Há 521 anos, o navegador português e sua tripulação enfrentaram tormentas, calmarias e doenças. Dos 1,5 mil homens que zarparam de Portugal, apenas 500 conseguiram voltar, sãos e salvos, para casa.
"A praia das lágrimas para os que vão. A terra do prazer para os que
voltam". É assim que os portugueses costumam se referir ao Porto do
Restelo, em Lisboa, de onde partiram as expedições de Vasco da Gama, em 1497, e
de Pedro Álvares Cabral, em 1500.
Prevista para acontecer em um domingo, 8 de março, a partida da armada de
Cabral, um fidalgo de origem nobre de apenas 33 anos, foi adiada, por causa do
mau tempo, para o dia seguinte.
"Vale lembrar que 'fidalgo' quer dizer 'filho de algo', ou seja,
'filho de alguém'. E Cabral era filho de uma família que, desde 1385, mantinha
vínculos estreitos com a Coroa. Além do mais, casou-se com uma mulher
riquíssima, Isabel Gouveia, neta de reis", afirma o jornalista e escritor
Eduardo Bueno, autor de Brasil: Terra à Vista! - A Aventura Ilustrada do
Descobrimento (2000).
A pintora premiada quando as mulheres eram proibidas na Escola de Belas
Artes no Brasil
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por cientistas brasileiros
A frota de Cabral era formada por nove naus, três caravelas e uma naveta
de mantimentos. Além do formato das velas, o que diferenciava uma embarcação da
outra era o tamanho: enquanto as caravelas mediam 22 metros de comprimento e
transportavam até 80 homens, as naus podiam chegar a 35 metros e tinham
capacidade para 150 tripulantes.
"A frota era composta por uma variedade de profissionais: havia o
capitão e, abaixo dele, o piloto, responsável pela navegação, o mestre e
contramestre, que lideravam os marinheiros, e o condestável, que comandavam a
artilharia", explica Antônio Carlos Jucá, diretor do Instituto de História
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Com o tempo bom e o vento favorável, Cabral e sua tripulação zarparam de
Lisboa, rumo a Calicute, na Índia, no dia 9 de março de 1500. Curiosamente, o
homem a quem o então rei de Portugal, Dom Manuel I (1469-1521), o Venturoso,
confiara a maior, a mais cara e a mais poderosa armada portuguesa nunca tinha
comandado uma esquadra antes.
"Se houve imprevistos? Bem, ocorreu um enorme imprevisto, sim: a
chegada ao Brasil", afirma Paulo Pinto, da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal.
"A armada tinha como destino a Índia e tocou a costa brasileira por
acidente. É possível que Portugal já suspeitasse da existência de terras
naquela região, mas a verdade é que Cabral e seus homens foram apanhados de
surpresa. A chegada ao Brasil foi, portanto, um acidente de percurso de uma
jornada que tinha objetivos estratégicos bem definidos. A Índia era a
prioridade número um da coroa de Portugal."
'Mar
Tenebroso'
Com apenas oito dias de viagem, a frota enfrentou sua primeira tormenta.
Tão forte que, próximo ao arquipélago de Cabo Verde, a nau comandada por Vasco
de Ataíde, que transportava 150 homens, sumiu do mapa. A cada três navios que
partiam de Portugal, um era "engolido pelo mar".
Não à toa, o Atlântico era conhecido como "Mar Tenebroso".
"Além de perder um de seus barcos, Cabral teve de enfrentar, no primeiro
trecho da viagem, 20 dias de calmaria", relata José Carlos Vilardaga,
professor de História da América na Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp).
"Quando isso acontecia, o barco ficava quase totalmente parado no meio
do oceano. Isso aumentava o tédio e o calor a bordo."
Ao todo, os 13 navios transportavam 1,5 mil homens, entre médicos,
boticários, religiosos, calafates e até degredados, isto é, condenados à morte
que aceitavam trocar sua pena capital pelo exílio em terras desconhecidas. Na
maioria das vezes, eram os primeiros a desembarcar. Se fossem atacados por
selvagens, não fariam muita falta.
Do total de 1,5 mil homens, apenas 500 conseguiram voltar, sãos e salvos,
para casa. O restante morreu no mar, vítima de naufrágios ou de doenças, como o
escorbuto, que provocava sangramento nas gengivas. Em algumas expedições, a
proporção de médicos para marinheiros era de um para três mil. Viajar era tão
arriscado que, antes de zarpar, muitos marujos já deixavam seus testamentos
assinados.
A presença de mulheres a bordo não era permitida. Já crianças e
adolescentes podiam embarcar. A maioria, de nove a 15 anos, era alistada pelos
pais que, em troca, embolsavam o soldo dos filhos. Durante a viagem,
desempenhavam as funções de grumetes e de pajens.
"A vida dos 'miúdos' a bordo era um inferno. Muitas vezes, eles
sofriam abusos sexuais", relata Bueno em Brasil: Terra à Vista!.
