A série brasileira "Cidade Invisível" ficou no top 10 de conteúdos mais assistidos da Netflix em mais de 40 países |
Em entrevista, Carlos Saldanha, criador e coprodutor da nova série brasileira da Netflix, fala sobre o sucesso da produção e os desafios de adaptar lendas do folclore do Brasil para um público internacional.
Cuca, Saci-pererê, Iara, Curupira. Esses são
personagens que acompanham muitos brasileiros desde a infância, seja por
influência da escola, dos pais, dos livros, séries televisivas ou desenhos
animados. São clássicos do folclore brasileiro e motivo de orgulho para muitos
no país. Agora, essas lendas também fazem parte da série adulta Cidade
Invisível, que estreou em fevereiro na plataforma de streaming Netflix.
A produção – protagonizada por Marco Pigossi e
Alessandra Negrini – mistura suspense, drama, fantasia e investigação. Desde a
sua estreia, a série figurou por pelo menos um dia entre os conteúdos mais
assistidos da Netflix em mais de 40 países, e o sucesso levou à confirmação de
uma segunda temporada.
A trama conta a história de Eric (Marco Pigossi), um
policial ambiental no Rio de Janeiro que decide investigar a misteriosa morte
da esposa (Julia Konrad). Enquanto segue as pistas, o protagonista se depara
com entidades do folclore brasileiro e se dá conta de que tudo está conectado.
São sete episódios com, em média, 35 minutos cada.
A série nacional é assinada pelo brasileiro Carlos
Saldanha, diretor conhecido no mundo das animações. Ele esteve à frente, por
exemplo, das franquias A Era do Gelo e Rio, além de O Touro Ferdinando,
indicado ao Oscar. Cidade Invisível é o primeiro projeto de live action de
Saldanha.
Em entrevista à DW Brasil, ele falou sobre a
importância de trazer elementos da cultura brasileira a projetos audiovisuais:
"Se as pessoas conseguem fazer sobre China, sobre França, sobre outros
países, por que não do Brasil?”, questiona.
"A gente é tão bombardeado com coisas negativas
[sobre o Brasil], que acaba esquecendo as positivas. [...] São essas coisas,
essas memórias, essas histórias que para a gente são tão ricas e tão legais,
que a gente não pode deixar morrer", diz. "Só porque as coisas às
vezes não acontecem do jeito que a gente gostaria que fossem, não significa que
as coisas positivas não estejam aí para serem mostradas também."
O diretor comentou ainda as críticas de alguns
ativistas indígenas sobre a falta de representatividade desses grupos na trama:
"Eu concordo. Acho que a gente poderia trazer um pouco mais de
representatividade indígena na história."
Saldanha também abordou os desafios de apresentar os
personagens tipicamente brasileiros ao público estrangeiro. "Eu quis
passar as coisas básicas: o Curupira protege a floresta. Ele quer salvar a
floresta. A Cuca é uma bruxa misteriosa. Ela é má ou é boa? A gente não sabe.
Eu tentei passar essas questões com as quais, no Brasil, a pessoa que conhece
as entidades, esse folclore, já tem uma conexão [...] Para mim, no final, ficou
um 'vamos passar a emoção que a gente está querendo passar com cada personagem,
e vamos tentar explicar menos'."
DW Brasil: De onde surgiu a ideia de fazer uma série
adulta – com elementos de suspense, drama, fantasia e investigação – tendo os
personagens folclóricos como protagonistas?
