeamento que o grupo fez na região para entender a
relação da floresta com a concentração de gases do efeito estufa no passado. No
início do século 17, observou-se uma redução de concentração no CO2 global, que
levou a um fenômeno apelidado de "Pequena Era do Gelo", com
temperaturas caindo transitoriamente na Europa. Alguns cientistas acreditavam
que isso tinha relação com a colonização das Américas.
Estima-se que povos indígenas tenham se reduzido de
90% a 95% após o contato europeu, seja por causa de doenças como a varíola ou
por conflitos travados diretamente. Essa drástica variação demográfica,
postularam alguns, teria levado a um aumento da cobertura florestal na
Amazônia, porque clareiras antes abertas para habitação e cultivo passaram a
ser reconquistadas pelas árvores.
Como as árvores absorvem o carbono do ar ao crescerem,
e uma grande quantidade delas estava rebrotando, o CO2 global deveria então se
tornar menos abundante, levando à queda de concentração desse gás por volta de
1600. Um ar com menos CO2, por sua vez, significaria menos radiação solar
absorvida na atmosfera, o que resfriaria o planeta por algum tempo, causando a
Pequena Era do Gelo.
Para testar essa hipótese, Bush, McMichael, Nascimento
e colegas fizeram um mapeamento paleontológico de distribuição de pólen em 39
locais diferentes da Amazônia.
O pólen
como testemunha
Escavando o leito de lagos e verificando que tipo de
pólen era mais abundante a diferentes profundidades, os pesquisadores
conseguiam saber, em cada século, se a cobertura vegetal do local era floresta
ou se o solo estava sendo cultivado pelos índios com mandioca, milho ou outras
espécies de planta domesticadas.
A coleta no estudo do grupo de Nascimento era feita
sempre em lagos, porque o pólen que cai em solo seco oxida e não sobrevive para
contar a história de vegetação. No estudo, os cientistas usaram amostras
próprias junto de análises já publicadas por outros cientistas.
Para obter as melhores amostras de sedimento,
cientistas foram a locais de difícil acesso.
— Uma das amostras que coletamos foi na Lagoa da Pata,
no Amazonas. Para chegar lá a gente tem que ir até a cidade São Gabriel da
Cachoeira, alugar um jipe 4x4 para pegar uma estrada de 30 km, depois fazer um
trecho de canoa e outro de trilha, carregando botes infláveis — conta a
cientista, que descreve ainda: — A gente usou dois botes para montar, então,
uma plataforma no lago, e usamos canos de alumínio de um equipamento chamado
Livingstone para furar o fundo do lago e coletar a amostra sem perturbar o
sedimento. Depois da etapa de campo, levamos o sedimento para o laboratório
para fazer a análise, que é a parte mais demorada da pesquisa. Na Lagoa da
Pata, com 1,2 metro de sedimento, conseguimos cobrir 8 mil anos de história da
vegetação da área.
Cada vez que o pólen de árvores típicas de floresta
escasseava na amostra, o dado era interpretado como presença humana na área, e
vice-versa. Após analisar todos os dados, os pesquisadores verificaram que
Amazônia já estava passando por redução populacional na época do contato, e na
maioria dos lugares essa queda tinha começado muito tempo antes. Em alguns
casos, o reflorestamento de áreas abertas começara 600 anos antes da chegada
dos europeus.
Na época em que espanhóis já estavam explorando a
região, segundo os cientistas, o ganho de áreas florestadas em alguns pontos
não era significativamente maior do que a perda de cobertura de árvores em
outros. Isso significa que a chegada de europeus na Amazônia provavelmente não
pode ser culpada pela Pequena Era do Gelo.
Genocídio
indígena
O motivo pelo qual populações indígenas já tinham
começado a se reduzir séculos antes ainda não é bem conhecido, mas tem respaldo
também de um mapeamento feito em solo seco, publicado em 2020. Os arqueólogos
Manuel Arroyo-Kalin e Philip Riris compilaram estudos na Amazônia e viram uma
diminuição no número de sítios com ocupação humana no mesmo período mapeado
pelo pólen.
Nascimento, Bush e McMichael sugerem que essa redução
populacional precoce pode ter sido impulsionada por alguma pandemia de origem
não europeia, pelo recrudescimento de conflitos tribais ou por mudanças ecológicas
na região. Não há uma resposta clara ainda.
Os autores ressaltam, porém, que os dados novos não
abrem brecha para questionar o genocídio indígena. A morte de nativos da
Amazônia e do resto das Américas por guerra, escravidão e germes europeus é fato
histórico amplamente documentado, diz Nascimento.
"Populações em algumas áreas da Amazônia deveriam
já estar em declínio quando europeus chegaram, um declínio que foi acelerado
pelo impacto de doenças depois do contato europeu", escrevem os cientistas.
Por
Rafael Garcia, em O Globo
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