O Cabo do
Tormentas
A tripulação, em linhas gerais, podia ser dividida em marinheiros,
soldados e religiosos. Os marinheiros executavam as tarefas náuticas, como içar
velas, baixar âncoras ou manejar instrumentos, como o astrolábio, usado para
medir a altura do Sol ao meio-dia e das demais estrelas à noite.
Alguns dos mais tarimbados navegadores da época, como Bartolomeu Dias
(1450-1500), participaram da aventura. Doze anos antes, ele ficou famoso por
ter sido o primeiro a contornar o cabo da Boa Esperança, ao sul da África.
Por uma trágica ironia, na madrugada do dia 23 de maio, uma tormenta
desabou sobre a frota de Cabral e afundou quatro dos 13 navios. Quatrocentos
homens, incluindo Dias, foram "engolidos pelo mar". Onde estavam?
Próximos ao cabo da Boa Esperança, chamado de Cabo das Tormentas antes da
viagem bem-sucedida do próprio Dias.
Já os soldados, a maioria sem formação militar, eram os responsáveis pela
artilharia e munição. As embarcações portuguesas, aliás, foram as primeiras a
singrar os mares com artilharia pesada a bordo. As nove naus que compunham a
frota de Cabral eram equipadas com pesados canhões.
Os religiosos — em sua maioria, frades franciscanos — eram incumbidos de
rezar missas e ouvir confissões. Seu superior era Dom Henrique Soares de
Coimbra (1465-1532). Foi ele que, no dia 26 de abril, na praia de Coroa
Vermelha, no litoral da Bahia, celebrou a primeira missa no Brasil, assistida
de perto pela tripulação e, ao longe, por cerca de 200 indígenas.
"Devido à escassez de água e comida, as condições de vida a bordo
eram muito ruins. A mortalidade, em geral, girava em torno de 2% a 3% da tripulação,
mas podia ultrapassar os 10% do total. Assim, os doentes eram logo aconselhados
a se confessar e a receber a extrema-unção", relata Antônio Carlos Jucá de
Sampaio, diretor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
Banquete de
ratos
Os tripulantes não desfrutavam de qualquer conforto. Pelo contrário. Como
os porões dos navios eram usados para estocar os tonéis com água, mantimentos e
munição, os marinheiros dormiam no convés, ao relento, em colchões de palha.
"Naquela época, tomar banho era raro até em terra firme, quanto mais
em viagens oceânicas. A marujada urinava no mar e defecava em baldes. As
condições eram insalubres", esclarece Ronaldo Vainfas, professor de
História Moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF).
"Talvez o melhor depoimento sobre a insalubridade das viagens
atlânticas para o Brasil esteja na obra do francês Jean de Léry (1534-1611):
quando os biscoitos acabavam ou estragavam, os marujos comiam ratos. Havia até
uma cotação para o preço do rato nos navios."
Os momentos de lazer eram poucos. "Enquanto uns improvisavam rodas de
cantoria, outros preferiam jogar cartas", exemplifica Vilardaga. O
cardápio dos marujos consistia em água (1,5 litros por dia) e biscoito (600
gramas diários). Já os capitães da frota, todos de origem nobre, tinham direito
a vinho (1,5 litro por dia) e a carne e peixe (15 kg por mês).
"Apesar de estarem no mesmo barco, o acesso à comida, basicamente
biscoitos, carne em banha e peixes salgados, e água potável, armazenada em tonéis
de madeira e racionada para durar toda a viagem, acontecia conforme o status
social. Ou seja, seus lugares nas hierarquias da sociedade da época tendiam a
ser replicados a bordo", explica Aldair Rodrigues, professor do
Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Além das mordomias, os capitães ganhavam um ótimo salário. Só Cabral, o
capitão-mor, embolsou 10 mil cruzados — algo em torno de 35 quilos em ouro.
Quem não obedecia às ordens de seus superiores ou descumpria as regras da
embarcação não era jogado aos tubarões, mas mandado, de castigo, para o porão.
Infestado de ratos e baratas, o lugar era, para dizer o mínimo, uma imundície.
'Terra à
vista!'
Ao todo, a jornada durou 44 dias. No dia 21 de abril, os marinheiros começaram
a avistar os primeiros "sargaços" (um tapete flutuante de algas
marinhas) nas águas e "fura-bruxos" (um bando de pássaros semelhantes
a gaivotas) nos céus. No dia seguinte, a uns 60 quilômetros da costa, alguém
gritou: "Terra à vista!". Era o entardecer do dia 22 de abril de
1500.
Depois de ancorar sua nau a 35 quilômetros da costa, em frente a um monte
batizado de Pascoal, o capitão Nicolau Coelho (1460-1504) foi o escolhido para
fazer o reconhecimento do território.