Carlos Saldanha: Eu já vinha há algum tempo querendo
criar histórias que não sejam só para crianças. Os meus filmes são mais
família, para um público talvez mais infantil, mas eu sempre quis buscar
histórias de outras áreas. Eu queria muito fazer uma coisa com live action, com
atores de verdade, cenário. Tinha muita vontade de fazer projetos no Brasil. Aí
eu comecei naquela busca de qual seria um projeto [...] Eu tinha umas ideias de
curtas com temáticas mitológicas, de fantasia. Aí eu falei: por que não criar
uma série? Talvez um thriller policial, uma coisa um pouco mais adulta, mas
usar uma temática brasileira para isso. Na época estava tendo muitas séries de
fantasia. Tinha American Gods, Grimm, Vikings... Umas coisas tão estrangeiras
[...] Na minha cabeça veio: "Como é que a gente nunca fez uma coisa assim
com o Brasil?" A gente tem tantas mitologias, entidades, folclore e
elementos tão mais interessantes e visualmente diferentes. Por que não abordar
isso? Aí eu fui juntando essas ideias e fui montando.
Para você, qual é a importância de abordar a cultura
brasileira em grandes produções audiovisuais?
É muito grande, porque é onde eu me conecto mais. São
coisas que vêm de dentro. Eu acho que em qualquer história que você conte, é
bom quando você se conecta de forma emotiva, tem uma emoção por trás. E o
Brasil tem muito isso comigo. Apesar de estar aqui [nos Estados Unidos] há
muitos anos [...], essa parte ainda é muito forte dentro de mim. Então quando
eu fiz Rio foi uma forma de trazer para o mundo da animação uma temática que as
pessoas talvez não conhecessem totalmente. É uma coisa que para mim era muito
importante, gerava um sentimento de orgulho, de querer mostrar. Se as pessoas
conseguem fazer sobre China, sobre França, sobre outros países, por que não do
Brasil? Eu sempre tive essa cabeça. Mesma coisa com o folclore. Para mim, é
buscar o que nós temos de melhor no Brasil e que é pouco explorado. A gente é
tão bombardeado com coisas negativas [sobre o Brasil], que acaba esquecendo as
positivas. Eu tento focar no positivo: o que me faz ainda estar preso ao Brasil
emocionalmente? São essas coisas, essas memórias, essas histórias que para a
gente são tão ricas e tão legais, que a gente não pode deixar morrer. Só porque
as coisas às vezes não acontecem do jeito que a gente gostaria que fossem, não
significa que as coisas positivas não estejam aí para serem mostradas também.
A série tem o desafio de apresentar a um público muito
amplo, internacional, lendas típicas do folclore brasileiro. Como tem sido a
resposta fora do Brasil?
Tem sido incrível. As pessoas estão super curiosas e
interessadas em saber mais. Eu acho que trouxe um frescor paras as temáticas de
mitologia, de fantasia, desse estilo de produção [...] Eu fiz um produto para
Brasil, que tem um elemento Brasil nele, mas é um produto para o mundo também.
Eu fiz a história de uma forma que tenha elementos com que as pessoas possam se
conectar. No final, todo mundo é muito parecido. Todo mundo tem os mesmos
sentimentos, o que muda é a roupagem, como você conta essa história, e nesse
ponto a gente trouxe muita brasilidade.
A resposta foi mais forte em algum lugar ou região do
mundo?
Na época que foi lançado, logo no segundo dia, a gente
já ficou em primeiro lugar no Brasil, e ficamos por um bom tempo. Aí eu vi nos
dados que começou a ficar entre os 5 do mundo, com muitos países vendo. Eu tive
umas surpresas... Apesar de serem mercados pequenos e novos, a gente teve muita
penetração na África, em países que estão começando agora a ter Netflix. A
gente também foi super bem na França. Na Europa em geral, eu acho que teve uma
boa aceitação. Acho que, aos pouquinhos, a gente foi conquistando um espaço aqui
e ali, dentro desse público que também é um público meio nicho, de fantasia.
Mas a gente conseguiu realmente gerar esse interesse internacional, que foi uma
surpresa boa.
Quais foram os desafios de adaptar – em termos de
roteiro – esses personagens para um público internacional que nunca ouviu falar
deles?