A bordo de um escaler, embarcação pequena, de proa fina e popa larga,
movida a remo, ele presenteou os nativos com um gorro vermelho, uma carapuça de
linho e um chapéu preto. Em troca, ganhou um cocar de plumas e um colar de
contas.
Estima-se que, na época da chegada dos portugueses, havia entre 500 mil e
um milhão de indígenas habitando o litoral brasileiro. "Eram pardos, todos
nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas", descreveu Pero Vaz
de Caminha (1450-1500), um dos sete escrivães da frota, na famosa carta do "achamento
do Brasil". "Traziam nas mãos arcos e setas."
Antes de seguir para as Índias, Cabral e seus homens passaram dez dias no
paraíso. No dia 2 de maio, partiram rumo a Calicute, deixando para trás dois
degredados. Quando os navios desapareceram no horizonte, caíram no choro e
foram consolados pelos indígenas.
O exílio dos chorões, porém, durou pouco: em dezembro de 1501, foram
recolhidos pela primeira expedição enviada por Dom Manuel I para explorar a
mais nova colônia portuguesa.
Os degredados não foram os únicos a permanecer no Brasil. Na calada da
noite, dois grumetes, cansados dos maus-tratos a bordo, roubaram um escaler e
fugiram para a praia. Nunca mais se ouviu falar deles.
A naveta de mantimentos, comandada por Gaspar de Lemos, foi mandada de
volta a Portugal. Sua missão era comunicar ao rei o "achamento" da
nova terra. Até ganhar o nome de Brasil, o território foi chamado de Ilha de
Vera Cruz por Pedro Álvares Cabral e de Terra de Santa Cruz pelo rei Dom Manuel
I.
O 'achamento'
do Brasil
A segunda parte da viagem durou pouco mais de cinco meses. No dia 13 de
setembro de 1500, a frota de Cabral, reduzida a seis navios, chegou ao seu
destino: Calicute. Na Índia, a esquadra sofreu novas baixas. Pero Vaz de
Caminha, o autor da famosa "certidão de nascimento" do Brasil, foi
morto, no dia 16 de dezembro, em um ataque de mercadores árabes.
De volta a Portugal, o que restou da esquadra atracou no Porto do Restelo,
no dia 21 de julho de 1501.
"Apesar de ter sofrido perdas, a missão foi um sucesso. Depois de seu
regresso, Cabral recebeu várias honrarias, mas não voltou a ser nomeado para o
comando de qualquer expedição relevante. Isto tem dado origem a algumas
interrogações. Historiadores falam que o rei teria ficado insatisfeito com os
seus serviços, mas são apenas especulações", pondera Pinto, da
Universidade Nova de Lisboa.
Por pouco, o Brasil não fora encontrado por outros navegadores: um
português, Duarte Pacheco Pereira (1560-1533), e dois espanhóis, Vicente Pinzón
(1462-1514) e Diego de Lepe (1460-1515).
Comandando uma frota de oito navios, Duarte Pacheco Pereira teria
explorado o litoral brasileiro, na altura do Maranhão, em dezembro de 1498.
"Embora ele dê a entender isso em seu livro Esmeraldo de Situ Orbis, não
há nenhum documento que comprove essa tese", garante Bueno.
Por essa razão, a suposta presença de Pereira rondando o litoral
brasileiro em 1498, que muitos historiadores descartam a hipótese de que Cabral
tenha descoberto o Brasil por acaso.
"O consenso é de que Portugal sabia da existência de terras no Atlântico.
Caso contrário, não teria pressionado o papa Alexandre VI para modificar a bula
Inter Coetera, de 1493, que deixava os portugueses de fora do Novo Mundo
descoberto por Colombo em 1492", observa Vainfas.
"Mas o fato é que a viagem de Cabral ia mesmo para a Índia. Uma
tempestade desviou a rota e eles deram em Porto Seguro. Uma coisa é saber que
havia terras ali. Outra é montar uma expedição com o propósito de aportar no
sul da Bahia. Por isso, o historiador português Joaquim Romero de Magalhães (1942-2018)
prefere chamar a viagem de 'achamento' e não de 'descobrimento'."
Quanto a Vicente Pinzón, o explorador espanhol teria atingido o Cabo de
Santo Agostinho, no litoral de Pernambuco, no dia 26 de janeiro de 1500 — três
meses antes da chegada de Cabral a Porto Seguro, na Bahia.
Experiente, integrou a frota que, sob o comando de Cristóvão Colombo
(1451-1506), descobriu a América, em 1492. Poucas semanas depois, em fevereiro
de 1500, o primo de Pinzón, Diego de Lepe, também navegou por águas
brasileiras.
A Espanha só não reivindicou a descoberta do Brasil por causa do Tratado
de Tordesilhas. Mesmo assim, o rei Fernando II de Aragão condecorou Vicente
Pinzón e Diego de Lepe pela façanha de eles terem "descoberto" o
Brasil.
Por André Bernardo, na BBC
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