A gente tinha uma linha muito tênue do quanto
explicar, do quão didática a série tem que ser [...] Para mim, no final, ficou
um "vamos passar a emoção que a gente está querendo passar com cada
personagem, e vamos tentar explicar menos". Tentar fazer com que as
pessoas, com a curiosidade, busquem saber mais. [...] Eu quis passar as coisas
básicas: o Curupira protege a floresta. Ele quer salvar a floresta. A Cuca é
uma bruxa misteriosa. Ela é má ou é boa? A gente não sabe. Eu tentei passar
essas questões com as quais, no Brasil, a pessoa que conhece as entidades, esse
folclore, já tem uma conexão. Você vê o Saci e você sabe o que é. Muitos
brasileiros sabem, mas o gringo talvez não saiba o que seja. Mas ele vai saber
que é um garoto brincalhão, que ele se transforma em vento, ele acaba sabendo
um pouco da história sem eu ter que explicar: "Ah, você pega o gorro dele
e ele tem que fazer a sua vontade". [...] Foi uma aposta que a gente fez,
e eu acho que deu certo, que as pessoas ficaram curiosas. Se ficasse muito
explicativo, poderia ficar muito maçante.
Até porque os episódios são curtos, né?
São curtos, e o pessoal se interessa em quem está
ajudando quem, quem é bom, quem é mau. O medo de perder os personagens é uma
coisa de que a gente não teve pena, de eliminar um personagem de que você
goste, para dar mais força para a história. Porque, na verdade, a premissa é a
seguinte: se eles são verdade, se eles estão entre nós, então como seria isso?
Eles seriam vulneráveis, teriam conflitos, seriam humanos. Então acho que isso
faz as pessoas se conectarem com eles.
Os personagens do folclore aparecem em um ambiente
urbano, bastante marginalizado. O que isso simboliza?
Quando eu comecei a ler folclore, o que me interessava
é o seguinte: são histórias orais, que passam de geração em geração. E o
folclore pode morrer. Como o folclore morre? Quando ele é esquecido, quando as
histórias não são mais contadas. [...] Eu sentia essa dor de saber que os meus
filhos não estavam conhecendo essas histórias que eu ouvia quando era criança,
ou que as pessoas estão perdendo o interesse por essas histórias. Então, eu
quis justamente representar isso neles. Por isso que é Cidade Invisível.
Ficaram personagens invisíveis, que se perderam e, com isso, caíram nas suas
próprias mazelas, nesse esquecimento, de que não eram mais importantes [...]
Eles fazem parte do que é o Brasil, das nossas histórias, do nosso povo.
A questão ambiental também é central no enredo. Isso
tem relação com o momento que o Brasil e o mundo vivem hoje no que diz respeito
ao meio ambiente?
É uma questão que está sempre aí. [...] Eu gosto dessa
abordagem ambiental, acho que é muito importante e, ao mesmo tempo, muito
central nessas entidades do folclore. [...] As origens dessas lendas vêm muito
dessa questão ambiental, muitas delas. Essa pegada ambiental é muito
contemporânea e há sempre esse dilema de como coexistir, né? É uma questão de
coexistência: como o homem coexiste com a floresta, como nós coexistimos com as
nossas lendas, nossos medos, nossos anseios.
Houve algumas críticas por parte de setores indígenas
com relação à representatividade no elenco, que eles poderiam ter sido
consultados sobre as lendas e mais representados. Como você vê isso? O público
pode esperar alguma mudança nesse sentido na segunda temporada?
A questão da representatividade, eu concordo. Eu acho
que a gente poderia trazer um pouco mais de representatividade indígena na
história. Mas, na verdade, o intuito inicial era fazer uma série mais urbana.
[...] Como o folclore é uma coisa tão variada, quanto mais você lê e vê sobre o
folclore, apesar de algumas origens virem dessa parte indígena, ele tem muito
da parte europeia, da parte africana. Então o Brasil é isso, uma mistura das
coisas. Eu quis criar uma história meio misturada: não identificar tão
necessariamente um lado ou o outro, mas criar uma história brasileira no sentido
de que cada estado, na verdade, tem uma mitologia. O Saci em São Paulo é
diferente do Saci do Amazonas. [...] O próprio Curupira tem várias
interpretações [...] E como eu quis fazer uma coisa centrada em um centro
urbano, a gente acabou tendo uma representatividade mais brasileira do que
especificamente de um ou de outro. O folclore na verdade é isso, uma coisa que
se permeia na população como um todo e inclui, claro, todas as etnias.
Alguns personagens importantes morreram na primeira
temporada. O público pode esperar novos personagens do folclore na segunda
temporada?
Sim. Estamos pensando nisso. A gente pensa muito nos
acertos e erros que a gente fez na primeira temporada, levamos isso muito em
consideração. [...] A gente começou a pensar em temáticas que foram
questionadas pelo próprio público e pensa em criar um ambiente não só mais
diverso, mas em continuar a trazer mais ainda os elementos do folclore que
talvez não fossem explorados. Eu acho que essa é a diversão de você passar para
uma segunda temporada, essa coisa de descobrir quais serão as novas entidades,
sem perder o que já tem na anterior. É meio como Game of Thrones, você acaba se
apaixonado por um personagem, depois aquele personagem morre: "Caramba! O
que eu vou fazer?" Aí você tem que ter outras soluções.
A série foi confirmada para uma segunda temporada.
Quais são os planos em termos de gravações, histórias?
Está tudo muito confuso, agora com a situação do
Brasil, do mundo, a gente não sabe exatamente. A gente tem vontade de lançar o
mais em breve possível, para manter essa curiosidade. A gente também está
ansioso para fazer de novo, porque adoramos o processo. Mas vai tudo depender
de como estão as coisas... Primeiro a gente tem que começar a escrever os
roteiros, como já estamos começando a escrever.
Falando sobre esse momento que estamos vivendo no
mundo, como foi finalizar a série e divulgá-la em meio à pandemia de covid-19?
Demos muita sorte, porque as filmagens foram feitas
antes da pandemia. A gente começou a programação em julho e entre agosto,
setembro e outubro [de 2019], a gente filmou tudo. Depois, começou a
pós-produção, porque a série tem muitos efeitos especiais, tem muita coisa para
fazer. Os cortes, a edição, a montagem, aquela coisa toda. Aí começou a
pandemia [...] por sorte, essas partes de efeitos especiais é muito computador:
o artista e o computador. A gente conseguiu com que eles fizessem nas casas
deles. Eles montaram seus próprios escritórios e, estúdios, e a gente fazia
assim, no Zoom, olhando as coisas, mandando online. Acabou dando super certo.
Atrasou um pouco, pela logística, mas no geral deu certo. A gente conseguiu
fazer tudo o que queria.
Você tem uma carreira sólida com animações. Por que o
seu salto das animações para o live action justamente com essa série?
Eu já tinha um interesse muito grande de explorar
novas áreas. Mesmo fazendo animação por quase 30 anos, sempre tive curiosidade
de cinema. [...] Eu já estava nessa busca, desse espaço para contar histórias
com live action, com atores. Então foi uma grande oportunidade. Quando apareceu
isso, achei que seria uma oportunidade legal. E fazer o meu primeiro projeto em
live action no Brasil era um sonho que eu já tinha há um bom tempo. Eu achava
que iria ser um lugar seguro para eu fazer, no sentido emocional. Eu iria estar
com pessoas que conheço, um grupo de pessoas com quem tenho afinidade. E
realmente foi uma prova de batismo, vamos dizer assim, muito legal e que me
trouxe muita vontade de continuar a fazer.
Então podemos esperar mais projetos seus de live action
no futuro?
Sim, com certeza. Animação vai estar sempre no meu
coração, né? Enquanto eu puder fazer animação, vou continuar fazendo. Mas agora
tem um espacinho para o live action.
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